Falando a Terra

Capítulo XXX

O tempo




Sombra espessa anuviava-me o pensamento…

Férreos dedos invisíveis constringiam-me o coração.

Seria a aproximação do fim do corpo? Minha consciência aturdida semelhava-se a uma avezita a esvoaçar numa furna povoada de horripilantes serpes.

De repente, no entanto, num milagre de alegria e de luz, vi-me lépido, a distância da câmara sombria, como se houvera despido a pesada túnica dum pesadelo.

O crepúsculo velava rápido o céu, e eu, por mais que ansiasse retomar o caminho do refúgio doméstico, a fim de anunciar a boa nova, sedento de comunhão espiritual no santuário do amor puro, não conseguia atinar com o rumo certo.

Seguia eu estrada diferente, em paisagem nunca vista. Larga avenida, marginada de arvoredo e flores, estendia seu piso de saibro argenteado, sobre o qual se refletiam as lucilantes estrelas.

O vento fresco brincava por entre a ramagem perfumada, que respondia em doces acordes, como se ocultasse harpas intangíveis, enquanto a noite acendia novos astros, na imensa cortina azul do firmamento.

E eu seguia, seguia sempre, colhido em êxtase intraduzível.

Meu corpo fizera-se leve e ágil como nunca, e embora sustentasse o impulso natural da marcha, comandando a mim mesmo, tinha a impressão de que jornadeava, não para satisfazer a propósito determinado, mas atendendo a inexplicável magnetismo, porque não obstante me detivesse, de quando em quando, de olhar fito nas constelações que me deslumbravam, misteriosas e belas, no lençol anilado do Infinito, caminhava, ébrio de ventura, à maneira da ave atraída para cima, presa, porém, simultaneamente, ao ninho terrestre.

Aliviado de todas as preocupações, como se houvera sorvido brando anestésico, fruía inefável solidão, quando se me deparou indescritível plenilúnio, que banhava o caminho até às mais remotas curvas…

Dir-se-ia que o astro noturno se aproximava de nós, com afagos maternais, envolvendo-nos em suas irradiações de luz prateada.

Só então percebi que não me achava isolado na viagem maravilhosa. Sob o palio da suave claridade enxerguei longa procissão de vultos silenciosos, entre os quais me perdia.

Alguns se destacavam nítidos e tão livres, quanto eu mesmo; outros, porém, se agarravam uns aos outros, como se temessem o desconhecido… Mulheres, de rosto semivelado por cendal semelhante a evanescente neblina, sustinham companheiros que me pareciam heróis repentinamente enlouquecidos, tal a expressão de beleza e de pavor que se lhes estampava no semblante inquieto, ao passo que anciãos, aureolados por tênues reflexos de luz colorida, carregavam jovens dormentes, lembrando pais orgulhosos e felizes, que amparassem filhos enfermos…

Desejei gritar a minha ventura e confundir-me entre os viajores, aos quais me sentia inesperadamente irmanado, mas veludosa mão selou-me os lábios ansiosos, enquanto, erguendo os olhos, divisei ao meu lado a presença de simpático velhinho, que me abraçava, risonho, informando:

— É inútil. Sigamos!

Onde ouvira, antes, aquela voz grave e cristalina? Em que sítio convivera com o venerando companheiro, cuja aproximação me banhava em ondas de paz indefinível? Não tive tempo de refletir, porque, de repente, soberbo espetáculo se descerrou à nossa vista.

A brilhante avenida desembocou numa praça majestosa, em cujo centro se levantava magnífico santuário coroado de flores resplandecentes.

Ladeado de torres translúcidas que varavam o zimbório estrelado, acolhia ele a multidão de peregrinos que afluíam ao interior, tomados de reverência e espanto mudos.

No recinto, misterioso e amplo, não se elevavam altares nem se mostravam dísticos de qualquer natureza; mas, ao longo das arcadas imensas, talhadas em substância lirial, qual se fora argamassa de neve, pendiam guirlandas de rosas luminosas, que em todas as direções expediam sutilíssimo aroma. Nem candelabros, nem quaisquer outros luzeiros compareciam no recinto sublime…

Cada flor parecia possuir intangível coração de luz e, todas, aos milhares, inundavam o silêncio ali reinante de verdadeiro clarão dum castelo de fadas…

No centro, erguia-se radiosa tribuna, caprichosamente esculpida e lembrando um lírio enorme, a elevar-se da base. Reflexos esmeraldinos cercavam-lhe os contornos de filigrana prateada, e sutil poeira luminescente como que descia do alto, aureolando-a de vivas fulgurações.

Centralizávamos no púlpito estranho o nosso olhar, como se ele resumisse os objetivos que nos arrebatavam até ali.

Viajantes, anônimos para mim, chegavam aos magotes, penetrando o espaçoso recinto através de todas as portas escancaradas, e, quando o santuário pareceu repleto, aveludada cavatina começou a fazer-se ouvir, enlevando-nos os corações.

Grande maioria prosternou-se, de joelhos, e, eu mesmo, de alma ferida nas cordas mais íntimas, deixei que o pranto me corresse dos olhos, recordando o lar terrestre de que me havia distanciado.

Flautas e violinos, ocultos na abóbada por tufos compactos de flores, pareciam manejados por artistas invisíveis que, a meu ver, seriam anjos enviados do paraíso…

Quando a música fundiu as nossas emoções num só impulso de alegria e de amor, reparei que láctea nuvem se fizera visível na tribuna, agora envolvida em grande halo dourado; pouco depois, essa névoa se transmudava na respeitável figura de um sacerdote, que nos estendia os braços, velados numa túnica de imácula brancura, em largo gesto de bênção.

Quem seria a singular personagem? Hierofante de mistérios remotos ou internúncio de novas revelações?

Tentei dirigir a palavra ao ancião que me acompanhava mais de perto; entretanto, o mensageiro que tão presto se materializara, ante nosso intraduzível assombro, começou a falar em tom comovido:

— Irmãos, que vos reunis neste santuário repousante, procurando a paz que vos falta na Terra, descerrai a mente ao influxo divino que desce em largos jorros das mananciais inesgotáveis da Bondade Infinita!…

Toda alma é templo vivo, que guarda ilimitada reserva de sabedoria e de amor.

Quem vos declararia deserdados dos tesouros universais, quando sublimes celeiros de bênçãos se amontoam no mundo, ao redor de vossos pés? Como não louvar o poder soberano que vos quinhoa de alegrias e possibilidades sem fim, na estrada que trilhais?

Colocados em pleno céu, sob os raios vivificantes do Sol que vos ilumina, recebestes, para a romaria da perfeição, acolhedor paraíso de graças que se renovam e multiplicam com as horas, rico de fontes que vos deliciam e de flores que se humilham diante de vossa mão.

Como descansar ou entregar-se à fadiga, quando o caminho vos reclama a energia santificante?!…

Atentai para o suprimento celestial, que sustenta os ninhos perdidos na charneca e alimenta os lírios que desabrocham no pântano! Estendei para cima os fios do pensamento!

A lâmpada que se mantenha perfeitamente ligada à sede da força produz claridade contínua e benfeitora.

Como chegastes a descrer da lei de renovação, que mantém os mundos suspensos na imensidade e revigora a corrente d’água humilde e rumorejante, aparentemente esquecida na floresta?

Toda vez que duvidais de vós mesmos, da vossa capacidade de progresso e de serviço, duvidais do Criador, que nos destinou à glória eterna!

E, apontando com a destra o Alto, exclamou:

— Vede! as constelações nas alturas se harmonizam como membros vivos da família universal! Por que não vos curvardes também, perante a harmonia que nos governa, dentro da vida majestosa e sem fronteiras?

Nesse instante, valendo-me da pausa do orador, ergui os olhos tímidos e reparei que as paredes do santuário, inclusive o teto e as torres altíssimas, se haviam transformado em matéria algo transparente, deixando perceber o sublime painel da noite embalsamada de aromas, sob os doces eflúvios de milhões de estrelas.

As rosas aumentaram de brilho e a nave emitia faiscantes cintilações.

Relanceando os circunstantes verifiquei que todos se mantinham na mesma posição de expectativa e deslumbramento.

Flores minúsculas, de tenuíssimo azul, choveram profusamente no recinto, tocando-nos de leve a fronte e desfazendo-se em perfume à altura de nossos corações, como se o Céu desejasse impregnar-nos de renovadas energias.

Insofreáveis comoções me convulsionaram o ser e uma torrente de lágrimas desabou de meus olhos…

Que mundo era esse de atmosfera estranha e rarefeita, onde o mágico poder da ideia e da palavra modificava a matéria em sua mais íntima natureza?

Lembrei-me, então, dos que deixara longe, perdidos no turbilhão da carne escura e lodacenta. Asfixiante saudade oprimiu-me o peito e tentei fugir, ébrio de alegria, para buscar os entes amados e convencê-los da certeza da vida eterna, mas o venerável sacerdote, fascinando-nos com a eloquência e a ternura que lhe fluíam do verbo inspirado, continuou:

— Que paz pretendeis neste remanso de reconforto? Não estareis, porventura, fugindo à coroa do trabalho, antecipando-vos ao justo repouso?

A cada um de vós concedeu o Senhor bendito campo a lavrar. O terreno é a escola da experiência, o arado é o corpo.

Desfrutais a bênção do lavrador que se levanta com a aurora, que semeia sem exigências, e que se louva no suor em que se purifica e engrandece?

Ignorais acaso que para receber com abundância é preciso dar com liberalidade?

Não vos pergunto aqui se dispondes de riqueza metálica para auxiliar os semelhantes, de vez que o ouro do amor jamais escasseia nos corações cheios de boa vontade. Não indago se sois livres para ajudar, porque os filhos da legítima caridade se honram na oportunidade de servir. Não cogito de vossa cultura intelectual, porquanto a Providência Celeste, antes de tudo, se utiliza daquele que faz o bem.

Em todos os séculos, respiram na Esfera dos homens as almas envilecidas que montam guarda nos tenebrosos abismos da usura, que constroem a estrada larga da liberdade destrutiva fomentando a indisciplina e que se revelam ativas nos cálculos e entorpecidas nas boas obras.

E, em tom diverso, que me abalou as profundezas do espírito, inquiriu, amorável e terrível:

— Eu vos pergunto pelo tempo, irmãos, pelo tesouro das horas que o Doador Supremo vos concedeu no desdobrar dos dias.

Pergunto-vos por essa riqueza, comum a todos, porque os minutos são uniformes para os bons e para os maus.

Cada um de nós estrutura o destino, dentro do tempo, patrimônio de Deus, que usamos segundo a nossa vontade. Somos artífices de nós mesmos, de nossa ascensão ou de nossa queda. Somos aquilo que gravamos na tela das horas.

Nossos veículos de manifestação, a saber, nossas qualidades características, tendências e dons, com todos os atributos da personalidade visível e oculta, constituem o reflexo de nossas criações interiores. Que fizestes, pois, da bênção de cada dia para vos revelardes, assim, desalentados e vacilantes?

Em todos os pontos do círculo de abençoado trabalho em que vos agitais, surgem charcos de ignorância e miséria, recrutando-vos à glória de ajudar e redimir… Chagas sanguinolentas de aflição e discórdia infestam o organismo social de que sois agentes vivos, rogando o socorro de vossa fraternidade, auxílio e perdão…

Que fizestes de vosso tempo, nas leiras de luta e de amor que fostes chamados a cultivar?

Aprendestes com o Mestre Crucificado que o maior do mundo será sempre o servo de todos? (Mc 9:35) Que espécie de serviço realizastes para exigirdes a graça do auxílio, quando sabeis que o próprio Cristo não alcançou a ressurreição de esplendores sem a cruz de trevas?

A paz não é dom gratuito e, sim, fruto divino do coração.

Crede! O Universo é a congregação infinita de sóis que se multiplicam no Ilimitado; entretanto, nunca abandonareis o cubículo da Terra sem aparelhar as próprias asas. Chumbados ao chão do Planeta, enquanto vos agarrardes ao negro visco do “eu”, exibireis mil formas no curso dos séculos, à maneira das sementes que germinam, florescem e morrem, encasuladas no solo, para nascerem de novo, em obediência às leis da Natureza que, em tudo, é o sólio externo do Altíssimo!

Proclamais a fadiga como credencial para consolo celeste; entretanto, é imprescindível conhecer a causa do vosso cansaço.

Quantas lágrimas enxugastes? quantas noites despendestes à cabeceira dos desamparados do mundo? quantas horas já destes ao triste, ao miserável, ao aflito, ao canceroso? Quantas vezes fizestes sorrir a esperança nos corações derreados pela desilusão? Quantos pensamentos de verdadeiro amor aos semelhantes emitistes nos caminhos do tempo? Quantas crianças conduzistes? Quantos irmãos sem refúgio encontraram em vosso espírito o sustento e o incentivo de viver? Quantas dores mitigastes? Quantas luzes acendestes?

Interrompeu-se o sacerdote, e as vozes de um carrilhão, que se me afigurava composto de mil sinos, ressoaram na abóbada, como se nos achássemos num encantado reduto de duendes.

As objurgatórias da elocução como que nos haviam acordado para a grandeza da vida. Extrema palidez marcava todos os semblantes. Refleti, então, nos dias longos, que deixara passar sem a bênção de um sorriso sequer aos infelizes companheiros da estrada…

Vi, dentro de mim, a procissão de rostos pávidos a desfilar, incessante, na via pública, e o choro aflitivo de milhões de crianças desprezadas penetrou-me o ádito do ser.

Revi o pretérito descuidoso e risonho, e, no lance dum simples minuto, minhalma recolheu a visão de todos os infortunados que peregrinaram em meu roteiro, sem uma réstia de esperança, relegados à fome de pão, de agasalho, de afeto e de luz… Acima do turbilhão que se desdobrava aos olhos de minha imaginação, escutava a frase bíblica, que o Senhor dirigiu a Caim, transviado: — Que fizeste de teu irmão? (Gn 4:10)

Não pude resistir, passivamente, à angústia que me tomara o íntimo. De chofre, levantei-me e saí. O mundo distante chamava-me, imperioso… Por mais que desejasse prosseguir na catedral de neve translúcida, não consegui…

A mensagem daqueles sinos desconhecidos abalava-me a consciência. Devia ser a voz da própria vida perguntando pelos minutos que eu perdera.

Ninguém me deteve. A breve trecho, surpreendi-me em pranto convulsivo, no seio infinito da noite estrelada, como se me despenhasse, lentamente, dos cimos de um palácio à profundez de insondável abismo.

O tempo!… O tempo!… Era necessário valorizá-lo, enchê-lo, de claridades e de bênçãos eternas, como quem espalha um tesouro divino para, em seguida, retornar com os galardões da vitória aos santuários da imortalidade!…

De improviso, encontrei-me no quarto, em que me aguardavam o transe final. Abri dificilmente os olhos e contemplei os rostos piedosos que me vigiavam o leito…

Quis falar e gesticular, descrevendo tudo quanto vira e ouvira no castelo revelador do Plano espiritual, mas os meus braços se mantinham imóveis e minha boca estava hirta.

Tinha eu agora esclarecimentos que não podia transmitir, notícias que era incapaz de desvelar, e sonhos que não me era dado contar… “Ó Senhor!… — pensei — poupa-me ainda…”

Mas o mesmo ancião do caminho iluminado fez-se-me visível e repetiu as palavras:

— É inútil. Sigamos!

Obscureceu-se-me o raciocínio, como se pesada sombra baixasse do alto sobre mim, e, quando me reconheci desembaraçado da carne, iniciei outra caminhada, chorando, chorando amargamente…