Um homem agonizava, mas embora Não pudesse expressar palavra alguma, Na sombra interior que o desarvora, Pede em silêncio ao corpo: — “Ampara-me, por Deus! Eu não quero morrer, ajuda, corpo amigo, Não te quero deixar, preciso estar contigo, Sem ti temo cair em abismos fatais…” Era o apelo de instantes derradeiros Naquele portador de moléstia obscura, Que ainda não chegara aos cinquenta janeiros E que tudo indicava Estar descendo à morte prematura. De consciência lúcida, lembrava Em contrição sincera, As forças que gastara, inutilmente, As noites dos excessos de aguardente E os abusos sem conta que fizera… E, ante a morte a surgir, sempre mais perto, Continua a rogar ao corpo enfraquecido: — “Corpo que Deus me deu, não me deixes caído, Quero mais tempo, a fim de preparar-me Para aceitar sem medo e sem alarme, A ideia de perder-te e entrar em rumo incerto”. Entretanto, De espírito cansado A desfazer-se em pranto, Nas vascas da agonia, Ouviu a voz do corpo fatigado, Que, por fim, lhe dizia: “Escuta, meu amigo Eu sou teu servo e sei que és meu senhor, Sempre te obedeci com desvelado amor, Deus me criou para a missão De atender-te em completa servidão. Nunca me viste a desobedecer As ordens que me deste Fossem justas ou não, Porquanto o meu dever É o de servir-te sem reclamação. Mas indaga de ti quanta vez me impuseste Noitadas de prazer, ruinosas ou vazias, Depredando-me as próprias energias Que Deus me concedeu, em teu favor… Embora eu te avisasse Com a minha própria dor Que o remorso produz tristeza e enfermidade, Adquiriste, displicente, Cargas de sombra sobre a própria mente, Culpas e culpas sem necessidade… Repito: sou teu servo e, em nada te condeno, Mas demonstrando entendimento estreito, Gastaste-me as reservas sem proveito, Consumindo-me as forças, A pedaços de abuso e a doses de veneno… Dei-te tudo o que eu tinha, Nada me resta agora, Senão me recolher à derradeira hora, Em que eu deva tornar, com segura presteza, À recomposição da natureza!…” O homem ouviu o corpo em despedida Mas não tinha defesa Contra os próprios desmandos, ante a vida… No silêncio de mágoa indefinida, Voltou-se para Deus em oração, Pediu misericórdia, amparo e proteção, E, ante o corpo que se lhe enrijecia, Chorou o companheiro que perdia… Longo tempo passou, em clima de amargura, No entanto, ao se afundar em crises de loucura, Fez-se-lhe a prece continuada, Nos sofrimentos em que avança Um clarão de esperança… Tinha nódoas de culpa, em lágrimas sofria Mas o Céu lhe apontava a luz de novo dia… No íntimo, o Senhor o exortava somente A regressar ao mundo e tentar novamente Extinguir em si mesmo os males que trazia… O Espírito em falência, exânime, inseguro Pensou nas novas bênçãos do futuro, Viu a reparação por justiça e dever, E agradecendo aos Céus Gritou feliz, livre mas preso ao chão: — “Glória a Deus pela bênção de sofrer, Glória à reencarnação que obterei um dia, A fim de achar na dor a essência da alegria, O dom de trabalhar e a graça de nascer!” |