ENTRE DUAS VIDAS

Capítulo XV

Rosângela Afonso da Silva



Querida mamãe, peço com seu carinho me abençoe.

Isto parece um sonho na realidade. Estou aqui com vocês como se aí permanecesse.

Eu mesma estou quase encantada, pois alguma coisa que ainda não sei compreender está separando a nossa percepção.

Se disser que já abracei a todos aqui não entenderão o que eu digo, se me disserem que não estou dizendo a verdade, não perceberei por minha vez, o que pensam.

Mãezinha, não chore mais. Peço isso mesmo ao papai, à Heloísa, ao nossos.

Por que haveria de desaparecer se a morte é apenas mudança? Com isto não quero dizer que não sofri ou que ainda não sofro.

Mas é preciso levantar-nos, reanimarmos, continuar a vida como Deus nos permite viver e trabalhar para merecer a felicidade que procuramos.

Todos os nossos estão em meu carinho, Tomásia, Célia, Roberto, Heloísa. Todos.

Gostaria de falar muito, falar, falar de tudo, mamãe, especialmente para consolá-la, mas não posso ainda. Estou dirigida para não ficar divagando.

As lágrimas de alegria me correm dos olhos; são lágrimas de muita esperança e coragem também.

A dor passou, a provação ficou para trás, assim como a noite, quando o dia amanhece.

Agradeço tudo o que fizeram e fazem ainda para mim, mas rogo particularmente para que não me lastimem. Tudo devia acontecer como naquela tarde em que me consagrei inteiramente à prece.

Quase adivinhava que a despedida estava próxima. Era o coração apertado sem motivo, um sofrimento sem razão de que realmente queria me libertar.

Aguardava o nosso Miguel com alegria. Estávamos atravessando um período de estudo mais completo um do outro. Desejávamos assumir compromisso um com o outro, se a certeza de que tudo daria certo entre nós para a formação do casamento e do lar.

Confesso que ele esperou pacientemente a minha decisão. Demorei-me em Belo Horizonte pensando… pensando… Cheguei à conclusão, depois das minhas observações e experiências, que encontraria nele um companheiro e um amigo fiel.

Regressei a Sacramento decidida, mamãe, a aceitar o futuro que ele me prometia. Digo isso porque ele confirmará a verdade do que estou dizendo.

A esperar por ele, orei muito. A senhora sabe, sua filha sempre foi responsável.

Casar para mim não era só a felicidade de um encontro no Plano físico, era a vida, o amor, o trabalho e a família que a senhora e meu pai nos ensinaram a aceitar com a linguagem do exemplo.

Saí de casa meditando isso. Parei o carro e orei, junto ao cruzeiro, fitando o céu. “Deus me desse o que fosse justo, Deus me conduzisse pelo caminho certo.”

Em prece, voltei ao automóvel, procurando distrair-me, no entanto, divagando deixei que a velocidade aumentasse. Para mim, não era muita. Habituara-me com o volante como quem se acostuma a conviver com um animal fiel. Entretanto, querendo mudar o rumo dos meus próprios pensamentos, procurei um cigarro e quando manejava o cinzeiro, não sei ainda porque, manobra imperfeita, o automóvel capotou, atirando-me a distância.

Nada mais vi… porque um sonho esquisito me tomou a cabeça, por mais que buscasse reagir gritando por socorro.

Então, mãezinha, sem saber quanto tempo gastei para isso, sonhei que amigos me rodeavam. Eram Tia Amália, a Tia Mariquinha, a irmã do “Seu” Eurípedes, que me abraçavam e depois delas um rapaz me tomou o braço.

— “Você não me conhece, Rô?” — A voz dele era nossa, tão nossa que mesmo em sonho me assustei. — “Pois é, querida irmã, eu sou o Tomé, que já cresci assim tanto…”

Fiquei feliz naquela situação em que me parecia sonho, e desejei despertar para dizer em casa o que eu via e ouvia.

Até que prometia a mim própria recordar e recordar para não esquecer quando acordasse.

Estava cansada e tive medo porque reconheci que os amigos, junto de mim, estavam em nossa lembrança e não era mais da nossa vida do dia a dia. Eram mortos, pensei, e embora confortada, queria voltar ao corpo e à nossa casa. Tia Amália, aquela mesma criatura boa de minha meninice, me abraçou quase a me carregar e me levou com Tomé e os outros, pois eram muitos os amigos presentes à nossa casa.

Dizer à senhora o que senti quando me vi em duplicata, não posso nem tentar. Muitas vezes, havia refletido na morte, mas a morte era assim tão rápida?

Quis gritar e chorar porque estimaria conversar com a família.

Em pranto, notei que veio alguém até onde me achava, alguém que reconheci sem palavras. Os retratos dele haviam implantado ele próprio em meu coração.

Era “Seu” Eurípedes, que me abraçou e reconfortou-me dizendo que a Lei fora cumprida e que não me faltaria o descanso para o refazimento, nem a paz de que necessitada para refazer-me.

Dormi, então, longamente, porque não vi mais nada.

Reconheci a morte do corpo sem sofrimento e sem aflição. Desde o momento em que me reconheci de novo, estou numa Escola-Hospital, reaprendendo a orientar-me. Já fui à nossa casa, muitas vezes, e agradeço as preces de todos, com as quais me ajudam a reabilitar-me mais depressa em meu corpo espiritual.

Imagine, mamãe… Quero escrever muito, mas as forças não dão. Peço ainda aos benfeitores me ajudem sustentando-me ainda alguns momentos.

Quero pedir-lhe para não guiar carro por enquanto, e para não pegar no volante até que já esteja refeita. Saiba que estamos ligadas ainda.

Rogo-lhe, mamãe, não guie carro nos tempos próximos e peça por mim ao Miguel não ficar pensando em acidente com ele, como se estivesse inconscientemente a provocá-lo.

Ele precisa viver e viver muito. Quando eu puder auxiliarei a ele no encontro da moça que o fará muito mais feliz do que eu, se fosse eu aquela que devesse compartilhar-lhe a vida pela bênção de Deus.

Deus e o tempo nos auxiliarão, se não deixarmos de contar com Deus e com o tempo.

Rogo à Célia dizer aos nossos amigos de Belo Horizonte para que não se aflijam por mim. Tudo foi simples, embora mais doloroso para os meus familiares queridos, que para mim própria. Estou bem.

Saudade é plantação da vida em qualquer lugar, mas a saudade é boa, mãezinha, quando fazemos dela paz e esperança.

Mamãe, ajude também por mim nas obras de amor ao próximo, em Sacramento. Sei que a senhora fará como sempre a sua parte e que fará agora, por mim, a tarefa que desejo tanto empreender e realizar por seu carinho e por suas mãos.

Não desejo afastar-me muito da nossa vida e de nosso amor, mas aqui me dizem que, para isso, é preciso encontrar serviço do bem na Terra e alguém que conosco nos auxilie a fazê-lo.

Mamãe, guarde-me no seu coração e vamos nós duas abraçar as crianças necessitadas, auxiliando-as como pudermos. Abraços à senhora e ao papai, com a nossa querida Heloísa e com todos de casa.

Rogo a Célia beijar a Sandra por mim.

Não posso escrever mais.

Mamãe, receba com todo o meu carinho e respeito, confiança e ternura, o coração reconhecido da sua filha


(Uberaba, 17 de novembro de 1972)



Rosângela Afonso da Silva, filha de Adelino Alves da Silva (já desencarnado), e de D. Luíza Afonso da Silva, nasceu em Sacramento, Estado de Minas Gerais, a 16 de abril de 1952, partindo para a Espiritualidade, em consequência de desastre automobilístico, nas adjacências de sua cidade natal, como se pode compreender da própria mensagem recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, a 29 de setembro de 1972.

Jovem que conquistara imenso círculo de amizades, Rosângela, segundo um seu familiar entrevistado, era de alegria contagiante, desprendida, muito afeiçoada com todos, principalmente com os mais humildes.

“Estreitamente ligada ao Lar de Eurípedes”, — diz-nos outra entrevistada, Corina Novelino, — “Rosângela estava sempre presente aos movimentos confraternizadores espíritas, embora não professasse a Doutrina de Kardec. Apesar disso, mostrava-se interessada nos princípios espíritas, o que demonstrava através de indagações. Alma sensível, profundamente afeita ao Bem, participava de nossos trabalhos de assistência, especialmente na 5ila Sinhazinha, que frequentava com assiduidade, levando alimento e roupas às velhinhas ali abrigadas.”

Tendo realizado o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena Júnior e o secundário no Ginásio Allan Kardec, cursava o primeiro ano colegial quando de sua desencarnação, Rosângela, no dizer de seu pai, hoje residente no Além, “era estimada e respeitada por todos e a cidade inteira era para ela uma só família”.

Um sonho premonitório de Corina Novelino, três dias antes do desastre fatal, que vem confirmar a posição de Rosângela junto ao cruzeiro, onde fora orar, e o fato da própria Rosângela afirmar, vez por outra, à sua genitora, que “não alcançaria os vinte e um de idade”, confirmam que “tudo devia acontecer como naquela tarde em que me consagrei inteiramente à prece”.


Três pontos importantes se destacam do Caso Rosângela:

1º) por que em tão curto espaço de tempo, o Espírito compareceu, através da instrumentalidade mediúnica de Chico Xavier, para transmitir sucessivamente três mensagens aos familiares presentes? A nosso ver, para consolar de modo efetivo, especialmente o pai, cuja desencarnação já estava prevista, no Mundo Espiritual, para breve, e que se verificou em 13 6:1973;

2º) as referências aos irmãos ainda encarnados — Heloísa Afonso da Silva, Tomásia Silva Oliveira, Roberto Aluísio da Silva e à amiga D. Célia, de Belo Horizonte;

3.°) além do que se relaciona com Eurípedes Barsanulfo, o Apóstolo do Triângulo Mineiro, e às irmãs Tia Amália e Tia Mariquinha, curiosa alusão ao encontro com o irmão Tomé, “que cresceu tanto”, desencarnado aos nove anos de idade, isto é, em 1954, dezoito anos antes. Seu nome completo: Tomé Afonso da Silva.


Confortadora, sem dúvida, a primeira mensagem de Rosângela. Que cada um de nós se prepare, condignamente, para quando tiver que se ver em duplicata, frente a frente consigo mesmo, no Mundo Maior.