Coração e Vida

Capítulo XVI

Um retrato do aborto



Perita auxiliar de ginecologia,

Sempre atenta às questões de luxo e reconforto,

A senhora dizia:

— Meu problema não é a prática do aborto,

Tento apenas livrar a mulher desprezada,

Dos desgostos fatais que a esperam na estrada

Quando o homem lhe fere o brio feminino…


Amigos respondiam:

— Mas, no caso, a mulher, ante as leis do destino,

Não será responsável quando aceita

Ser mulher-mãe do filho que carrega?

Se ao homem que a buscou ela própria se entrega?

Sabemos que o Espírito

Enlaça o corpo de que se aproveita

Quando estão, ele e ela, em comunhão perfeita.


A senhora, entretanto,

Falava, contrafeita:

— Não protesto, nem digo que estou certa,

Sei apenas que estou em minha profissão,

Tanto quanto angario apreço e estimação,

Creio que faço o bem, liberando a mulher

Do fardo que ela traz quando não quer;

Além do mais, preciso do dinheiro

Para dar minha filha a um caminho seguro,

Uma bela mansão, um marido e o futuro

Sem aflição e sem dificuldade…

Ela agora possui quinze anos completos;

Sonho vê-la feliz ao dar-me vários netos…

Para isso, o dinheiro é a base inesquecível,

Depósito bancário é melhora de nível.

Vejo no meu trabalho um trabalho qualquer

Simples mulher que ajuda a uma outra mulher,

Não tenho hesitação, nem penso quanto a isso,

Aborto é proteção a quem presto serviço;

Desde que a candidata chegue mascarada,

Passo a cumprir o meu dever

E não quero saber

Se veio acompanhada ou desacompanhada,

Se anota o nome ou não,

Não quero queixa, nem complicação,

Cada uma a que atendo é mais seis mil!…

E aditava, esboçando um sorriso gentil:

— Preciso de milhões…


Desdobrava-se o tempo, hora por hora,

Quando em chuvosa noite surge uma senhora,

Pagando a taxa de seis mil cruzeiros.

Ela explica que trouxe uma sobrinha pobre

Para comprar a intervenção…

Declara-se parenta e mostra-se incumbida

De socorrer a moça e dar-lhe proteção,

Quer mantê-la, porém, desconhecida…


A senhora ouve, calma, e concorda em seguida:

— Entendo, claramente,

Cada pessoa está em sua própria vida…


Entra no gabinete a jovem mascarada,

Parece muda e surda que se entrega

A uma força terrível, dura e cega…


Ao ver-lhe o corpo verde de menina,

A senhora em ação

Elogia-lhe a pele alabastrina;

Mas, aparentemente sem razão,

Quando o chamado auxílio estava em meio,

Estranha hemorragia surge em cheio…

A jovem geme, a parteira entra em luta…

Nada consegue… O sangue explode e vence-a.

A dama ao telefone roga a um médico amigo

Que lhe venha em socorro…

Vê a moça em perigo,

Quer salvar-lhe a existência,

Mas o sangue que sai prossegue a jorro…


Chega o médico à pressa,

Nota a menina em coma…

— Nada mais a fazer — diz ele quando a toma,

A fim de examinar-lhe o pulso e, logo após,

Diz à parteira aflita:

— É uma jovem bonita,

Liberemos a face, enquanto estamos sós.


Ele mesmo retira a máscara em veludo

Quer anotar-lhe o rosto para estudo…

Eis, porém, que aparece

A mocinha, a morrer, num sorriso tristonho,

Qual criança que dorme a fitar a luz do último sonho…

Mas ao ver-lhe, de todo, a face em primavera,

Grita a pobre senhora em gemidos de fera:

— Por que? Por que, meu Deus, esta dor que me mata?

Em pranto convulsivo a dor se lhe desata…

É que, ao fitar o corpo enfeitado em rendilha,

Naquele rosto lindo e pálido, ante a morte,

A rugir e a chorar sem nada que a conforte,

A senhora encontrara a sua própria filha.