Há dois mil anos...

Capítulo III

Planos da treva

SEGUNDA PARTE. • SEGUNDA PARTE.

Depois das solenidades do casamento de Plínio, contrariamente ao que se podia esperar, o liberto judeu não regressou a Massília,  pretextando numerosos negócios que o retinham na Capital do Império.

Instalado no palacete dos Sevérus, para onde se haviam transferido os jovens nubentes junto de Calpúrnia, Saul teve oportunidades numerosas de se avistar com o senador Públio Lêntulus, mantendo ambos várias palestras sobre a Judeia  e as suas regiões importantes.

Intrigado com aquele olhar ardente e aqueles traços fisionômicos, que lhe não eram totalmente estranhos, e lembrando-se perfeitamente daquele pai que o procurara ansioso e aflito, em Jerusalém, acompanhemos o senador em uma de suas palestras íntimas com o interessante desconhecido, na qual o abordou com esta pergunta inesperada:

 

— Senhor Saul, já que sois filho das cercanias de Jerusalém, vosso pai, porventura, não se chamaria André de Gioras?

O liberto mordeu os lábios, diante daquele ataque direto ao assunto mais delicado da sua existência, respondendo dissimuladamente:

— Não, senador. Meu pai não tem esse nome. Ao tempo em que fui escravizado por mãos impiedosas e cruéis, porquanto eu não era senão uma criança mal educada e irresponsável — acentuou com profunda ironia —, meu pai era um agricultor miserável que não possuía outra coisa além dos seus braços para o trabalho de cada dia… Tive, contudo, a felicidade de encontrar as mãos generosas de Flamínio Sevérus, que me guiaram para a liberdade e para a fortuna e, hoje, o meu genitor, com o pouco que lhe forneci, aumentou as suas possibilidades de trabalho, desfrutando não somente certa importância social em Jerusalém, como também funções superiores no Templo.

 

Mas, porque mo perguntais?

O senador franziu o sobrolho, em face de tanta desenvoltura na resposta, mas, sentindo-se aliviado, por lhe parecer que não se tratava, de fato, do Saul de suas penosas lembranças, respondeu com mais desafogo de consciência:

— É que eu conheci, ligeiramente, um agricultor israelita, por nome , cujos traços fisionômicos não eram muito diversos dos vossos…

E a conversação seguiu o ritmo normal das conversações sem importância nos ambientes de convencionalismo da vida social.

Saul, entretanto, deixava transparecer fulgor estranho no olhar, como quem se encontrava extremamente satisfeito com o destino, à espera de um ensejo para executar seus tenebrosos planos de vingança.

 

Um móvel oculto e inconfessável o retinha em Roma, quando numerosas operações comerciais requeriam sua presença em Massília, onde seu nome se radicara a grandes interesses de ordem financeira e material. Esse móvel era o intenso desejo de se fazer notado pela jovem esposa de Plínio, cujo olhar parecia atraí-lo para um abismo de amor violento e irreprimível.

Desde o instante em que a vira com os adornos do noivado, no dia venturoso de seu enlace, parecia haver lobrigado a criatura ideal dos seus sonhos mais íntimos e remotos.

Na realidade, os filhos de seus antigos senhores mereciam o seu respeito e o maior acatamento; todavia, uma força maior que todos os seus sentimentos de gratidão o levava a desejar a posse de Flávia Lentúlia, a qualquer preço, ainda que fosse o da própria vida.

Aqueles olhos formosos e cismadores, a graça carinhosa e espontânea, a inteligência lúcida e delicada, todos os seus predicados físicos e espirituais, que observara agudamente, nos poucos dias de permanência na cidade, o autorizavam a crer que aquela mulher era bem o tipo das suas idealizações.

 

E foi engolfado nesse turbilhão de pensamentos sombrios que dois meses se passaram, de expectativas inconfessáveis e angustiosas, sem que perdesse a mais ligeira oportunidade para demonstrar a Flávia o grau do seu afeto, da sua admiração e estima, sob as vistas amigas e confiantes de Plínio.

Na soledade de suas preocupações íntimas, considerava Saul que, se ela o amasse, se correspondesse à afeição violenta do seu espírito impetuoso e egoísta, jamais se lembraria de exercer a planejada vingança sobre o coração de seu pai, indo buscar o jovem Márcus Lêntulus para o lar paterno e liquidando o pretérito de visões tenebrosas; contudo, se acontecesse o contrário, executaria os seus diabólicos projetos, deixando-se embriagar pelo vinho odiento da morte.

 

Nessa época, corria já o ano de 47, e sem nos esquecermos de Fúlvia e sua filha, vamos encontrá-las, de novo, sob o domínio dos mesmos sentimentos cruéis e tenebrosos.

Em vão desposara Aurélia a Emiliano Lúcius, que, para ela, não representava de modo algum o tipo do homem que o seu temperamento supunha haver encontrado no filho mais moço de Flamínio.

E foi assim que, depois dos primeiros desencantos e atritos no ambiente doméstico, a conselho da mãe e, na sua própria companhia, procurou recorrer às ciências estranhas de Araxes,  célebre feiticeiro egípcio, que tinha uma loja de mercadorias exóticas nas proximidades do Esquilino.

Araxes, cujo comércio criminoso todos conheciam como fonte inesgotável de filtros milagrosos do amor, da enfermidade e da morte, era um iniciado do antigo Egito, desviado, porém, da missão sacrossanta da caridade e da paz, na sua violenta paixão pelo dinheiro da numerosa clientela romana, então em pletora de vícios clamorosos e na dissolução dos mais belos costumes do sagrado instituto da família.

Explorando-lhe as paixões inferiores e os hábitos viciosos, o mago egípcio empregava quase toda a sua ciência espiritual na execução de todos os malefícios e crimes, motivando enormes danos com as suas drogas venenosas e seus estranhos conselhos.

 

Procurado, discretamente, por Fúlvia e a filha, inteirou-se dos fins da visita e ali mesmo, entre grandes retortas e pacotes de plantas e substâncias diversas, mergulhou a cabeça nas mãos, como se o seu espírito estivesse devassando os menores segredos do mundo invisível, ante uma trípode e outros petrechos de ciências ocultas, com que ele, psicólogo profundo, buscava impressionar a mente sugestionável dos consulentes numerosos que lhe solicitavam a solução dos problemas difíceis da vida.

Ao cabo de longos minutos de concentração, com os olhos a brilhar estranhamente, o mago egípcio dirigiu-se à Aurélia, afirmando-lhe em palavras impressionantes:

— Senhora, vejo à minha frente dolorosos quadros da sua vida espiritual, no passado longínquo!… Vejo Delfos,  nos dias gloriosos do seu oráculo  e contemplo a sua personalidade buscando seduzir um homem que lhe não pertencia!… Esse homem é o mesmo da atualidade… As mesmas almas perambulam agora em outros corpos e a senhora deve pensar na realidade dos dias que se passam, conformando-se com a nítida separação das linhas do destino!…

 

Aurélia ouvia, entre surpresa e assombrada, enquanto a alma arguta de sua mãe acompanhava a palestra, tocada de impressão indefinível.

— Que me dizeis? — replicou a jovem senhora, no auge da sua sensibilidade ferida. — Outras vidas? Um homem que não me pertencia?… Que vem a ser tudo isso?

— Sim, nosso Espírito, neste mundo — redarguiu o feiticeiro, com imperturbável serenidade —, tem longa série de existências, que enriquecem o nosso íntimo com o máximo de conhecimento sobre os deveres que nos competem na vida!

A senhora já viveu em Atenas e em Delfos, numa grande fase de profundas irreflexões em matéria de amor, e, sentindo-se hoje próxima do objeto de suas ardentes e pecaminosas paixões de outrora, julga-se com as mesmas possibilidades de satisfazer seus desejos violentos e indignos!…

 

Por aqui, hão passado inúmeras criaturas. A muitas aconselhei perseverança nos propósitos, por vezes injustificáveis e inferiores; mas, para o seu caso, há uma voz que fala mais alto à minha consciência. Se a sua irreflexão for ao ponto de provocar esse homem, em consciência honesto até agora, é possível que o seu coração também inquieto venha a corresponder aos seus caprichos; contudo, busque não se entregar ao desvario dessa provocação, porque o destino o reuniu, agora, à alma gêmea da sua e um caminho áspero de provações amargas os espera no futuro, para a consolidação da sua confiança mútua, da sua afeição e da sua grandeza espiritual!… Não se interponha no caminho dessa mulher considerada pelo seu espírito como poderosa rival… Interpor-se entre ela e o esposo seria agravar a senhora as suas próprias penas, porque a verdade é que o seu coração não se encontra preparado para as grandes renúncias santificantes, e aquilo que supõe ser profundo e sublimado amor, nada mais é que capricho prejudicial do seu coração de mulher voluntariosa e pouco disposta a sacrificar-se pelo carinho de companheiro amoroso e leal, mas, sim, a multiplicar os amantes pelo número de suas vontades artificiais…

 

Aurélia estava lívida, ouvindo essas palavras, que considerava atrevidas e injuriosas.

Desejava defender-se, mas uma força poderosa parecia comprimir-lhe a garganta, anulando-lhe o esforço das cordas vocais.

Fúlvia, porém, tomada de rancor pelas expressões insultuosas daquele homem, tomou a defesa da filha, arguindo-o com energia:

— Araxes, feiticeiro impúdico, que queres dizer com estas palavras? Insultas-nos? Poderemos fazer cair sobre tua cabeça o peso da justiça do Império, conduzindo-te ao cárcere e revelando à sociedade os teus sinistros segredos!…

— E porventura não os tereis também, nobre senhora? — revidou ele imperturbavelmente —; estaríeis, assim, tão sem culpa, para não vacilar em condenar-me?

 

Fúlvia mordeu os lábios, tremendo de ódio e exclamando com fúria:

— Cala-te, infame! Não sabes que tens diante dos olhos a esposa de um pretor?

— Não me parece — murmurou o feiticeiro com serena ironia —, pois as nobres matronas dessa estirpe não viriam a esta casa solicitar minha cooperação para um crime… E, ao demais, que diriam em Roma de uma patrícia, que descesse ao extremo de procurar, na intimidade, um velho feiticeiro do Esquilino?

É verdade que muitos males tenho praticado na minha vida, mas, sabem-no todos que assim procedo e não busco a sombra das boas situações sociais para acobertar a hediondez da minha miserável existência!… Ainda assim, quero salvar a mocidade de tua filha do lôbrego caminho de tuas perversidades, porque na hipótese de seguir-te ela os coleios de víbora, na senda da esposa criminosa e infiel, seu único fim será a prostituição e o infortúnio, rematados com a morte ignominiosa na ponta de uma espada…

 

Fúlvia desejou revidar energicamente aos insultos de Araxes, repelindo aquelas expressões injuriosas, recebidas como atrevimento supremo, mas Aurélia, receosa de novas complicações e compreendendo a culpabilidade de sua mãe, tomou-lhe do braço, retirando-se ambas silenciosamente, sob o olhar zombeteiro do velho egípcio, que voltara a empilhar pacotes de plantas entre numerosos vasos de substâncias estranhas.

Pouco tempo, contudo, pôde ele empregar na sua faina solitária e silenciosa.

Dentro de duas horas, nova personagem lhe batia à porta.

Araxes surpreendeu-se à vista daquele judeu insinuante que o procurava. O brilho dos olhos, o nariz característico, a harmonia dos traços israelitas, faziam daquele homem, ainda jovem, uma figura singular e sugestiva.

Era Saul, que recorria aos mesmos processos misteriosos, na ânsia de possuir, a qualquer preço, a esposa de Plínio, buscando o talismã ou o elixir miraculoso do feiticeiro, a serviço de suas pretensões descabidas.

 

Recebido nas mesmas circunstâncias em que o foram as duas personagens do nosso penoso drama, Saul expunha ao adivinho as suas torturas amorosas junto daquela mulher honesta e digna.

Após a habitual concentração, já do nosso conhecimento, junto da trípode em que fazia as orações costumeiras, Araxes esboçou leve e discreto sorriso, como quem havia encontrado mais uma estranha coincidência nos seus amplos estudos da psicologia humana. Sua hesitação, todavia, durou poucos instantes, porque, em breve, fazia-se ouvir com voz pausada e soturna:

— Judeu! — disse ele austeramente — louva o Deus de tuas crenças, porque tua face foi erguida do pó pelas mãos do homem que hoje te empenhas em trair… Mandam as leis severas da tua pátria que não venhas a desejar, nem mesmo por pensamentos, a mulher do teu próximo e muito menos a companheira devotada e fiel de um dos teus maiores benfeitores. Dá um passo atrás no teu triste e mal-aventurado caminho! Houve tempo em que teu Espírito viveu no corpo de um sacerdote de , no templo glorioso de Delfos…  Perseguiste uma jovem mulher dos misteres sagrados, conduzindo-a à miséria e à morte, com os teus desvarios nefandos e dolorosos. Não ouses, agora, arrancá-la dos braços destinados ao seu amparo e proteção, à face deste mundo!… Não te intrometas no destino de duas criaturas que as forças do Céu talharam uma para a outra!

 

O moco judeu, todavia, apesar de impressionado com aquela exortação incisiva, não seguiu a orientação violenta das duas mulheres que o precederam na misteriosa visita.

Arrancando uma bolsa de moedas, acariciou-a nas mãos como a excitar a complacência do adivinho, exclamando com voz quase súplice:

— Araxes, eu tenho ouro… muito ouro, e dar-te-ei o que quiseres, pelo valioso auxílio da tua ciência… Pelo amor de teus deuses, consegue-me a simpatia dessa mulher e recompensar-te-ei generosamente a preciosidade dos esforços despendidos…

Os olhos do mago egípcio faiscaram ao clarão de sentimento estranho, contemplando a bolsa em forma de cornucópia, reluzente de ouro, como se a desejasse intensamente, murmurando com mais delicadeza:

— Meu amigo, essa mulher não é cobiçada tão somente por ti e suponho que deverias contribuir para que ela não se afastasse da companhia do esposo!…

— Mas, existe, então, ainda outro homem?

— Sim, revelam-me os signos do destino que essa criatura é também desejada pelo irmão do marido.

 

Saul fez um gesto de enfado, como quem sentia amargamente atormentado pelos mais acerbos ciúmes, murmurando entre dentes:

— Ah! sim… agora entendo melhor a viagem precipitada de Agripa, em busca de Avênio!… 

E, elevando a voz como quem estivesse jogando a derradeira cartada da sua ambição, falou com ansiedade:

— Araxes, peço-te ainda uma vez!… Faze tudo!… pagar-te-ei regiamente!…

A fronte do mago curvou-se de novo, em atitude de profunda meditação, como se o espírito buscasse, no invisível, alguma força tenebrosa, propícia aos seus sinistros desígnios.

Ao cabo de alguns minutos, tornou a dizer em tom benevolente e amigo:

— Parece que haverá uma oportunidade para a sua afeição, daqui a algum tempo!…

 

O moço judeu ouvia-o com angustiosa expectativa, enquanto as afirmações continuavam:

— Dizem os signos do destino que os dois cônjuges, para consolidação de sua profunda afeição, de sua confiança recíproca e progresso espiritual, estão destinados a dolorosas provas daqui a alguns anos! Dar-se-á alguma coisa que os separará dentro do próprio lar, sem que eu possa precisar o que seja. Sei, tão somente, que cumpre a ambos um grande período de ascetismo e dolorosa abnegação, no instituto sagrado da família… Nessa ocasião, talvez, quem sabe? poderá o meu amigo tentar essa afeição ardentemente cobiçada!…

— Dar-se-á, então, alguma coisa? — perguntou Saul, curioso e aflito, nas suas perquirições do assunto transcendente — mas que poderá acontecer que os separe no ambiente doméstico?

— Eu mesmo não saberia dize-lo…

 

— E cada qual será obrigado a um ascetismo fiel e a uma dedicação inquebrantável?

— Manda o determinismo do destino que assim seja, mas não só o esposo, como a companheira, podem interferir nessas provas, contraindo novo débito moral, ou resgatando o passado doloroso com o preciso valor moral nos sofrimentos, empregando, no determinismo das provações purificadoras, sua boa ou má vontade… Saiba que as tendências humanas são mais fortes para o mal, tornando-se possível que as suas pretensões sejam satisfeitas nessa época.

— E quanto tempo deverei esperar para que isso aconteça? — perguntou o liberto, fundamente preocupado.

— Alguns anos.

— E será inútil tentar qualquer esforço antes disso?

— Perfeitamente inútil. Sei que o nobre cliente tem numerosos interesses numa cidade distante e é justo que, neste intervalo, cuide dos seus negócios materiais.

Saul fixou detidamente aquele homem que parecia conhecer os mais recônditos segredos da sua vida, passando as suas observações pelo crivo da consciência.

Deu-lhe a bolsa recheada, agradecendo a atenção e prometendo voltar em tempo oportuno.

 

Daí a alguns dias, o moço judeu, nas vésperas da despedida, aproveitando alguns minutos de pura e simples intimidade com a jovem Flávia, dirigia-lhe a palavra nestes termos:

— Nobre senhora — começou em voz quase tímida, mas com o mesmo clarão estranho de sentimentos inferiores a lhe irradiar dos olhos —, ignoro a razão do fato íntimo que vos vou revelar, mas a realidade é que vou partir para Massília,  guardando a vossa imagem no mais recôndito escaninho do meu pensamento!…

— Senhor — disse-lhe Flávia Lentúlia, corando, acabrunhada —, devo viver tão só no pensamento daquele com quem os deuses iluminaram o meu destino!…

— Nobre Flávia — revidou o judeu arguto, percebendo que o golpe era prematuro e inoportuno —, minha admiração não se prende a qualquer sentimento menos digno. Para mim, sois duplamente respeitável, não somente pela vossa alta condição de patrícia, como também pela circunstância de serdes a companheira de um dos maiores benfeitores de minha vida!

 

Ficai tranquila quanto às minhas palavras, porque em meu coração só existe o mais leal interesse pela vossa felicidade pessoal, junto do digno esposo que escolhestes.

Sinto por vós o que um escravo deve sentir por uma benfeitora de sua existência, já que, na minha triste condição de liberto, não posso apresentar-me à vossa generosidade com as credenciais de irmão que muito vos venera e estima.

— Está bem, senhor Saul — disse a jovem, mais aliviada —, meu marido vos considera como irmão muito caro e eu me honro de associar-me aos seus sentimentos.

— Muito vos agradeço — exclamou Saul, fingidamente —, e já que me entendeis tão bem o pensamento fraterno, é com o interesse de irmão que me dirijo à vossa alma generosa para prevenir-vos de um perigo…

— Um perigo?… — perguntou Flávia, aflita.

— Sim. Falo-vos confidencialmente, solicitando que guardeis o máximo segredo desta confidência fraternal.

 

E, enquanto a jovem escutava-o com a maior atenção, Saul continuou com as suas pérfidas insinuações.

— Sabeis que Plínio foi quase noivo da filha do pretor Sálvio Lêntulus, vosso tio, hoje casado com Emiliano Lúcius?

— Sim… — replicou a pobre senhora, de alma oprimida.

— Pois devo avisar, como irmão, que vossa prima Aurélia, a despeito dos seus austeros compromissos matrimoniais, não renunciou ao homem de suas antigas preferências; hoje fui cientificado, por um amigo, de que ela tem recorrido a diversos feiticeiros de Roma, com o fim de reaver o seu afeto de outrora, a qualquer preço!…

Ouvindo essas pérfidas palavras, Flávia Lentúlia experimentou o primeiro espinho da sua vida conjugal, sentindo-se intimamente torturada pelo mais acerbo ciúme.

 

Plínio resumia todo o seu idealismo e toda a sua felicidade de mulher jovem. Depositara no seu coração todos os sonhos femininos, todas as suas melhores e mais florentes esperanças. Assaltada pela primeira contrariedade da sua vida social, na grande cidade de seus pais, sentia, naquele instante, a sede devoradora de um esclarecimento amigo, de uma palavra carinhosa que viesse restabelecer o equilíbrio do coração, agora turbado pelos primeiros dissabores. Faltava-lhe alguma coisa que pudesse completar as nobres qualidades do seu coração de mulher, alguma coisa que devia ser a atuação materna na sua educação, porque Públio Lêntulus, na sua cegueira espiritual, lhe moldara o caráter no orgulho da estirpe, nas tradições vaidosas dos antepassados, sem desenvolver as suas qualidades de ponderação, que a influência de Lívia criaria, certo, para notáveis florações do sentimento.

 

A jovem patrícia sentiu o coração despedaçado por um ciúme quase feroz; mas, compreendendo os deveres que lhe competiam, em tais conjunturas, recobrou a precisa energia moral para reagir naquele primeiro embate de provas, respondendo ao moço judeu e fazendo o possível por afetar o máximo de severa e tranquila nobreza:

— Agradeço, penhorada, o interesse de vossa comunicação; todavia, nada me autoriza a suspeitar da consciência retilínea de meu esposo, mesmo porque Plínio resume todos os meus ideais de esposa e de mulher!

— Senhora — revidou o judeu, mordendo os lábios —, o espírito feminino, na sua fertilidade de imaginação, alheio à vida prática, pode enganar-se muitas vezes, pelas aparências…

Folgo de ouvir-vos e louvo a vossa ilimitada confiança; porém, quero fiqueis convencida de que, a qualquer tempo, encontrareis em mim um sincero defensor da vossa felicidade e das vossas virtudes!…

Isso dizendo, Saul de Gioras apresentou atenciosas despedidas, deixando a pobre moça com as suas impressões de surpresa e amargura.

 

Os primeiros infortúnios haviam atingido a vida conjugal de Flávia Lentúlia, sem que ela soubesse conjurar o perigo que ameaçava a sua ventura para sempre.

Nessa noite, Plínio Sevérus não encontrou em casa a criatura mimosa e adorável da sua dedicação e do seu amor profundo. Na intimidade da alcova, encontrou a companheira cheia de recriminações descabidas e importunas, tocada de tristezas amarguradas e incompreensíveis, verificando-se entre ambos os primeiros atritos que podem arruinar para sempre, no curso de uma vida, a felicidade de um casal, quando seus corações não se encontram suficientemente preparados para a compreensão espiritual, no instituto das provas remissoras, embora a estrada divina de suas almas gêmeas seja um caminho glorioso para os mais elevados destinos.

Em breves dias, Saul regressava a Massília, esperançoso de concretizar algumas realizações de ordem material, de modo a regressar a Roma no menor espaço de tempo.

E a vida das nossas personagens continuava, na Capital do Império, quase com a mesma fisionomia de sempre.

O senador Lêntulus prosseguia engolfado nas suas cogitações de ordem política, procurando, sempre que possível, a residência da filha, onde mantinha as mais longas palestras com Calpúrnia, sobre o passado e as necessidades do presente.

 

Quanto à Lívia, afastada compulsoriamente da filha pela força das circunstâncias, longe de sua melhor amiga de outros tempos, pela incompreensão, e prosseguindo distante do esposo no ambiente dos seus afetos mais íntimos, refugiara-se na dedicada amizade de Ana, nas preces mais fervorosas e sinceras.

Diariamente, ambas procuravam orar, em dolorosa soledade, ao pé daquela mesma cruz grosseira que lhes dera Simeão no instante extremo.

Muitas vezes, ambas em êxtase, notavam que o pequenino madeiro se toucava de luz tenuíssima, ao mesmo tempo que lhes parecia ouvir longe, no santuário do coração e dos pensamentos, exortações singulares e maravilhosas.

Afigurava-se-lhes que a voz branda e amiga do apóstolo da Samaria  voltava do Reino de Jesus para ensinar-lhes a fé, o cumprimento do dever de caridade fraterna, a resignação e a piedade. Ambas choravam, então, como se suas almas sensíveis e carinhosas vibrassem as harmonias de um divino prelúdio da vida celeste.

 

Nessa época, instruída por alguns cristãos mais humildes, Ana cientificou a senhora das reuniões nas catacumbas. 

Somente ali podiam reunir-se os adeptos do Cristianismo nascente, porquanto, desde os seus primeiros eventos na sociedade romana, foram as suas ideias consideradas subversivas e perversoras.

O Império fundado com Augusto,  que significou a maior expressão de um Estado forte em todas as épocas do mundo, depois das conquistas democráticas da República, não tolerava nenhum agrupamento partidário, em matéria de doutrinas sociais e políticas.

Verificava-se em Roma o mesmo que hoje com as nações modernas, a oscilarem entre as mais variadas formas governamentais, ao longo do eixo dos extremistas e dentro da ignorância do homem, que teima em não compreender que a reforma das instituições tem que começar no íntimo das criaturas.

As únicas associações admitidas eram, então, as cooperativas funerárias, em vista de seus programas de piedade e proteção aos que já não podiam perturbar os poderes temporais do César.

 

Perseguidos pelas leis que lhes não toleravam as ideias renovadoras; encarados com aversão pelas forças poderosas das tradições antigas, os adeptos de Jesus não ignoravam a sua futura posição de angústia e sofrimento. Alguns editos mais rigorosos os compeliam a ocultar a manifestação de crença, embora o governo de Cláudio procurasse, sempre, o máximo de ordem e equilíbrio, sem grandes excessos na execução dos seus desígnios.

Alguns companheiros mais esclarecidos na fé advogavam publicamente as suas teses, em epístolas ao sabor da época; mas, muito antes dos crimes tenebrosos de Domício Nero,  a atmosfera dos cristãos primitivos já era de aflição, angústia e trabalhos penosos. Desse modo, as reuniões das catacumbas efetuavam-se periodicamente, nada obstante o seu caráter absolutamente secreto.

 

Grande número de apóstolos da Palestina  passavam em Roma, trazendo aos irmãos da metrópole as prédicas mais edificantes e consoladoras.

Ali, no silêncio dos grandes maciços de pedra, em cavernas desprezadas pelo tempo, ouviam-se vozes profundas e moralizantes, que comentavam o Evangelho do Senhor ou encareciam as sublimidades do seu Reino, acima de todos os precários poderes da perversidade humana. Tochas brilhantes iluminavam esses desvãos subterrâneos, que as heras protegiam, enquanto suas portas empedradas davam a impressão de angústia, tristeza e supremo abandono.

Sempre que um peregrino mais dedicado aportava à cidade, havia um aviso comum a todos os conversos.

O sinal da cruz, feito de qualquer forma, era a senha silenciosa entre os irmãos de crença, e, feito desse ou daquele modo especial, significava um aviso, cujo sentido era imediatamente compreendido.

Através dessas comunicações incessantes, Ana conhecia todo o movimento das catacumbas,  colocando sua senhora a par de todos os fatos que se desenrolavam em Roma, sobre a redentora doutrina do Crucificado.

 

Assim é que, quando se anunciava a chegada de algum apóstolo da Galileia  ou das regiões que lhe são fronteiriças, Lívia fazia questão de comparecer, fazendo-se acompanhar pela serva desvelada e fiel, atravessando os caminhos a pé, embora trajasse agora a sua indumentária patrícia, de conformidade com a autorização do marido, para professar livremente as suas crenças. Ela estava ciente de que, perante a sociedade, sua atitude representava grave perigo, mas fora um marco de luz assinalando os seus destinos na Terra.

Adquirira coragem, serenidade, resignação e conhecimento de si mesma, para nunca tergiversar em detrimento da sua fé ardente e pura. Se as suas antigas relações de amizade, em Roma, atribuíam suas modificações interiores à demência; se o marido não a compreendia e Calpúrnia e Plínio cavavam, ainda mais, o grande abismo que Públio havia aberto entre ela e a filha, possuía o seu espírito, na crença, um caminho divino para fugir de todas as terrenas amarguras, sentindo que o Divino Mestre de Nazaret lhe dulcificava as úlceras da alma, compadecendo-se do seu coração retalhado de angústias. Era-lhe a fé como um archote luminoso clareando a estrada dolorosa, e do qual se irradiavam os clarões da confiança humana na Providência Divina, que transforma as provações penosas da Terra em antegozo das eternas alegrias do Infinito.





Em casa de Pilatos

PRIMEIRA PARTE • PRIMEIRA PARTE

A secura da natureza, onde se ergue Jerusalém,  proporciona à célebre cidade uma beleza melancólica, tocada de angustiosa monotonia.

 

Ao tempo do Cristo, seu aspecto era quase o atual, como hoje se observa. Apenas a colina de , com as suas tradições suaves e lindas, representava um recanto verde e alegre, onde repousavam os olhos do forasteiro, longe da aridez e da ingratidão das paisagens.

 

Todavia, devemos registar que, na época da permanência de Públio Lêntulus e de sua família, Jerusalém acusava novidades e esplendores de vida nova. As construções herodianas pululavam nos seus arredores, revelando novo senso estético, por parte de Israel. A predileção pelos monólitos talhados na rocha viva, característica do antigo povo israelita, fora substituída pelas adaptações do gosto judeu às normas gregas, renovando as paisagens interiores da famosa cidade. A joia maravilhosa era, porém, o templo,  todo novo, da época de Jesus. Sua reconstrução fora determinada por Herodes,  no ano de 21, notando-se que os pórticos levaram oito anos a edificar-se, e considerando-se, ainda, que os planos da obra grandiosa, continuados vagarosamente no curso do tempo, somente ficaram concluídos pouco antes da época de sua completa destruição.

 

 

Nos pátios imensos, reunia-se diariamente a aristocracia do pensamento israelita, localizando-se ali o fórum, a universidade, o tribunal e o templo supremos de toda uma raça.

 

Os próprios processos civis, além das discussões engenhosas de ordem teológica, ali recebiam as decisões derradeiras, resumindo-se no templo imponente e grandioso todas as ambições e atividades de uma pátria.

 

Os romanos, respeitando a filosofia religiosa dos povos estranhos, não participavam das teses sutis e dos sofismas debatidos e examinados todos os dias, mas a Torre Antônia,  onde se aquartelavam as forças armadas do Império, dominava o recinto, facilitando a fiscalização constante de todos os movimentos dos sacerdotes e das massas populares.

 

 

Públio Lêntulus, após o incidente do prisioneiro, que continuava a considerar como episódio sem importância, retomava certa serenidade para o desempenho de suas obrigações consuetudinárias. Os aspectos áridos de Jerusalém tinham, para seus olhos cansados, encanto novo, no qual o pensamento repousava das numerosas e intensas fadigas de Roma.

 

Quanto a Lívia, esta guardava o coração voltado para os seus afetos distantes, analisando a aridez dos espíritos ao alcance do seu convívio. Como por milagre, a pequena Flávia havia melhorado, observando-se notável transformação das feridas que lhe cobriam a epiderme. Mas, as atitudes hostis de Fúlvia, que lhe não perdoava a simplicidade encantadora e os dotes preciosos de inteligência, sem perder ensejo para jogar-lhe em rosto pequeninas indiretas, por vezes irônicas e mordentes, deixavam-lhe o espírito aturdido num turbilhão de expectativas alucinantes. Semelhantes acontecimentos eram desconhecidos do marido, a quem a pobre senhora se abstinha de relatar os seus mais íntimos desgostos.

 

 

Esses fatos, porém, não eram os elementos que mais contribuíam para acabrunhá-la naquele ambiente de penosas incertezas.

 

Fazia uma semana que se encontravam na cidade e notava-se que, contrariando talvez seus hábitos, Pôncio Pilatos comparecia diariamente à residência do pretor, a pretexto de predileção pela palestra com os patrícios recém-chegados da Corte.

 

Horas a fio eram empregadas nesse mister, mas Lívia, com as secretas intuições da sua alma, compreendia os pensamentos inconfessáveis do governador a seu respeito, recebendo de espírito prevenido os seus amáveis madrigais e alusões menos diretas.

 

Nessas aproximações de sentimentos que prenunciam a preamar das paixões, via-se também a contrariedade de Fúlvia, tocada de venenoso ciúme em face da situação que a atitude de Pilatos ia criando. Por detrás daqueles bastidores brilhantes do cenário da amizade artificial, com que foram recebidos, Públio e Lívia deveriam compreender que existia um marnel de paixões inferiores, que, certo, haveria de tisnar a tranquilidade de suas almas. Não entenderam, todavia, os detalhes da situação e penetraram de espírito confiante e ingênuo no caminho escuro e doloroso das provações que Jerusalém lhes reservava.

 

 

Reafirmando incessantes obséquios e multiplicando gentilezas, Pilatos fez questão de oferecer um jantar, no qual toda a família se reconfortasse e a fraternidade e a alegria fossem perfeitas.

 

No dia aprazado, Sálvio e Públio, acompanhados pelos seus, compareciam à residência senhorial do governador, onde Cláudia igualmente os esperava com sorriso bondoso e acolhedor.

 

Lívia estava pálida, no seu traje simples e despretensioso, sendo de notar que, contra toda a expectativa do esposo, fizera questão de levar a filhinha doente, no pressuposto de que o seu cuidado materno representasse alguma coisa contra as pretensões do conquistador que o seu coração de mulher adivinhava, através das atitudes indiscretas e atrevidas no anfitrião daquela noite.

 

 

O jantar servia-se em condições especialíssimas, segundo os hábitos mais rigorosos e elegantes da Corte.

 

Lívia estava aturdida com aquelas solenidades a se desdobrarem nos mais altos requintes da etiqueta romana, costumes esses oriundos de um meio do qual ela e Calpúrnia sempre se haviam afastado, na sua simplicidade de coração. Numerosa falange de escravos se movimentava em todas as direções, como verdadeiro exército de servidores, em face de tão reduzido número de comensais.

 

Depois dos pratos preparados, chegam os vocadores recitando os nomes dos convivas, enquanto os infertores trazem os pratos dispostos com singular simetria. Os convidados recostam-se então no triclínio, forrado de penugens cetinosas e pétalas de flores. As carnes são trazidas em pratos de ouro e os pães em açafates de prata, multiplicando-se os servos para todos os misteres, inclusive aqueles que deviam provar as iguarias, a fim de se certificar do seu paladar, para que fossem servidas com a máxima confiança. Os copeiros servem um falerno precioso e antigo, misturado de aromas, em taças incrustadas de pedras preciosas, enquanto outros servos os acompanham apresentando, em galhetas de prata, a água tépida ou fria, ao sabor dos convidados. Junto dos leitos, onde cada comensal deve recostar-se molemente, conservam-se escravos jovens, trajados com apuro e ostentando na fronte gracioso turbante, braços e pernas seminus, cada qual com a sua função definida. Alguns agitam nas mãos longos ramos de mirto, afugentando as moscas, enquanto outros, curvados aos pés dos convivas, são obrigados a limpar discretamente os sinais da sua gula e intemperança.

 

Quinze serviços diferentes sucederam-se através dos esforços dos escravos dedicados e humildes, quando, após o repasto, brilham os salões com centenas de tochas, ouvindo-se agradáveis sinfonias. Servos jovens e bem postos executam danças apaixonadas e voluptuosa em homenagem aos seus senhores, mimoseando-lhes os sentimentos inferiores com a sua arte exótica e espontânea, e, somente não foi levado a efeito um número de gladiadores, segundo o costume nos grandes banquetes da Corte, porque Lívia, de olhos súplices, pedira que poupassem naquela festa o doloroso espetáculo do sangue humano.

 

 

A noite era das mais cálidas de Jerusalém, motivo por que, findos o jantar e cerimônias complementares, a caravana de amigos, acompanhada agora de Sulpício Tarquínius, se dirigia para o amplo e bem posto terraço, onde jovens escravas faziam deliciosa música do Oriente.

 

— Não julgava encontrar em Jerusalém uma noite patrícia como esta — exclamou Públio, sensibilizado, dirigindo-se ao governador com respeitosa cortesia. — Devo à vossa bondade fidalga e generosa a satisfação de reviver o ambiente e a vida inesquecíveis da Corte, onde os romanos distantes guardam o coração e o pensamento.

 

— Senador, esta casa vos pertence — replicou Pilatos com intimidade. — Ignoro se a minha sugestão ser-vos-á agradável, mas só teríamos razão para agradecer aos deuses, se nos concedêsseis a honrosa alegria de vos hospedar aqui, com os vossos dignos familiares. Acredito que a residência do pretor Sálvio não vos oferece o necessário conforto, e, acrescendo a circunstância do íntimo parentesco que liga minha mulher à esposa de vosso tio, sinto-me à vontade para fazer este oferecimento, sem quebra de nossos costumes, em sociedade.

 

— Lá isso não, exclamou por sua vez o pretor, que acompanhara atento a gentileza da oferta. — Eu e Fúlvia nos opomos à realização dessa medida — e, acenando confiante para a consorte, terminava a sua ponderação — não é verdade, minha querida?

 

Fúlvia, porém, deixando transparecer uma ponta de contrariedade, redarguiu, com surpresa de todos os presentes:

 

— De pleno acordo. Públio e Lívia são nossos hospedes efetivos; contudo, não podemos esquecer que o objetivo de sua viagem se prende à saúde da filhinha, objeto de todas as nossas preocupações no momento, sendo justo que os não privemos de qualquer recurso que se venha a verificar, a favor da pequena enferma…

 

 

E dirigindo-se instintivamente para o banco de mármore, onde descansava a doentinha, exclamou com escândalo geral:

 

— Aliás, esta menina representa uma séria preocupação para todos nós. Sua epiderme dilacerada acusa sintomas invulgares, recordado…

 

Mas, não conseguiu terminar a exposição de seus receios escrupulosos, porque Cláudia, alma nobre e digna, constituindo uma antítese da irmã que o destino lhe havia dado, compreendendo a situação penosa que os seus conceitos iam criando, adiantou-se-lhe redarguindo:

 

— Não vejo razões que justifiquem esses temores; suponho a pequena Flávia muito melhor e mais forte. Quero crer, até, que bastará o clima de Jerusalém para a sua cura completa.

 

E avançando para a doentinha, como quem desejasse desfazer a dolorosa impressão daquelas observações indelicadas, tomou-a nos braços, osculando-lhe o rosto infantil, coberto de tons violáceos de mal disfarçadas feridas.

 

 

Lívia, que trazia o semblante afogueado pela humilhação das palavras de Fúlvia, recebeu a gentileza como bálsamo precioso para as suas inquietações maternas; quanto a Públio, este, amargamente surpreendido, considerou a necessidade de reaver a sua serenidade e energia máscula, dissimulando o desgosto que o episódio lhe causara, retomando a direção da palestra, sobremaneira comovido:

 

— É verdade, amigos. A saúde da minha pobre Flávia representa o objeto primordial da nossa longa viagem até aqui. Resolvidos os problemas do Estado, que me trouxeram a Jerusalém, há alguns dias que examino a possibilidade de me localizar em qualquer região do interior, de modo que a filhinha possa recuperar o precioso equilíbrio orgânico, aspirando um ar mais puro.

 

— Pois bem — replicou Pilatos, com segurança —, em assuntos de clima, sou aqui um homem entendido. Há seis anos que me encontro nestas paragens em função do cargo e tenho visitado quase todos os recantos da província e das regiões vizinhas, tendo motivos para afiançar que a Galileia  está em primeiro plano. Sempre que posso repousar dos labores intensos que aqui me prendem, busco imediatamente a nossa vila dos arredores de Nazaret,  para gozar a serenidade da paisagem e as brisas deliciosas do seu lago imenso.  Concordo em que a distância é muito longa, mas a verdade é que, se permanecesse nas cercanias da cidade, nas minhas estações de repouso, perderia o tempo, atendendo às solicitações incessantes dos rabinos do templo, sempre a braços com inumeráveis pendências. Ainda agora, Sulpício terá de partir, a fim de superintender alguns trabalhos de reparação da nossa residência, pois tencionamos seguir para ali dentro de pouco tempo, a refazer as energias esgotadas na luta cotidiana.

 

 

Já que a minha hospedagem não vos será necessária em Jerusalém, quem sabe teremos o prazer de hospedar-vos, mais tarde, na vila a que me refiro?

 

— Nobre amigo — exclamou o senador, agradecido — devo poupar-vos tanto trabalho, mas, ficar-vos-ei imensamente grato se o vosso amigo Sulpício providenciar em Nazaret a aquisição de uma casa confortável e simples, que me sirva, reformando-a de conformidade com os nossos hábitos familiares, e onde possamos residir despreocupadamente por alguns meses.

 

— Com o máximo prazer.

 

— Muito bem — atalhou Cláudia, com bondade, enquanto Fúlvia mal dissimulava venenoso despeito —, ficarei incumbida de adaptar a nossa boa Lívia à vida campestre, onde a gente se sente tão bem em contato direto com a natureza.

 

— Desde que se não transformem em judias… — disse o senador, bem humorado, enquanto todos sorriam alegremente.

 

 

Neste comenos, ouvido sobre os detalhes dos serviços que lhe seriam confiados em dias próximos, Sulpício Tarquínius, homem da confiança do governador, sentiu-se com a liberdade de intervir no assunto, exclamando, com surpresa para quantos o ouviam:

 

— E por falar de Nazaret, já ouvistes falar do seu profeta?

 

— Sim — continuou — Nazaret possui agora um profeta que vem realizando grandes coisas.

 

— Que é isso, Sulpício? — perguntou Pilatos, ironicamente — pois não sabes que dos judeus nascem profetas todos os dias? Acaso as lutas no templo de Jerusalém se verificam por outra coisa? Todos os doutores da Lei se consideram inspirados pelo Céu e cada qual é dono de uma nova revelação.

 

— Mas, esse, senhor, é bem diferente.

 

— Estarás, acaso, convertido a uma nova fé?

 

— De modo algum, mesmo porque compreendo o fanatismo e a obcecação dessas miseráveis criaturas; mas fiquei realmente intrigado com a figura impressionante de um galileu ainda moço, quando passava, há alguns dias, por Cafarnaum. 

 

 

Ao centro de uma praça, acomodada em bancos improvisados, feitos de pedra e de areia, vi considerável multidão que lhe ouvia a palavra, em êxtase de admiração e comoção…

 

Eu também, como se fora tocado de força misteriosa e invisível, sentei-me para ouvi-lo.

 

De sua personalidade, extraordinária de beleza simples, vinha um “não sei quê”, dominando a turba que se aquietava, de leve, ouvindo-lhe as promessas de um eterno reinado… Seus cabelos esvoaçavam às brisas da tarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridades serenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer uma onda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe a limpeza da túnica, cuja brancura casava-se à leveza dos seus traços delicados. Sua palavra era como um cântico de esperança para todos os sofredores do mundo, suspenso entre o céu e a terra, renovando os pensamentos de quantos o escutavam… Falava de nossas grandezas e conquistas como se fossem coisas bem miseráveis, fazia amargas afirmativas acerca das obras monumentais de Herodes,  em Sebaste,  asseverando que acima de César  está um Deus Todo Poderoso, providência de todos os desesperados e de todos os aflitos… No seu ensinamento de humildade e amor, considera todos os homens como irmãos bem-amados, filhos desse Pai de misericórdia e justiça, que nós não conhecemos…

 

 

A voz de Sulpício estava saturada do tom emocional, característico dos sentimentos filhos da verdade.

 

O auditório se contagiara da comoção de sua narrativa, escutando-lhe a palavra com o maior interesse.

 

Pilatos, todavia, sem perder o fio de suas vaidades de governador, interrompeu-o, exclamando:

 

— Todos irmãos! Isso é um absurdo. A doutrina de um Deus único não é novidade para nós outros, nesta terra de ignorantes; mas, não podemos concordar com esse conceito de fraternidade irrestrita. E os escravos? E os vassalos do Império. Onde ficam as prerrogativas do patriciado?

 

O que mais me admira, porém — exclamou com ênfase, dirigindo-se particularmente ao narrador —, é que, sendo tu um homem prático e decidido, te tenhas deixado levar pelas palavras loucas desse novo profeta, misturando-te com a turba para ouvi-lo. Não sabes que a anuência de um lictor pode significar enorme prestígio para as ideias desse homem?

 

— Senhor — respondeu Sulpício, desapontado —, eu próprio não saberia explicar a razão de minhas observações daquela tarde. Considerei, igualmente, de pronto, que as doutrinas por ele pregadas são subversivas e perigosas, por igualarem os servos aos senhores, mas observei, também, as suas penosas condições de pobreza, consideradas por seus discípulos e seguidores como um estado alegre e feliz, o que, de algum modo, não constitui motivo de receio para as autoridades provinciais.

 

 

Além disso, essas pregações não prejudicam os camponeses, porque são feitas geralmente nas horas de ócio e descanso, no intervalo dos trabalhos de cada dia, notando-se igualmente que os seus companheiros prediletos são os pescadores mais ignorantes e mais humildes do lago.

 

— Mas, como te deixaste empolgar assim por esse homem? — retornou Pilatos, com energia.

 

— Enganais-vos, quanto a isso — respondeu o lictor, mais senhor de si — não me sinto impressionado, como supondes, tanto assim que, notando-lhe a originalidade simples e formosa, não lhe reconheço privilégios sobrenaturais e acredito que a ciência do Império elucidará o fato que vou narrar, respondendo à vossa arguição do momento.

 

 

Não sei se conheceis Copônio, velho centurião destacado na cidade a que me referi, mas cumpre-me cientificar-vos do fato por mim observado. Depois que a voz do profeta de Nazaret havia deixado uma doce quietude na paisagem, o meu conhecido apresentou-lhe o filhinho moribundo, implorando caridade para a criança que agonizava. Vi-o a elevar os olhos radiosos para o firmamento, como se obsecrasse a bênção dos nossos deuses e, depois, notei que suas mãos tocavam o menino, que, por sua vez, parecia haver experimentado um fluxo de vida nova, levantando-se de súbito, a chorar e buscando o carinho paterno, após descansar no profeta os olhinhos enternecidos…

 

— Mas, até centuriões já se metem com os judeus nas suas perlengas? Preciso comunicar-me com as autoridades de Tiberíade,  sobre esses fatos — exclamou o governador, visivelmente contrariado.

 

— O caso é curioso — disse Públio Lêntulus, intrigado com a narrativa.

 

— A verdade, contudo, meu amigo — objetou Pilatos, dirigindo-se a ele —, é que nessas paragens nascem religiões todos os dias. Este povo é muito diverso do nosso, reconhecendo-se-lhe visível deficiência de raciocínio e senso prático. Um governador, aqui, não pode deixar-se empolgar pelas figuras e sim manter rígidos os princípios, no sentido de salvaguardar a soberania inviolável do Estado. É por esse motivo que, atendendo às sábias determinações da sede do governo, não me detenho nos casos isolados, para tão somente ponderar as razões dos sacerdotes do Sinédrio,  que representam o órgão do poder legítimo, apto a harmonizar conosco a solução de todos os problemas de ordem política e social.

 

 

Públio dava-se por satisfeito com o argumento, mas as senhoras presentes, com exceção de Fúlvia, pareciam fundamente impressionadas com a descrição de Sulpício, inclusive a pequenina Flávia, que lhe bebera as palavras com o máximo de curiosidade infantil.

 

Um véu de preocupações obscurecera a facécia de todos os presentes, mas o governador não se resignou com a atitude geral, exclamando:

 

— Ora esta! um lictor que, em vez de fazer a justiça a nosso bem, age contra nós próprios, obscurecendo o nosso ambiente alegre, merece severa punição por suas narrativas inoportunas!…

 

Um riso geral seguiu-lhe a palavra ruidosa e leve, enquanto rematava:

 

— Desçamos ao jardim para ouvir nova música, desanuviando o coração desses aborrecimentos imprevistos.

 

A ideia foi aceita com geral agrado.

 

A pequena Flávia foi instalada pela dona da casa em apartamento confortável, e, em poucos minutos, os presentes se dividiam em três grupos distintos, através das alamedas do jardim, aclarado de tochas brilhantes, ao som de músicas caprichosas e lascivas.

 

Públio e Cláudia falavam da paisagem e da natureza; Pilatos multiplicava gentilezas junto de Lívia, enquanto Sulpício se colocava ao lado de Fúlvia, tendo o pretor Lêntulus resolvido permanecer no arquivo, examinando algumas obras de arte.

 

 

Distanciando-se propositadamente dos demais grupos, o governador notava a palidez da companheira que, naquela noite, se lhe figurava mais sedutora e mais bela.

 

O respeito que a sua formosura discreta lhe infundia nalma, parecia aumentar, naquela hora, o ardor do coração apaixonado.

 

— Nobre Lívia — exclamou com emoção —, não posso guardar por mais tempo os sentimentos que as vossas virtudes cheias de beleza me inspiraram. Sei da natural repulsa de vossa alma digna, em face de minhas palavras, mas lamento não me compreendais o coração tocado dessa admiração que me avassala!…

 

— Também eu — revidou a pobre senhora, com dignidade e energia espontâneas — lastimo haver inspirado ao vosso espírito semelhante paixão. Vossas palavras me surpreendem amargamente, não só porque partem de um patrício revestido das elevadas responsabilidades de procurador do Estado, como por considerar a amizade confiante e nobre que vos consagra o meu esposo.

 

— Mas, em assuntos do coração — atalhou ele, solícito — não podem prevalecer as formalidades da convenção política, mesmo as mais elevadas. Tenho dos meus deveres a mais alta compreensão e sei encarar a solução de todos os problemas do meu cargo, mas não me recordo onde vos teria visto antes!… a realidade é que, há uma semana, tenho o coração dilacerado e oprimido… Encontrando-vos, parecia deparar-se-me esta imagem adorada e inesquecida. Tudo fiz por evitar esta cena desagradável e penosa, mas, confesso que uma força invencível me confunde o coração!…

 

— Enganais-vos, senhor! Entre nós não pode existir outro laço, além do inspirado pelo respeito à identidade de nossas condições sociais. Se tendes em tão alta conta as vossas obrigações de ordem política, não deveis olvidar que o homem público deve cultivar as virtudes da vida privada, incentivando, em si mesmo, a veneração e a incorruptibilidade da própria consciência.

 

— Mas, a vossa personalidade me faz esquecer todos esses imperativos. Onde vos teria visto, afinal, para que me sentisse empolgado desta maneira?

 

— Calai-vos, pelos deuses! — murmurou Lívia, assustada e empalidecida. Nunca vos vi, antes de nossa chegada a Jerusalém, e apelo para o vosso cavalheirismo de homem, a fim de me poupardes estas referências que me amarguram!… Tenho razões para crer na vossa ventura conjugal, junto de uma mulher digna e pura, tal como a vejo, reputando uma loucura as propostas que vossas palavras me deixam entrever…

 

 

Pilatos ia prosseguir na sua argumentação, quando a pobre senhora, amargamente surpreendida, sentiu-se desfalecer. Debalde mobilizou ela as suas energias vitais, com o fim de evitar o delíquio.

 

Presa de singular abatimento, encostou-se a uma árvore do jardim, onde se desenrolava a palestra que acabamos de ouvir. Receando as consequências, o governador tomou-lhe a mão delicada e mimosa, torturado pelos seus inconfessáveis pensamentos, mas, ao seu contato ligeiro, a natureza orgânica de Lívia parecia reagir com decisão e inquebrantável firmeza.

 

Recobrando as forças, fez com a cabeça um leve sinal de agradecimento, enquanto Públio e Cláudia se acercavam de ambos, renovando-se a palestra geral, com a satisfação de todos.

 

 

Todavia, a cena provocada pelas extravasões de afeto do governador não ficou circunscrita apenas aos dois atores que a viveram intensamente.

 

Fúlvia e Sulpício acompanharam-na em seus mínimos detalhes, através dos claros abertos na ramagem sombria.

 

— Ora esta! — exclamou o lictor para a companheira, observando as minudências da palestra que acabamos de descrever. — Então, já perdeste as boas graças do procurador da Judeia?

 

A essa pergunta, Fúlvia, que por sua vez não tirava os olhos da cena, estremeceu convulsivamente, dando guarida aos mais largos sentimentos de ciúme e despeito.

 

— Não respondes? — continuava Sulpício, gozando o espetáculo. — Porque me recusas tantas vezes, se tenho para oferecer-te um sentimento profundo de dedicação e lealdade?

 

A interpelada continuou em silêncio, no seu posto de observação, rugindo de cólera íntima, quando viu que o governador guardava, entre as suas, a mão exânime da companheira, pronunciando palavras que seus ouvidos não escutavam, mas os seus sentimentos inferiores presumiam adivinhar naquele colóquio inesperado.

 

 

Tão logo, porém, Cláudia e Públio figuraram no cenário, Fúlvia voltou-se para o companheiro, murmurando com voz cava:

 

— Acederei a todos os teus desejos, se me auxiliares num cometimento.

 

— Qual?

 

— O de levarmos ao senador, em tempo oportuno, o conhecimento da infidelidade de sua mulher.

 

— Mas, como?

 

— Primeiramente, evitarás a instalação de Públio em Nazaret, para levá-la mais distante, de modo a dificultar as relações entre Lívia e o governador, por ocasião de sua ausência de Jerusalém, porque estou adivinhando que ela desejará transferir-se para Nazaret, em breves dias. Em seguida, procurarei interferir, pessoalmente, de maneira que sejas designado para proteger o senador na sua estação de repouso e, investido nesse cargo, encaminharás os acontecimentos para consecução de nossos planos. Isso feito, saberei recompensar teus esforços e bons serviços de sempre, com a minha dedicação absoluta.

 

O lictor ouviu a proposta, silenciando, indeciso. Mas a interlocutora, como se estivesse ansiosa por selar a aliança sinistra, obtemperou em voz firme:

 

— Tudo combinado?

 

— De pleno acordo!… — respondeu Sulpício, já resoluto.

 

E as duas personificações do despeito e da lascívia reuniram-se à caravana fraterna, com a máscara das alegrias aparentes, depois de concluído o pacto tenebroso.

 

 

As últimas horas foram consagradas às despedidas, com a afabilidade exterior do convencionalismo social.

 

Lívia absteve-se de relatar ao esposo a cena penosa do jardim, considerando, não somente a sua necessidade de repouso íntimo, como também a importância social das personalidades em jogo, prometendo a si mesma evitar, a todo transe, qualquer expressão menos digna, no terreno do escândalo pelas palavras.