Lembro-me de que, num dos primeiros contatos comigo, Emmanuel me preveniu de que pretendia trabalhar ao meu lado por longo tempo, mas que eu deveria, acima de tudo, procurar os ensinamentos de Jesus e as lições de Allan Kardec.
E disse mais. Que se um dia ele, Emmanuel, me aconselhasse algo que não estivesse de acordo com as palavras de Jesus e Kardec, eu devia permanecer com Jesus e Kardec e procurar esquecê-lo.
— Emmanuel viveu em Roma, no tempo de Jesus, tendo sido o senador Publius Lentulus. Teve posteriormente várias encarnações. Numa delas foi o Padre Manuel da Nóbrega e juntamente com Anchieta fundou a cidade de São Paulo. A essa encarnação, refere-se a mensagem de Cneius Lucius que publicamos.
Amparado pelo , conseguiu Publius Lentulus transitar nas avenidas escuras da carne, em existências várias, até encontrar uma posição em que pudesse servir ao Divino Mestre com o valor e o heroísmo daquela que lhe fora companheira no início da Era Cristã. E assim temos em Manuel da Nóbrega o homem de raciocínio elevado, entregue a si mesmo em plena selva, onde tudo estava por fazer.
Noutro tempo, os livros prontos e as tribunas construídas, os direitos de família preestabelecidos e o dinheiro fácil, a sociedade constituída e o pedestal do poder para brilhar. Aqui, porém, eram a improvisação necessária e o deserto, as inibições do corpo deficiente que lhe apagavam a voz de tribuno, a insolência do selvagem recordando as feras do circo, à frente do qual devia imolar-se, consumindo as próprias forças para dar-lhe uma vida nova.
Surgiram ainda a devassidão e o crime, a ignorância e a audácia, os perigos mil que o hábil político transformado em missionário deveria vencer, exibindo não mais a toga do poder e as armas de seus guardas pessoais, e sim o sinal da cruz, sem mais ninguém que não fosse a sua pertinácia nos compromissos assumidos.
Entretanto, superou os óbices de toda espécie, lutou, sofreu e venceu, insculpindo com os poderes da ideia cristianizada um povo diferente e um novo mundo dentro do mundo.
Nóbrega podia ter vivido isolado no seu tempo. Contudo, desde cedo agregaram-se a ele multidões de amigos, exaustos de mando, de poder e dominação. E a teia dos destinos vai convertendo em trabalho para a coletividade tudo o que era cristalização do eu, em luz quanto era sombra, em liberdade espiritual o que era cárcere físico.
Da rocha surge o diamante, no curso dos milênios. Também a luz divina fluirá de nós um dia, quando a escória estiver abandonada no carvão que servirá de berço a outros diamantes no curso longo e paciente das eras.
O serviço do nosso amigo está longe de acabar. “É preciso criar espírito para o gigante” — costuma ele dizer. O gigante é a terra em que hoje nos situamos e o Espírito é a luz com que devemos continuar erguendo os padrões de fraternidade mais alta e de mais avançado serviço com Jesus, no Brasil todo.
Prossigamos marchando à frente! Anos e dias correrão. Estejamos certos da brevidade de tudo o que se movimenta sobre a terra, para agirmos com segurança e paciência. Para construir é preciso lutar. E para colher é indispensável haver semeado.
Dura foi a luta pela conversão do gentio. Tão dura que nunca chegou à conclusão desejada. Nóbrega, Anchieta e seus companheiros de catequese tiveram de enfrentar uma guerra sem tréguas. Nossos índios eram os mais selvagens da América. Sua civilização primitiva não oferecia pontos de contato com a civilização elevada que os jesuítas traziam da Europa. Nóbrega relata, em seu livro Diálogo da Conversão do Gentio, as dificuldades insuperáveis com que se defrontavam os padres catequistas. Esse livro marca o início da nossa literatura, no século XVI, e anuncia de maneira simbólica o prosseguimento da catequese de Nóbrega no futuro, através do livro psicografado.
Paulo exerceu o apostolado dos gentios para o Cristianismo. Nóbrega foi o Apóstolo dos Gentios no Brasil nascente, preparando o terreno para o seu apostolado espírita do futuro. Paulo encarna a transição histórica do Judaísmo para o Cristianismo. E com a sua teoria do corpo espiritual, a que chama de corpo da ressurreição, na 1 Epístola aos Coríntios, (1co
“Tudo se encadeia no Universo”, ensina O Livro dos Espíritos. () E a relação espiritual e histórica entre Paulo e Nóbrega, revelada pela mensagem de Cneius Lucius, dá-nos o exemplo vivo desse encadeamento no campo religioso. Por isso a cidade de São Paulo, fundada por Nóbrega, tem o nome do apóstolo cristão. As malhas da evolução espiritual, tecidas no tempo, mostram o desenvolvimento do Cristianismo em suas três fases culturais e históricas, sem solução de continuidade.
A mensagem de Cneius Lucius foi recebida por Chico Xavier, em Pedro Leopoldo, a 3 de agosto de 1949. Transcrevemo-la hoje por sua oportunidade, nas comemorações de mais um aniversário da Fundação de São Paulo. Mensagem circunstancial, dada a um pequeno grupo de estudiosos, reduzimo-la aos pontos essenciais que revelam as ligações históricas. As dificuldades insuperáveis da conversão do gentio confirmam-se em nossos dias com a eclosão das formas de sincretismo religioso afro-brasileiro, em que as crenças indígenas e africanas sobrevivem ao nosso redor.
A conversão do gentio prossegue em pleno século XX. As crenças indígenas e africanas misturaram-se às práticas do Cristianismo. A ignorância popular, geralmente secundada pela ignorância-ilustrada, confunde Espiritismo com Umbanda e Candomblé. Publicam-se livros e realizam-se cursos sobre religiões mediúnicas, misturando a Revelação do Espírito da Verdade com danças selvagens, despachos e defumações. Mas Nóbrega prossegue infatigável na catequese evangélica, agora através da psicografia, preparando o triunfo da verdade cristã em beneficio de todos.
— O autor refere-se ao 420.° aniversário da Capital Paulista, a 25 de janeiro de 1974.