Estante da Vida

Capítulo IX

A lenda do poder



A assembleia familiar comentava a difícil situação dos Espíritos revoltados que se habituam ao azedume crônico por vasta fieira de encarnações sucessivas, quando João de Kotchana, experimentado instrutor de cristãos desencarnados, nas regiões da Bulgária, contou-nos, entre sensato e otimista:

— Temos nós antiga lenda que adaptarei ao nosso assunto para a devida meditação… Dizem que Deus, quando começou a repartir os dons da vida, entre os primeiros homens dos primeiros grandes agrupamentos humanos constituídos na Terra, decretou fosse concedido aos Bons o Poder Soberano.

Informados de que o Supremo Senhor estava fazendo concessões, os Corajosos acudiram apressados à Divina Presença, solicitando o quinhão que lhes seria adjudicado.

— Que desejais, filhos meus? — indagou o Eterno.

— Senhor, queremos o Poder Soberano.

— Essa atribuição — explicou o Todo-Misericordioso — já concedi aos Bons; eles unicamente conseguirão governar o reino dos corações, o território vivo do espírito, onde se exerce o poder verdadeiro.

— Ah! Senhor, e nós? que será de nós, os que dispomos de suficiente ousadia para comandar os distritos da existência e transformá-los?

— Não posso revogar uma ordem que expedi — observou o Onipotente —; entretanto, se não vos posso confiar o Poder Soberano, concedo-vos um encargo dos mais importantes, a Autoridade. Ide em paz.

Espalhou-se a notícia e vieram os 1ntelectuais ao Trono Excelso.

O Todo-Poderoso inquiriu quanto ao propósito dos visitantes e a resposta não se fez esperar:

— Senhor, aspiramos à posse do Poder Soberano.

— Impossível. Essa prerrogativa foi concedida aos Bons. Só eles lograrão renovar as outras criaturas em meu nome.

E porque os 1ntelectuais perguntassem respeitosamente com que recurso lhes seria lícito operar, Deus entregou-lhes o domínio da Ciência.

Veio, então, a vez dos Habilidosos. Com vasta representação, surgiram diante do Pai e, como fossem questionados quanto ao que pretendiam, responderam veementemente:

— Senhor, suplicamos para nós o Poder Soberano.

O Todo-Bondoso relacionou a impossibilidade de atender, mas deu-lhes o Engenho.

Depois, acorreram os 1maginosos ao Sagrado Recinto e esclareceram que contavam para eles com a mesma cobiçada atribuição.

O Todo-Amoroso respondeu pela negativa afetuosa; no entanto, brindou-os com a luz da Arte.

Logo após, os Devotados chegaram ao Augusto Cenáculo e rogaram igualmente se lhes conferisse a faculdade do mando, e recolheram a mesma recusa, em termos de extremado carinho; contudo, o Todo-Misericordioso outorgou-lhes o talento bendito do Trabalho.

Em seguida, os Revoltados, que não procuravam senão defeitos e problemas transitórios na obra da Vida — os problemas e defeitos que Deus sanaria com o apoio do Tempo, de modo a não ferir os interesses dos filhos mais ignorantes e mais fracos —, compareceram perante o Supremo Doador de Todas as Bênçãos e, em vista de se mostrarem com agressiva atitude, a voz do Pai se fez mais doce ao perguntar-lhes:

— Que desejais, filhos meus?

Os Revoltados retrucaram duramente:

— Senhor, exigimos para nós o Poder Soberano.

— Isso pertence aos Bons — disse o Todo-Sábio —, pois somente aqueles que dispõem de suficiente abnegação para esquecer os agravos que se lhes façam, prosseguindo infatigáveis no cultivo do bem aos semelhantes, guardarão consigo o poder de governar os corações… No entanto, meus filhos, tenho outros dons para conceder-vos…

Antes, porém, que o Supremo Senhor terminasse, os ouvintes gritaram intempestivamente:

— Não aceitamos outra coisa que não seja o Poder Soberano. Queremos dominar, dominar… Fora do poder, o resto é miséria…

O Onipotente fitou cada um dos circunstantes, tomado de compaixão, e declarou, sem alterar-se:

— Então, meus filhos, em todo o tempo que estiverdes na condição de Revoltados, tereis convosco a miséria…


E, desde essa ocasião, rematou Kotchana, todo Espírito, enquanto rebelado, não tem para si mesmo senão o azedume da queixa e a penúria do coração.


Ouvi a lenda, retiro o ensinamento que me toca e ofereço a peça aos companheiros reencarnados na Terra, que porventura sejam ainda inutilmente revoltados quanto tenho sido e já não quero mais ser.


(.Humberto de Campos)