Evangelho em Casa (Novo Projeto)

Primeira reunião



Encorajada pelo esposo, Dona Zilda, naquele belo domingo de abril, colocou sobre a mesa a melhor toalha de que dispunha.

Alinhou dois livros carinhosamente tratados — um exemplar do Novo Testamento e outro de O Evangelho segundo o Espiritismo. Em seguida, trouxe pequeno vaso com água pura.

Soaram seis horas da tarde.

O Senhor Veloso, chefe da família, entrou no aposento, acompanhado de Lina e Cláudio, filhinhos do casal, quase meninos, e de Marta, jovem servidora que parecia ter mais de vinte anos de idade.

Dona Zilda perguntou pela filha mais velha, Sílvia, e por Dona Júlia, a irmã viúva que residia junto deles, na mesma casa.

Veloso, porém, notificou que ambas se haviam esquivado. Não desejavam partilhar o novo hábito doméstico.

Sem mais demora, como se todos já houvessem estabelecido o propósito de a ninguém reprovar, o pequeno grupo assentou-se tranquilo.

Pairava brando silêncio, quando Veloso ergueu a voz e orou, comovido.



Senhor Jesus!

Quando Deus não é colocado por centro de nossa vida, perdemos o rumo, quais viajores que se distanciam da luz, caindo nas trevas… E és entre nós, Senhor, a imagem mais fiel do Pai que nos criou.

Para nos reunires a Ele, deste-nos em teu Evangelho de amor o caminho da redenção. Concede-nos, assim, a força de percorrê-lo! Inspira-nos a compreensão de tua palavra, porquanto sabemos que o Reino de Deus, como felicidade eterna, há de começar em nós mesmos.

Guia-nos, Mestre, e ajuda-nos a entender-te a vontade! Assim seja.



Finda a prece, solicitou Veloso que a filhinha abrisse o Novo Testamento ao acaso.

Efetuada a operação, Lina passou o livro ao exame paterno. O diretor da pequenina assembleia deteve-se, por momentos, contemplando a fisionomia da página, e leu, depois, o versículo 14, do capítulo 4, nos apontamentos do Apóstolo João Evangelista: (Jo 4:14)

“Mas, aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.”

Logo após, atendendo à recomendação do esposo, Dona Zilda consultou O Evangelho segundo o Espiritismo, igualmente ao acaso, e leu nas “Instruções dos Espíritos”, do capítulo XVII, a mensagem de Lázaro, intitulada “”.



Feito silêncio, Veloso analisou, sereno:

— Em nossa reunião temos o objetivo de estudar os ensinamentos do Cristo, de modo a percebermos com mais segurança o quadro de nossas obrigações.

Aceitamos a Doutrina Espírita, em nome de Jesus; entretanto, como dignificá-la, sem conhecimento das lições do. Divino Mestre?

Na informação do evangelista, diz o Senhor: “Quem beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque essa água se fará nele qual fonte de água viva.”

Anotamos, em seguida, nos ensinamentos coligidos por Allan Kardec, a palavra de Lázaro quanto à excelência do dever como “lei da vida”.

Naturalmente, aludindo à água que nos oferta, reportava-se Jesus aos princípios redentores de que se fez mensageiro.

Quem lhes absorva a essência sublime decerto se renovará integralmente, abrindo novo caminho aos próprios pés.

E, ligando a promessa do Senhor à conceituação da mensagem lida, reconheceremos claramente que Jesus não apenas nos reconfortou a existência física, descerrando-nos luminosa esperança ao sentimento ou curando-nos os corpos doentes, mas, acima de tudo, nos traçou normas de ação, ante as quais nos compete aperfeiçoar o senso de disciplina.

A fim de compreendermos semelhante verdade, estampou as suas instruções em sua própria conduta.

Desceu das Esferas Superiores, sem preocupar-se com a dureza de nossos corações, e distribuiu amor e luz com todas as criaturas.

Começou, no entanto, pelos mais infortunados e mais tristes.

Andou entre os homens sem deles exigir considerações e privilégios.

Nasceu numa estrebaria e morreu numa cruz.

Amparou a quantos lhe partilharam a marcha, sem pedir agradecimento ou moeda.

Todavia, cada máxima que lhe saiu da boca representa um artigo da Lei Divina para a edificação do Reino de Deus entre nós.

O Reino de Deus inclui, porém, todo o Universo. Assim, pois, onde palpite a consciência, seja na, Terra ou noutros mundos, os princípios de Jesus constituem a religião viva.

Não é difícil, desse modo, apreender que o Celeste Amigo demarcou-nos a estrada real para a verdadeira felicidade, assim como estendemos trilhos sólidos, de acordo com a experiência da engenharia, para que a locomotiva alcance a meta.

Que acontece, entretanto, ao comboio que abandona as linhas da via férrea? Descarrila, provocando desastres. Ameaça a vida dos passageiros, além de estragar a si próprio.

Interpretemos nossos desejos e ideais, tarefas e obrigações, como sendo passageiros que transportamos conosco, e façamos de nossa mente o maquinista.

Se o maquinista não obedece às regras instituídas para a viagem, que é a nossa própria existência, converte-se a vida em aventura perigosa, na qual arruinamos os interesses e aspirações de que sejamos depositários, e perturbamos, consequentemente, a nós mesmos.

As lições de Jesus, portanto, indicando-nos a bondade e o serviço, a paciência e a humildade, a caridade e o perdão, expressam a senda que nos cabe trilhar, se quisermos viver em harmonia com a Lei de Deus.



Terminando o comentário, Veloso explicou que seria interessante uma palestra rápida, a fim de que as ideias do “culto evangélico” fossem colocadas em movimento.

Depois da troca de expressivo olhar com a mãezinha, foi Lina quem tomou a iniciativa, perguntando:

— Papai, por que motivo não temos um retrato de Jesus, diante de nós, em nossas preces?

E o entendimento estabeleceu-se, afável.

VELOSO — Filhinha, decerto não somos contra o trabalho artístico que mentaliza o Divino Mestre nas telas e esculturas que encontramos a cada passo, e um lar espírita pode guardar perfeitamente semelhantes recordações, sempre que não atentem contra a dignidade do Senhor e contra o respeito que devemos à obra cristã; contudo, nas atividades de nossa Doutrina, dispensamos apetrechos materiais, a fim de que não olvidemos a presença do Eterno Amigo dentro de nós mesmos.

CLÁUDIO — E a água, papai?… Por que a água na mesa?

VELOSO — Meu filho, a água é, reconhecidamente, um dos corpos mais sensíveis à magnetização. Nessa condição, armazena os recursos balsamizantes e curativos que nos são trazidos pelos Emissários Divinos ou por nossos Amigos Espirituais, em visita ao nosso recinto de orações.

LINA — Se tia Júlia mora conosco, não compreendo as razões por que se afasta de nossas preces.

D. ZILDA — Júlia tem ideias religiosas diferentes das nossas.

LINA — E Sílvia?

VELOSO — Sílvia é hoje uma jovem com vinte anos. Cresceu sem que lhe dedicássemos qualquer cuidado ao problema da fé. Quando pequenina, Zilda e eu, muito inexperientes em matéria de responsabilidade, confiamo-la à guarda moral de Júlia. Não podemos agora reclamar-lhe uma atitude para a qual, em verdade, não a preparamos. (E sorrindo) — Segundo é fácil de notar, estamos começando o nosso culto do Evangelho em casa com um atraso de vinte anos…

CLÁUDIO — Com que fim precisamos estudar o Evangelho?

D. ZILDA — Para melhorar o coração, meu filho; para aprendermos que todos somos filhos de Deus e que devemos viver no mundo como irmãos uns dos outros.

MARTA — Para cumprirmos nossos deveres com alegria.

CLÁUDIO — Quer dizer (e fez um rosto brejeiro) que Lina não deve rusgar tanto com a empregada.

VELOSO — Meu filho, retifique a expressão. Marta não é nossa empregada, como se fora nossa escrava, e você se referiu a ela em tom de desprezo. É um erro ferir, mesmo sem intenção, aqueles que trabalham conosco, tratando-os como se estivessem em posição inferior. Marta é valiosa cooperadora de nossa casa, quanto sua mãezinha é abnegada auxiliar no estabelecimento de ensino a que presta serviço e quanto seu pai é colaborador no escritório de que recebe o pão. Sem que as mãos dela nos preparem a mesa, ser-nos-á difícil o desempenho das nossas obrigações.

D. ZILDA — Nosso culto do Evangelho é, assim, um meio para nos sentirmos mais compreensivos. Nem Lina precisa agastar-se com Marta nem nós mesmos uns com os outros. A alegria nascerá em nosso lar, do trabalho em conjunto. A cada qual de nós cabe o máximo de esforço para que a bondade e a ordem, o serviço e a gentileza permaneçam aqui com todos, para que a felicidade, brilhando conosco, se irradie de nós para os que nos cercam.



Findo o entendimento geral, Veloso disse:

— Concluamos nossos estudos, cada semana, com alguma nota que nos enriqueça a meditação.

Nesse sentido, lembro-me hoje de uma lenda que pertence ao pensamento mundial. Adaptando-a às nossas necessidades, nomeá-la-ei:


Certo rei muito poderoso, sendo obrigado a longa ausência, tomou de grande fortuna e entregou-a ao filho, confiando-lhe a incumbência de levantar grande casa, tão bela quanto possível.

Para isso, o tesouro que lhe deixava nas mãos era suficiente.

Acontece, porém, que o jovem, muito egoísta, arquitetou o plano de enganar o próprio pai, de modo a gozar todos os prazeres imediatos da vida.

E passou a comprar materiais inferiores. Onde lhe cabia empregar metais raros, utilizava latão; nos lugares em que devia colocar o mármore precioso, punha madeira barata, e nos setores de serviço, em que a obra reclamava pedra sólida, aplicava terra batida…

Com isso, obteve largas somas que consumiu, desorientado, junto de amigos loucos.

Quando o monarca voltou, surpreendeu o príncipe abatido e cansado, a apresentar-lhe uma cabana esburacada, ao invés de uma casa nobre.

O rei, no entanto, deu-lhe a chave do pequeno casebre e disse-lhe, bondoso:

— A casa que mandei edificar é para você mesmo, meu filho… Não me parece a residência sonhada por seu pai, mas devo estar satisfeito com a que você próprio escolheu…

Após ligeira pausa, Veloso advertiu:

— O conto impele-nos a judiciosas apreciações, quanto ao cumprimento exato de nossos deveres.

Comparemos o soberano a Deus, nosso Pai.

O príncipe da história poderia ter sido qualquer um de nós.

A fortuna para construirmos a moradia de nossa alma é a vida que Deus nos empresta.

Quase sempre, contudo, gastamos o tesouro da existência em caprichosa ilusão, para acabarmos relegados, por nossa própria culpa, aos pardieiros apodrecidos do sofrimento.

Mas, aqueles que se consagram à bênção do dever, por mais áspero que seja, adquirem a tranquilidade e a alegria que o Supremo Senhor lhes reserva, por executarem, fiéis, a sua divina vontade, que planeja sempre o melhor a nosso favor.



Atendendo à solicitação de Veloso, Dona Zilda orou, no encerramento:

— Senhor, agradecemos a riqueza que nos concedeste, a exprimir-se no lar que nos reúne.

Aqui nos situaste por amor, para que aprendamos a servir ao próximo, servindo a nós mesmos.

Inspira-nos resoluções elevadas, a fim de que a correção no desempenho de nossos deveres nos faça mais felizes e mais úteis.

Não permitas, Jesus amado, venhamos a esquecer as nossas obrigações, perante os teus ensinamentos, e abençoa-nos, hoje e sempre. Assim seja.


Dona Zilda distribuiu a água cristalina em pequenas porções com os familiares, enquanto a alegria lhes clareava o semblante. E Veloso, satisfeito, notou que Lina abraçava Marta, pela primeira vez, de modo diferente…