Contos e Apólogos

Capítulo V

“Eu” contra “eu”



Quando o Homem, ainda jovem, desejou cometer o primeiro desatino, aproximou-se o Bom Senso e observou-lhe.

— Detém-te! Por que te confias assim ao mal?

O interpelado, porém, respondeu, orgulhoso:

— Eu quero.

Passando, mais tarde, à condição de perdulário e adotando a extravagância e a loucura por normas de viver, apareceu a Ponderação e aconselhou-o:

— Pára! Por que te consagras, desse modo, ao gasto inconsequente?

Ele, contudo, esclareceu, jactancioso:

— Eu posso.

Mais tarde, mobilizando os outros a serviço da própria insensatez, recebeu a visita da Humildade, que lhe rogou, piedosa:

— Reflete! Por que te não compadeces dos mais fracos e dos mais ignorantes?

O infeliz, todavia, redarguiu, colérico.

— Eu mando.

Absorvendo imensos recursos, inutilmente, quando poderia beneficiar a coletividade, abeirou-se dele o Amor e pediu:

— Modifica-te! Sê caridoso! Como podes reter o rio das oportunidades sem socorrer o campo das necessidades alheias?

E o mísero informou:

— Eu ordeno.

Praticando atos condenáveis, que o levaram ao pelourinho da desaprovação pública, a Justiça acercou-se dele e recomendou:

— Não prossigas! Não te dói ferir tanta gente?

O infortunado, entretanto, acentuou, implacável:

— Eu exijo.

E assim viveu o Homem, acreditando-se o centro do Universo, reclamando, oprimindo e dominando, sem ouvir as sugestões das virtudes que iluminam a Terra, até que, um dia, a Morte o procurou e lhe impôs a entrega do corpo físico.

O desditoso entendeu a gravidade do acontecimento, prosternou-se diante dela e considerou:

— Morte, por que me buscas?

— Eu quero — disse ela.

— Por que me constranges a aceitar-te? — gemeu, triste.

— Eu posso — retrucou a visitante.

— Como podes atacar-me deste modo?

— Eu mando.

— Que poderes te movem?

— Eu ordeno.

— Defender-me-ei contra ti — clamou o Homem, desesperado —, duelarei e receberás a minha maldição!…

Mas a Morte sorriu, imperturbável, e afirmou:

— Eu exijo.

E, na luta do “eu” contra “eu”, conduziu-o à casa da Verdade para maiores lições.


(.Humberto de Campos)