Estante da Vida

Capítulo XXXIII

Missiva fraterna



Meu amigo. Alega você dificuldades para prosseguir nas atividades do seu trabalho. Médium interessado em servir à Doutrina Consoladora, você começou a tarefa, tomado de amor pela causa que hoje nos irmana, à frente do combate contra as sombras da morte.

O calor com que seu coração abraçou os compromissos assumidos encorajou companheiros abnegados, deste mundo e do outro, à colaboração no roteiro que orientadores de Mais Alto nos traçaram ao espírito.

Os dias correram sobre os dias. Desdobraram-se os anos.

Tolerou você a curiosidade de investigadores agressivos e a aflição dos necessitados diferentes que lhe bateram à porta.

Entre as exigências da vida material e as requisições da espiritualidade, compreendeu que o trabalho, por mais rude, é sua bênção, e aceitou-o, feliz. Quando você pode atender aos que lhe procuram as faculdades, é interpretado por santo; e quando não lhe é possível satisfazer as reclamações particulares, é designado por demônio orgulhoso. No íntimo, porém, você sempre reconheceu que não é anjo, nem diabo. Sabe que é personalidade comum, com obrigações de enfrentar o padeiro e o farmacêutico, no fim do mês, de cédulas na mão, a fim de resgatar as próprias contas. Compelido a medicar os pulmões e os olhos, o fígado e os rins, frequentemente você está informado de que não é nenhum privilegiado da Graça Divina. Se você pular do terceiro andar de um prédio, arrebentará o crânio, na certa, e, se ingerir demasiada porção de molho apimentado ao almoço, não ignora que a cistite o visitará, sem perda de tempo.

Você sabe disso, mas quantos companheiros lhe traduziram o esforço por santidade?

Muitos vivem consertando os óculos, duas vezes por semana, mas admitem que você, materializado na Crosta da Terra, em condições idênticas às deles, de conformidade com as mesmas leis, jamais experimentará modificações na máquina orgânica, não obstante os anos de serviço intensivo das possibilidades mediúnicas, colocadas na prática do bem.

Naturalmente, embrenham-se em tais concepções, por entusiasmo da fé vibrante que lhes renova o peito, mas você não é nenhum general prussiano que pretenda ocultar a enxaqueca para manter o estado de guerra na juventude.

Assumindo o serviço proporções assustadoras e ouvindo repetidas referências dos companheiros, relativamente aos deveres que lhe competem, você treme, com razão, diante das perspectivas que o trabalho desdobra.

Como enfrentar o público necessitado e exigente se suas energias reclamam refazimento? como atender a todos, satisfazendo as múltiplas requisições da vida particular? como pairar no plano absolutamente idealístico, se você precisa escovar os dentes, aparar as unhas e comprar comprimidos para a dor de barriga dos sobrinhos?

Sussurram-lhe aos ouvidos que você guarda responsabilidades mais vastas, que você é obrigado a revelar-se em esfera superior à de seus irmãos do caminho, que você… que mais? Há quem o procure, acreditando buscar um plenipotenciário celeste, fazendo questão de ignorar as provações benfeitoras que lhe seguem a existência tão comum como a de qualquer alma encarnada, que chora, suarenta, na Terra…

Não acredite, contudo, nas afirmativas ou nas suposições dos companheiros desprevenidos de maior entendimento. De outro modo, seria alimentar a vaidade injustificável no coração.

Você é um trabalhador tão falível, quanto os demais, e, quando admitir o contrário, estará contra a Lei que nos rege os destinos.

Quem preferir a idolatria barata, cultive-a pela estrada do mundo, até que a experiência lhe esfacele os ídolos de barro.

Não se julgue detentor de responsabilidades especiais.

O dever é patrimônio comum a nós todos, porque a bênção divina não felicitou exclusivamente a sua cabeça. A obrigação de compreender a Lei do Supremo Senhor e servi-la constitui imperativo tão amplo como é infinita a dádiva da luz solar que envolve justos e injustos, gratos e ingratos.

Pense nisso e descanse o crânio atormentado. Não aceite qualquer título de orientador dos outros, quando é obrigado a fazer prodígios para não desorientar-se.

Trabalhe, sirva ao próximo, colabore na extensão do bem, quanto estiver ao alcance de seus recursos limitados, mas reerga suas forças orgânicas, melhore as suas condições físicas e não se acredite embaixador extraordinário do Cristo.

Quando o Mestre enviou os discípulos aos trabalhos terrestres, não individualizou as recomendações.

“Eis que vos mando”. “Ide”. (Lc 10:3) Semelhantes determinações foram pronunciadas por Ele.

A construção do Reino de Deus, no aprimoramento espiritual, é obra de cada um, mas o trabalho da coletividade pertence a todos.

Não monopolize, pois, os serviços de doutrinação e fuja dos pedestais. Lembre-se de que se você furar um pântano, por despreocupação ou necessidade, chegará ao outro lado, tão imundo, como qualquer empregado municipal.

Você é humano e não deve esquecer sua condição. Trate de garantir, quanto lhe for possível, os elementos vitais do corpo de carne, sua vestimenta provisória.

Atenda ao equilíbrio, com serenidade e perseverança. Não lhe faltarão recursos e providências às dificuldades naturais.

Quanto a mim, servo inútil embora, repetirei aos seus ouvidos aquele trecho de certa música popular brasileira: — “eu vou ver o que posso fazer por você”.


(.Humberto de Campos)