Família

Capítulo XII

Drama de pai



O pensamento agoniado de Paulo Silva nos buscava de longe… antes de nossa desencarnação, conhecêramos nele um menino terno e amigo.

Esperava-nos, na vizinhança, pela manhã, para dar-nos abraço enternecedor. Agora, tanto tempo escoado, seria um homem maduro.

Sim, ao revê-lo, no limiar dos cinquenta de idade, espantávamo-nos ao identificar-lhe os cabelos brancos, o corpo em terrível abatimento, o olhar embaciado de lágrimas, os gritos de louco…

Que teria ocorrido para motivar-lhe a tragédia?

A resposta, vinha em grosso diário paterno, carinhosamente guardado em mesa próxima, do qual respingamos tão somente alguns tópicos mais importantes e que alinhamos aqui, a título de estudo:


18-11-1950 — Sou pai, como sou feliz!… Recebi meu filho hoje nos braços… Meu filho!… Combinei com minha mulher, concordamos em que terá o meu nome. Será chamado Paulo Júnior.


20-2-1954 — Minha mãe julga que Cecília e eu devemos encomendar mais filhos. Não quero. Conservarei apenas meu Paulinho, meu ídolo. Terá ele tudo o que a vida não me deu…


5-3-1957 — Que felicidade ver Paulinho na escola! Uma inteligência!… Comprei hoje, em nome dele, duzentas ações de uma companhia respeitável, investimento valioso na indústria.


18-11-1958 — Aniversário de meu filho. Adquiri para ele um gleba de vinte mil metros quadrados em Jacarepaguá. Terreno de grande futuro.


11-5-1960 — Aproveitei a situação de dois amigos que estavam com a corda no pescoço e comprei para meu filho duas casas em ótimo ponto da Tijuca. Negócio de ocasião.


14-8-1960 — Sonhei com meu pai, morto há vinte anos. Coisa esquisita! Pedia-me pensar nas crianças abandonadas, nos filhos sem ninguém, nos pequenos ao desamparo. Acrescentava que eu posso e devo amar meu filho, mas sem esquecer que todos somos filhos de Deus e que o mundo está repleto de criaturas necessitadas a suplicarem socorro… Despertei assustado.

Isso tudo, porém, é bobagem. Os mortos estão mortos.

Preciso cuidar do futuro de meu filho e de nada mais.


15-4-1961 — Viva a boa sorte!… Duas viúvas em aperto me venderam as residências por ninharia. Verdadeiras mansões!

Escrituras lavradas em nome de Paulinho. Meu filho será grande proprietário.


17-6-1962 — Mais terrenos para meu filho. Duas glebas em Teresópolis.


19-7-1962 — Adquiri quatrocentas ações, em nome de Paulinho, de indústrias têxteis do interior de Minas Gerais.


20-1-1963 — Freiras de um asilo vieram pedir-me socorro, em favor de meninos órfãos. Não dei coisa alguma e nem dou. Meu filho não será prejudicado por desfalques de caridade.


22-2-1964 — Os espíritas que constroem um abrigo para crianças vadias chegaram em comissão, rogando auxílio. Achei-lhes uma graça!

Minha resposta foi não, como sempre. Tudo o que me vier às mãos será de Paulinho.


18-11-1965 — Quinze anos. Belo e feliz aniversário de meu filho!

Adquiri para ele, hoje à tarde, boa fazenda no interior fluminense.


20-11-1965 — Sonhei novamente com meu pai, dizendo-me para não esquecer-me do ensinamento evangélico que indica na caridade a força capaz de cobrir as nossas faltas e renovar o nosso destino. Lembro-me perfeitamente das palavras dele, afirmando que é preciso ajudar aos que sofrem na Terra para receber o auxílio dos que moram no Céu. Tolices!… Acredito que a conversa dos espíritas, anteontem, me influenciou negativamente.


31-12-1966 — Adquiri mais duas casas para meu filho. Pechincha com que eu não contava.


4-3-1967 — Paulinho brilhando nos estudos secundários. Que carreira seguirá? Acima de tudo, quero que seja um homem rico. Não acredito em poder superior ao poder do dinheiro.


6-4-1967 — Comprei dois carros para meu filho, um para a cidade, outro para a fazenda. Os quatro automóveis de que dispomos em família já não me parecem dignos dele.


18-11-1967 — Novo aniversário de Paulinho. Adquiri quatro apartamentos em nome dele.

Quero meu filho cada vez mais rico, sempre mais rico.


30-1-1968 — A fortuna de meu filho, conforme o balanço último, já ultrapassa de um bilhão de cruzeiros velhos, segundo as anotações de meu contabilista.


19-4-1968 — Meus tios Arlindo e Antônio pediram-me auxílio, declarando-se em penúria.

Neguei. Tenho meu filho para cuidar.


22-1-1970 — Meu Deus! Meu Deus!… Paulinho está no hospital, em estado grave!…


Aqui terminava as anotações. O resto era a provação à frente de nossos olhos.

Paulo Silva que concentrara no filho único imensa fortuna, e que, por isso mesmo, se negava a atender a quaisquer apelos da beneficência ou da cooperação fraternal, profundamente desequilibrado assistia, junto de nós, à saída do filho morto, que desencarnara, em plena juventude, vitimado pela hepatite.


(.Humberto de Campos)