Achava-se o Mestre em casa de , contudo, em localidades diversas, em derredor do grande lago, propalava-se-lhe a Boa-Nova. Comentavam-se-lhe as preleções qual se fora ele um príncipe desconhecido, chamado à restauração nacionalista.
Se aparecia em público, era apontado como revolucionário em vias de levantar a bandeira de antigas reivindicações e, quando no santuário doméstico, recebia visitas corteses e indagadoras. Não surgiam, no entanto, tão somente os que vinham consultá-lo acerca de princípios libertários, mas também os que, inflados de superioridade, vinham discutir os problemas da fé.
Foi assim que o escriba Datan se acercou familiarmente dele, sobraçando rolos volumosos e guardando ares de mistério na palavra sigilosa e malevolente.
Fez solene preliminar, explicando os motivos de sua vinda.
Estudara muitíssimo.
Conhecia o drama de Israel, desde os primórdios.
Possuía velhos escritos, referentes às perseguições mais remotas. Arquivara, cuidadoso, preciosas tradições ocultas que relatavam os sofrimentos da raça na Assíria e no Egito. Encontrava-se em ligação com vários remanescentes de sacerdotes hebreus de outros séculos. Discutia, douto e perspicaz, sobre o passado de e Aarão, na pátria dos faraós, e recolhera conhecimentos novos, com respeito à Terra da Promissão.
Em virtude da inteligência inata com que sabia tratar os problemas do revelacionismo, declarava-se disposto a colaborar no restabelecimento da verdade.
Pretendia contribuir, não só com o verbo inflamado, mas também com a bolsa no banimento sumário de todos os exploradores do Templo.
Depois de pormenorizada exposição que o Senhor ouviu em silêncio, aduziu o escriba entusiasta:
— Mestre, não será indiscutível a necessidade de reforma da fé?
— Sim… — confirmou Jesus, sem comentários.
Datan, extremamente loquaz, prosseguiu:
— Venho trazer-te, pois, a minha solidariedade sem condições. Dói-me contemplar a Casa Divina ocupada por ladrões e cambistas sem consciência. Sou cultivador da Lei, rigorista e intransigente. Tenho o Levítico de cor, para evitar o contato de pessoas e alimentos imundos. Cumpro as minhas obrigações e não suporto a presença de quantos dilapidam o altar, sob pretexto de protegê-lo.
Fixou expressão colérica no olhar de raposa ferida, baixou o tom de voz, à maneira de denunciador comum, e anunciou, sussurrante:
— Tenho comigo a relação de todos os lagartos e corvos que insultam o santuário de Deus. Ser-te-ei devotado colaborador para confundi-los e exterminá-los. Meus pergaminhos são brasas vivas da verdade. Conheço os que roubam do povo miserável a benefício dos próprios romanos que nos dominam. O Templo está cheio de rapinagem. Há feras em forma humana que ali devoram as riquezas do Senhor, lendo textos sagrados. São criaturas melosas e escarninhas, untuosas e traidoras…
O Cristo ouvia sem qualquer palavra que lhe demonstrasse o desagrado e, ébrio de maledicência, o visitante desdobrou um dos rolos, fixou alguns apontamentos e acrescentou:
— Vejamos pequena galeria de criminosos que, de imediato, precisamos conter.
O rabino Jocanan vive cercado de discípulos, administrando lições, mas é proprietário de muitos palácios, conseguidos à custa de viúvas misérrimas; é um homem asqueroso pela sovinice a que se confia.
O rabino Jafé, desde muito, é um explorador de mulheres desventuradas; do átrio da casa de Deus para dentro é uma ovelha, mas do átrio para fora é um lobo insaciável.
Nasson, o sacerdote, vale-se da elevada posição que desfruta para vender, a preços infames, touros e cabras destinados aos sacrifícios, por intermédio de terceiros que lhe enriquecem as arcas; já possui três casas grandes, cheias de escravos, em Cesareia, com vastos rebanhos de carneiros.
Agiel, um dos guardas do sagrado candeeiro, enverga túnica respeitável durante o dia e é salteador, durante a noite; sei quantas pessoas foram por ele assaltadas no último ano sabático.
Nenrod, o zelador do Santo dos Santos, tem sete assassínios nas costas; formula preces comoventes no lugar divino, mas é malfeitor contumaz, evadido da Síria.
Manassés, o explicador dos Salmos de David, vende pombos a preços asfixiantes, criando constrangimento às mulheres imundas que buscam a purificação, de maneira a explorar-lhes a boa-fé.
Gad, o fiscal de carnes impuras, tem a casa repleta de utilidades do santuário, que cede modicamente, enchendo-se-lhe os cofres de ouro e prata.
Efraim, o levita, que se insinua presentemente na casa do Sumo Sacerdote, é político sagaz; a humildade fingida lhe encobre os tenebrosos planos de dominação.
Reparando, porém, que Jesus se mantinha mudo, o interlocutor interrompeu-se, fixou-o com desapontamento, e concluiu:
— Senhor, aceita-me no ministério. Estou pronto. Informaram-me de que te dispões a fundar um novo reino e uma nova ordem… Auxiliar-te-ei a massacrar os impostores, renovaremos a crença de nosso povo…
Mas Jesus, sorrindo agora, compassivo e triste, retrucou muito calmo:
— Datan, equivocas-te, naturalmente, qual acontece a muitos outros. A Boa-Nova é de salvação. Não procuro delatores, nem carrascos, sempre valiosos nos tribunais. Estamos buscando simplesmente homens e mulheres que desejam amar o próximo e ajudá-lo, em nome de nosso Pai, a fim de que nos façamos melhores uns para com os outros.
O Mestre, sereno e persuasivo, ia continuar, mas o escriba eloquente, tão profundo no conhecimento das vidas alheias, enrolou os pergaminhos, apressado, franziu os lábios amarelos de cólera inútil e atravessou a soleira da porta sem olhar para trás.