Contos e Apólogos

Capítulo XXXV

Questão de justiça



E o velho amigo contou-nos, bem humorado, uma história em torno dos comentários que enfileirávamos sobre a justiça do mundo:

— Um grande juiz, domiciliado num planeta onde o amor já solidificou suas bases nos corações, foi indicado para vir à Terra, a fim de verificar o progresso do Direito entre os homens.

Grandes gênios da Espiritualidade Superior, desejando aferir os valores da evolução terrestre, designaram-no para observar os fenômenos da consciência reta, no círculo das criaturas.

Como estariam as nações terrestres, depois de Jesus-Cristo, o Celeste Orientador justiçado na cruz? Achar-se-ia a comunidade social integrada no ensinamento do “amai-vos uns aos outros”? (Jo 13:34)

Grande civilização havia sido fundada, em nome do Mestre Inesquecível.

Sabia-se que a imagem do Senhor constava de múltiplos símbolos patrióticos, nos santuários e nos parlamentos, nos lares e nas escolas…

Em nome do Cristo, lavravam-se documentos oficiais, expediam-se decretos e instituíam-se programas educativos…

Como estaria sendo aplicada a substância do Evangelho na vida prática? Decerto, o discernimento irrepreensível permanecia vigilante em todas as casas da direção espiritual.

Para examinar essa realidade, o mensageiro devidamente credenciado vinha ao mundo, revestido de poder para exprimir-se quanto ao assunto.

Atendendo, desse modo, ao objetivo que o trazia, acompanhamo-lo a uma grande capital da Civilização moderna, ingressando, de imediato, num tribunal movimentado, em que se processavam os serviços do julgamento de um homem desvalido e sozinho.

O mísero comparecia, à frente do júri, por haver sido apanhado em delito de furto.

Nós e o emissário do Plano Superior ficamos a par da verdadeira situação do réu.

Espíritos amigos sustentavam-lhe a coragem moral e a luz da prece coroava-lhe a fronte.

O desventurado pedia a Deus abençoasse a esposa doente e os quatro filhinhos menores que curtiam dolorosas privações na furna de miséria que lhes servia de lar, rogando o perdão da Providência Divina para o crime que cometera.

Roubara, sim… Assaltara um empório comercial, cedendo à tentação de apropriar-se de alguns gêneros alimentícios para a subsistência da família, em negro momento da sorte.

Reconhecia-se, porém, arrependido. Esperava recuperar-se e trabalhar.

Ultrapassara os quarenta anos, e, havendo falido no singelo empreendimento agrícola a que se afeiçoara por muitos anos, vira-se condenado ao desemprego e ao abandono. Ninguém desejava contratar a cooperação de um homem considerado velho e inútil. Errara, por semanas e semanas, à caça de trabalho digno, mas todas as portas cerravam-se, inflexíveis…

Enquanto a saúde lhe garantira a casa, tivera forças para sobrenadar… Contudo, ante a mulher enferma e as crianças famintas, não encontrava recurso senão o de mergulhar na escura corrente das ideias deploráveis que o seduziam ao furto…

Desertara da virtude, caíra lamentavelmente; entretanto, confiaria no porvir.

O Senhor ajudá-lo-ia a levantar-se…

A oração do réu doía-nos a alma.

O examinador da justiça, comovido tanto quanto nós, aguardou o veredicto, na expectativa de uma corrigenda benéfica, vazada em estímulo à restauração moral do culpado.

Aquele pai sofredor poderia materializar ainda, no mundo, santificantes bênçãos e a justiça não deveria incentivá-lo ao desespero e à revolta.

No entanto, com enorme desapontamento para nós, o infeliz foi sentenciado a vinte anos de prisão.

Ouvindo os soluços convulsivos do infortunado, que reconhecia frustradas todas as esperanças, o mensageiro do Alto tentou confortá-lo indiretamente e anunciou que visitaria o dirigente do país, na suposição de conseguir um reajuste.

O tribunal parecia sombreado por estranhas perturbações.

Provavelmente, inspiraria medidas adequadas à administração da metrópole que visitávamos e a justiça surgiria no caso, nos moldes indispensáveis da compaixão.

Seguimo-lo, sem detença, atingindo o formoso palácio da governança.

Talvez por coincidência, o magnífico solar vivia um dia de festa. Muita gente ocupava-lhe as dependências. Carros suntuosos, de altas personalidades, sucediam-se à porta.

Num salão, engalanado de flores, o governador foi identificado por nós, no instante preciso em que, solene, à maneira de um semideus, chamava um homem de nariz adunco e de olhos felinos e o condecorava sob aplausos gerais.

Alguém nos esclareceu em poucos segundos.

Era o homenageado um insensível oficial de guerra que planejara a morte de milhares de homens, que depredara por conta própria, que se enriquecera à custa da pilhagem, que espalhara o infortúnio em diversas direções e que manejara, cruel, variados instrumentos de destruição.

Ao redor dele, centenas de entidades reclamavam, choravam, gritavam e gemiam, crivando-o de maldições.

Era precisamente esse homem o herói da festa, glorificado pela autoridade máxima da nação, com significativa medalha de honra.

O magistrado espiritual procurou comunicar-se, em espírito, com alguns dos responsáveis, mas todas as atenções estavam centralizadas na ruidosa alegria do ambiente, regada por numerosas taças de saborosa champanha…

Vimos, então, o mensageiro do Alto, em atitude de profunda tristeza, a despedir-se com um gesto amável de adeus, remontando ao mundo feliz de onde viera.


O narrador fez longa pausa… Afinal, quebrando o silêncio, alguém perguntou:

— Mas nunca mais receberam notícias do emissário desencantado? Como teria ele respondido aos instrutores quanto à missão que lhe fora confiada?

O velho companheiro sorriu, demoradamente, e esclareceu:

— Tivemos notícias, sim… Às interpelações dos Mentores da Vida Mais Alta, notificou que havia algo errado na máquina da justiça humana e que, por isso, rogava o prazo de quinhentos anos para continuar observando os homens, a fim de responder…

Os comentários de nossa pequena assembleia continuaram acesos, mas o ancião entrou em silêncio e, embora instado por nossas interrogações, calado e sorridente, despediu-se de nós.


(.Humberto de Campos)