De todos os viajantes que atravessam o rio da morte, sem dúvida é o sacerdote aquele que mais se surpreende, ante o inesperado painel da realidade além-túmulo.
A pompa do culto externo entre os homens constitui para ele algo mais que o título e a condecoração para um general vitorioso na Terra; porque o militar, ainda o mais duro, sempre se dobra às injunções da disciplina humana e não espera a conservação de suas medalhas nas remotas cidades do Paraíso, ao passo que o clérigo, iludido pela própria vaidade, invariavelmente presume-se eleito para a Corte Celestial.
Em razão disto, o sopro da verdade é para ele mais frio, quando o corpo alquebrado se confunde com o pó.
Nossa pequenez, diante da vida, adquire então estarrecedor aspecto, e reconhecemos, com tardio arrependimento, que a religião é viveiro de almas, não cárcere do pensamento.
Algo de terrível sucede conosco no indescritível instante…
O sacerdote, no fundo, julga-se um salvador de consciências, com teorias próprias acerca do Inferno e do Céu; mas a morte é sempre a ventania arrasadora que lhe arrebata a veste e os símbolos materializados da fé, exibindo-o nu aos olhos espantados do rebanho que ele pretendera doutrinar e conduzir.
Ai de nós, que olvidamos o Mestre seminu sobre o madeiro!
Quando a túnica das boas obras não nos agasalha o espírito desiludido, é mister vestir a pesada armadura do remorso, com infinita humildade, para recomeçar o amanho da sementeira.
Nem sempre, porém, há suficiente provisão de virtude no coração para o serviço renovador, e muitos, quais tigres feridos, regressam aos recôncavos da mata humana, expandindo a revolta e o sofrimento moral, de que se cumularam, em atos de ferocidade, como se lhes fora consolo vingar em outros o pavoroso infortúnio que devem a si mesmos. Dispostos à rebelião, arregimentam as ovelhas frágeis, sob o mesmo critério do número, criando legiões atormentadas, que, intangíveis, povoam os templos com espectros de dor, miséria, ignorância e desespero, nutrindo e exacerbando as velhas angústias do povo.
Não nos deteremos, porém, no analisar essas legiões sombrias e tristes, prostradas na sombra, senão que nos valemos da oportunidade que se nos oferece para alertar algum irmão onerado de compromissos graves, considerando que, incontestavelmente, a Igreja não pode modificar sua organização dum dia para outro.
Que louco se abalançaria a demolir um velho cais, sem haver antes levantado outra edificação à altura das necessidades comuns, simplesmente porque se aperfeiçoara a técnica da engenharia?
Que precipitado doutrinador violentará o espírito da criança, impondo-lhe os conhecimentos dum sábio?
Nada é proveitoso à vida, sem trabalho ou sem preparação. Ao nosso parecer, não vale esbarrondar na instituição católico-romana, a golpes de anticlericalismo.
O duelo não cura, senão aviva os arranhões da honra, em qualquer caso evertendo a existência dos contendores.
Que existiram e ainda existem maus padres, quem o negaria?
O mundo, por enquanto, não possui tratos de terra especial e diferente para que se mantivessem jardins inacessíveis aos vermes. Por mais que nos dediquemos à cultura carinhosa de plantas nobres, lá surge um dia em que a lagarta ou o gafanhoto nos persegue as flores e os frutos, agravando-nos os cuidados e as preocupações.
É indubitável que a Igreja tem errado muito, na sua estrutura política, comprometendo a evolução da ideia religiosa, não só pela embriaguez de domínio que assinalou muitos príncipes do poder eclesiástico no passado, como também pelo relaxamento espiritual que a levou a descurar do aspecto científico das coisas do espírito.
É imperioso, porém, notar que o templo e o sacerdote são ainda os sagrados pontos de referência para milhões de almas ignorantes e fracas, errantes nas velhas trilhas da experiência carnal.
Muitos salientam os delitos do confessionário, mas poucos enxergam as consolações e as bênçãos, os estímulos e as alegrias aí nascidos, a troco da amargura e do sacrifício de abnegados campeões da fé, constrangidos a incessante renúncia pelas necessidades populares e pelas exigências dos princípios hierárquicos,. entre a miséria dos pequenos e a opulência dos grandes.
A esses padres honestos e admiráveis, espalhados no turbilhão das cidades babilônicas ou esquecidos na singeleza dos campos, e que fazem dos votos contraídos a razão da própria vida, dirijo o meu pensamento de carinho e de veneração para dizer-lhes que, se a morte é uma grande surpresa para quantos levantaram o sagrado cálice, à frente do altar, a virtude é sempre a mesma divina moeda de luz nos mais remotos centros da vida.
Jesus não permanece muito tempo junto daqueles que lhe consagram hosanas, mas algemados ao formulário e despreocupados do verdadeiro bem; vive sempre, por seus emissários, onde a caridade e a educação se traduzam em ações dignificantes que objetivem o progresso e a felicidade de todos, independentemente do credo individual.
Ninguém está em condições mais favoráveis que o padre sincero, para estabelecer a felicidade legítima da multidão.
Não é desencadeando a discórdia que se mantém a fé, nem cevando a ignorância que se conserva a harmonia.
Ninguém se valha da sanguissedenta espada da tirania, nem do veneno sutil da desobediência, no intuito de auxiliar aqui ou além.
A exibição de poder gera a revolta. A indisciplina favorece a subversão.
Cristo não predicou o separatismo, antes ensinou a paciência, a tolerância e a ordem, recomendando fosse facultado ao joio o direito de crescer naturalmente, ao lado do trigo, até o dia, da ceifa. O Mestre não se declarou contra o aperfeiçoamento da alma nessa ou naquela região da vida e, sim, asseverou que somente a verdade nos fará livres; nem se insurgiu contra ninguém, tomando o partido de alguns. Aceitou, Ele mesmo, a cruz do sacrifício e da morte, indicando-nos o caminho para a ressurreição e para a vitória.
O verdadeiro programa de salvação prescinde de qualquer conflito e dispensa o dogmatismo e a rebelião.
Enquanto surgirem duelos de pontos de vista, com perturbação e desordem, nas manifestações da fé, a crença não passará da vago clarão a perder-se nas sombras do fanatismo.
A ideia religiosa é um modo de expressão espiritual, tanto quanto a linguagem. Cada qual adora o Senhor segundo sua capacidade de elevar-se nos domínios da conhecimento e da virtude.
A igualdade absoluta, no plano das potencialidades e das aquisições relativas, é absurdo insofismável. Em razão disso, tão digno de lástima é o sacerdote que condena, quanto o crente que o amaldiçoa.
Aquele que realmente desperta para o bem e deseja colaborar na felicidade comum, põe os atos muito acima das palavras; cultiva o discernimento e afasta de si qualquer pensamento agressivo ou ocioso, compreendendo que a obra da regeneração de cada um requer a ação do tempo e o concurso direto de quantos já formam a vanguarda do progresso moral.
Reconhecendo a posição ideal do padre para orientar o serviço iluminativo da caridade cristã, não devemos esquecer a cooperação devida a todo e qualquer missionário do bem, consagrado à renúncia de si mesmo, a fim de acender nova luz na senda dos homens.
Lei nenhuma, ainda que a melhor, tem qualquer significação onde ninguém se disponha a cumpri-la.
Não será lícito concentrar as responsabilidades da construção do bem de todos na cabeça de um só. O serviço da comunidade exige divisão e descentralização.
Consagrar o espírito ao apostolado com Jesus, é dever.
Quem se interessa, efetivamente, pela prosperidade popular não suspira pela galeria dourada dos grandes encargos públicos, nem reclama vasto patrimônio amoedado, os quais, na maioria das vezes, são verdadeiros empecilhos ao ascendimento do coração ao Reino Divino.
É indispensável descerrar a alma às alegrias do serviço do bem, partilhando com os outros a experiência de cada dia.
Convertamos, assim, as naves dos templos em abrigos providenciais da legítima fraternidade, que recolham os enfermos, os fracos, os desamparados da Terra, os tristes, os desesperançados e as criancinhas sem lar; consolidemos nos santuários o trabalho da assistência social e da escola ativa, para que a Igreja represente o papel de orientadora maternal das criaturas, não só nos breves instantes do ofício religioso, mas igualmente pelo tempo a dentro, correspondendo aos anseios do povo que procura em suas diretrizes a segurança e a paz.
Desejamos, porém, que tais modificações nasçam, não de encíclicas e pastorais, mas, sim, espontaneamente, do coração.
A elevação comum é problema da unidade.
Procede o renascimento moral de indivíduo para indivíduo
O pastor é o núcleo do rebanho, a cuja inspiração as ovelhas obedecem, gravitando em torno de suas deliberações.
O sacerdote de uma paróquia é a alma dela mesma. Ele pode, mais do que ninguém, entender-se com os mais velhos, amainando a ventania que sopra do passado, e conversar com os mais jovens, preparando o futuro. Em torno dele se espraia largo mundo de trabalho e de esperança, que lhe não cabe menosprezar.
Todo êxito, contudo, depende da compreensão e do discernimento, do bom senso e da boa vontade.
As renovações indiscutivelmente benéficas da História não se originam da rebelião. O maior movimento transformador do mundo ainda é o Cristianismo, cujo fundador se deixou crucificar, ao invés de reclamar e ferir.
Se o sacerdócio da atualidade quiser operar a renascença do espírito popular, antes que o progresso natural lha imponha, é imprescindível se devote à concretização do Evangelho, na missão de instruir e consolar, em nome do Senhor. Para isto, porém, é necessário estender os braços e apertar alheias mãos em atitude compreensiva, reduzindo a escombros as velhas trincheiras da intolerância e da discórdia.
Deus é o Pai de todos os membros da família humana e das mínimas formações da Natureza, e não podemos esquecer, na Terra, que o Cristo é o mesmo para todos, embora nem todos possam assinalar por agora, a influência do Messias.
A escada evolutiva e a luta regeneradora apresentam degraus e fases de magnífica expressão. Cada homem recebe o sol e o ar, segundo a altitude em que se coloque.
Observado de ângulo mais alto, o ministério da Igreja, em suas bases cristãs, cresce e se avoluma no tempo e no espaço, mas ai de nós quando mordomos distraídos de nossas responsabilidades na aplicação de seus tesouros imperecíveis! Nessa condição, por mais hipertrofiados estejamos na ilusão dos postos e dos títulos, reduzimo-nos à insignificância dos servos inúteis, porque todos os monumentos da vaidade humana se esboroam e se tornam em pó ao vendaval da morte. Então, cambaleamos no bojo das trevas, fantasmas de ruína espiritual que só a força da prece restaura.
Profunda comiseração nos possui ante os colegas que ainda jazem nas sombras, e é por isso que, entendendo agora, mais do que nunca, a puerilidade dos dogmas, a necessidade de melhor discernimento, a vacuidade das honras e a substância, dos dons divinos, regressamos do sepulcro para dizer aos velhos companheiros do breviário que a Coroa da Vida, para acomodar-se à nossa cabeça, reclama esforço mais amplo na disseminação das boas obras.
Efetivamente, a instituição católico-romana, no que se refere às suas ligações legítimas com o Mestre Divino, não morrerá. O tempo lhe reorganizará os quadros e lhe refundirá os regulamentos, tanto lhe alterando a vida e os valores, quanto a charrua modifica a paisagem; mas não podemos esquecer que o sacerdote genuinamente cristão, onde estiver, desde hoje, pode afeiçoar-se a Jesus e propagar-lhe o divino apostolado.