Conta-se que o Rico da Parábola, (Lc
De algum modo, resignara-se com os tormentos que lhe assediavam o coração, porque fizera por merecê-los, bem o reconhecia. Despojara viúvas paupérrimas, perseguira órfãos desprotegidos e provocara a falência de homens honestos; faltara a princípios comezinhos de caridade, praticara a usura e subornara consciências frágeis. Sempre decidido a valer-se do fascínio do ouro, aproveitara muita gente invigilante e inclinada ao mal, a serviço da ambição que lhe era própria. Receando o futuro, amealhara consideráveis haveres para os filhos; rodeara-os de vantagens e facilidades econômicas, à custa do angustiado suor dos humildes, por ele convertidos em escravos sofredores. Em suma, fora cruel e fazia jus à punição. Entretanto, não se conformava com a impossibilidade de avistar-se com a família. Por que não voltar à Terra para renovar a concepção da mulher e dos filhos? A companheira sempre fora fiel às suas recomendações. Se pudesse falar-lhe, corrigiria tudo a tempo. Todavia, Pai Abraão não lhe proporcionara qualquer esperança.
Refletia, amargurado, consigo mesmo, quando surgiu alguém no seio das sombras. A princípio, não reconhecera o recém-chegado, mas, depois de um abraço, o visitante exclamou:
— Não se lembra?!
Retribuiu emocionadamente. Recordava-se, agora. Aquele era Benjamim, filho de Habacuc, que o precedera no túmulo. Espantava-o a surpresa do reencontro. Benjamim, tanto quanto ele próprio, fora usurário, de coração frio e duro. O manto roto denunciava-lhe a penosa situação e a cinza que lhe cobria as mãos, o rosto e os cabelos davam a ideia de que o mísero emergia do bojo de uma cratera.
Terminadas as saudações da hora, o Rico humilhado expôs-lhe o caso pessoal. Conformava-se com o purgatório tenebroso, no reconhecimento de suas culpas, contudo desesperava-se pela impossibilidade de voltar a casa, para relacionar a verdade dos fatos.
O outro, porém, após ouvi-lo pacientemente, assegurou:
— Não vale a pena inquietar-se. Voltei e nada consegui.
— Voltou? — inquiriu o novo condenado, deixando transparecer, na voz, um raio de esperança.
— Sim.
— E chegou a visitar sua casa, sua mulher, seus filhos, seus servos, suas propriedades, suas terras, seus jumentos, seus camelos, seus bois?
— Sim.
— Visitou o templo?
— Visitei.
— Tornou a cruzar nossos campos?
— Tornei.
O Rico chegou a olvidar as aflições do momento e, contemplando o interlocutor, admirado, prosseguiu:
— E os familiares? Reconheceram-no?
O interpelado entrou em silêncio. Algumas lágrimas umedeceram-lhe os olhos sombrios. Instado pelo amigo, informou, com desapontamento:
— Visitei a família, detive-me nas propriedades que julguei me pertencessem, rendi homenagem aos tesouros de nossa raça, mas ninguém me reconheceu. Decorridos alguns dias sobre a morte do meu corpo, desarmonizaram-se meus filhos por questões da herança que lhes deixei. Ruben amputou o braço de Eliazar numa cena de sangue, Esaú amaldiçoou os irmãos e entregou-se ao vinho pela ausência do trabalho e Simeão enlouqueceu no vício. Minha esposa, não obstante a idade, apaixonou-se por um rico mercador de tapetes que se assenhoreou do nosso dinheiro e das preciosidades domésticas que me eram mais caras, conduzindo-a para Kades. Minhas terras de Gaza foram vendidas a qualquer preço a libertos romanos, meus camelos foram entregues, a troco de reduzidas moedas, a velhacos negociantes do deserto, meus bois foram mortos, meus jumentos dispersos. Alguns de meus servos fugiram espancados, enquanto outros foram vendidos para Chipre. Minhas propriedades rurais mergulharam no mato, caindo no abandono e entregues a criadores de cavalos e porcos.
Mostrou o Rico uma careta de angústia e perguntou:
— Mas a mulher e os filhos não o reconheceram?
— Visitei-os à noite, para conversarmos a sós, no entanto expulsaram-me em desespero, insistindo para que eu descesse para sempre aos infernos. Em vão procurei fazer insinuar-me entre eles. Não acreditaram na minha presença e fizeram-se surdos às minhas palavras.
Desencantado, o Rico perguntou:
— Não fez reclamações aqui? Não rogou o socorro de Pai Abraão?
Voltou-se o companheiro, explicando gravemente:
— Pedi o amparo dos mensageiros de Jeová, entretanto, em nome d’Ele, nosso Eterno Senhor, esclareceram-me que a obra era minha, que nunca fui verdadeiramente esposo de minha mulher e pai de meus filhos, nem amigo dos cooperadores e dos animais que me serviam diariamente. Jamais auxiliara os meus na aquisição dos valores positivos do espírito imortal e nem criara nas propriedades de que fui mordomo infiel o ambiente de amor e harmonia, calma e confiança que Jeová, em vão, esperou de mim. Apegara-me simplesmente à usura, ao egoísmo, à admiração e culto de mim mesmo, dilatando a vaidade de minha dominação indébita.
E concluiu, com tristeza:
— Por isso, mereci a ironia da sorte e a incompreensão dos meus.
O Rico ouviu, meditou, consultou as próprias reminiscências e, erguendo os braços para o alto, exclamou:
— Glória a Pai Abraão que não permitiu meu regresso à Terra e me deu a sede angustiosa e o fogo consumidor para que sarem as feridas de minhalma!
E, resignado, deitou-se na cinza quente do purgatório, esperando o futuro.