Lázaro Redivivo

Capítulo XXV

A palavra do morto



Quando Saul sentiu o peso das tremendas responsabilidades, no campo da autoridade e do poder, lembrou-se imediatamente de Samuel, o grande juiz que o precedera na direção dos israelitas. O nobre varão, todavia, fora arrebatado ao mundo da morte. No entanto, o rei sabia que os mortos podiam voltar, fazendo-se ouvidos. Interrogando os áulicos do seu séquito, soube que em Êndor havia uma pitonisa que talvez pudesse satisfazer-lhe os propósitos. (1Sm 28:7)

Não hesitou e dirigiu-se a ela. E quando a intermediária caiu em transe, após admoestá-lo quanto ao anonimato a que se recolhera, eis que Samuel lhe surge aos olhos assombrados. Não é um fantasma que o visita, trazendo resquícios da sepultura. É o verdadeiro Samuel, materializado à plena luz, que lhe estende as mãos acolhedoras. Não tem as insígnias de juiz e o seu olhar, outrora severo e autoritário, mantém-se impregnado de humildade infinita. Ampla capa resguarda-lhe o corpo, e enquanto recompõe a sua figura, a fim de conversar calmamente, Saul cai, genuflexo, em pranto convulsivo.

— Ó santo Juiz de Israel — pergunta o rei, emocionado e confundido —, onde estão as tuas insígnias de Enviado de Jeová? Por que voltas do túmulo, pobre e simples, como qualquer mortal?

Contemplou-o Samuel, tristemente, e respondeu:

— Saul, que o Eterno te abençoe e te conceda paz! Não me perguntes pelas possessões e honrarias efêmeras. Minha túnica de linho de julgador e minha espada de guerreiro ficaram para sempre no sepulcro de Ramá. O homem que exerce a Justiça, perante o Supremo, não deve aguardar prerrogativas diferentes daquelas que felicitam os ministros do Senhor, em qualquer trabalho proveitoso… Mas, ouve! Que te induz a chamar-me do túmulo? Por que razões interrompes o meu trabalho no reino dos mortos?

Saul enxugou as lágrimas abundantes e falou:

— Ó Grande Juiz, aconselha-me! Estamos na véspera de grandes batalhas e tenho o coração cheio de maus presságios!… Sinto-me inquieto, hesitante… Dize-me o que pensas, concede-me as tuas diretrizes sábias e justas!

O Espírito de Samuel fitou-o, melancolicamente, e voltou a interrogar:

— Que desejas que eu diga?

— A verdade! — disse o rei, ofegante.

A entidade sorriu e observou:

— Entre os homens que vivem na carne e os que já reviveram, fora dela, ao sublime influxo da morte, a verdade é sempre terrível. Poderás, acaso, suportá-la?

Respondeu Saul, afirmativamente.

O Espírito materializado avançou para ele, afagou-lhe a cabeça e falou, comovido:

— Volta então ao povo de Israel, desarma o nosso exército e dize à nação que o nosso orgulho racial é um erro nefasto e profundo, diante da morte, inevitável para todos. Notifica as doze tribos de que nossas guerras e atritos com os vizinhos são malditas ilusões que nos agravam as responsabilidades, diante do Deus Altíssimo. Cientifica-os de que a morte ensinou a mim, último juiz dos israelitas, as mais estranhas revelações. O Senhor Supremo não está em nossa arca de substância perecível do mundo, que não passa de mero símbolo, respeitável embora… Onde teremos buscado tanta audácia para nos julgarmos privilegiados do Eterno? que Espíritos satânicos penetraram nossos lares, para odiarmos o trabalho pacífico, entregando-nos ao monstro da guerra, que espalha a fome, a peste e a desolação? É verdade que os nossos antepassados muito sofreram nas perseguições da Babilônia e no cativeiro do Egito, mas também é inegável que nunca soubemos valorizar os favores e as graças de Jeová, o Pai Magnificente. Reajustando agora os meus conhecimentos pelas imposições do sepulcro, eu mesmo, que cultivava a Justiça e supunha servir ao Senhor, compreendo quanto me afastei das vozes espirituais que nos induziam ao escrupuloso cumprimento da Lei. Sou hoje obrigado a socorrer os nossos armadores e frecheiros, guerrilheiros e pajens de armas, que choram e sofrem junto de mim e aos quais ajudei na matança. Volta, pois, Saul, enquanto é tempo, e ensina aos nossos a realidade dura e angustiosa. Explica-lhes que os filisteus são também filhos do Altíssimo e que, ao invés de nos odiarmos, é imprescindível nos amemos uns aos outros, auxiliando-nos reciprocamente, como irmãos. Os lares de Jerusalém não são melhores que os de Ascalão. Vai, e ensina ao nosso povo uma vida nova! Faze que os instrumentos destruidores do extermínio se voltem para o trabalho pacífico e abençoado no solo da Terra!

Saul soluçava, de joelhos. Como aceitar os conselhos inesperados e humilhantes? Não se sentia com a força precisa para recuar. Buscava orientação para a vitória na batalha e o juiz inesquecível de Israel voltava do misterioso reino da morte para induzi-lo à submissão? O Espírito de Samuel compreendeu-lhe a luta íntima e falou, carinhoso:

— Lembra-te do tempo em que, humildemente, reunias jumentas no campo, na pobre condição de descendente da tribo de Benjamim, e não estranhes minhas palavras. Recorda-te que, quando o Senhor deseja conhecer as conquistas de uma alma, dá-lhe a autoridade e a fortuna, o governo e o trono para a terrível experiência. Atende a Deus e domina-te. Execute a Vontade do Senhor e esquece-te, para que possas, de fato, triunfar, por sua Divina Misericórdia.

Fez-se então pesado silêncio. Como Saul chorasse, o mensageiro, desejando ultimar a entrevista, perguntou:

— Desistirás da carnificina? Reconciliar-te-ás com os inimigos? Ensinarás ao povo a humildade, o serviço e a concórdia?

O rei de Israel fez um esforço supremo e respondeu:

— É impossível! Não posso!

O Espírito fitou-o com profunda tristeza e acrescentou:

— Como pedes, então, conselhos à luz da sabedoria, se preferes a prisão nas trevas da ignorância? O Senhor envia-te as verdades de hoje, por minha boca, mas, se persistes em desatendê-lo, rasgará o reino que guardas nas mãos e entregará a outrem a autoridade. E se não deres ouvidos à Divina Palavra, executando os sinistros propósitos de tua ira, sofrerá Israel contigo as consequências de tua rebeldia, cairás aos golpes do adversário e, amanhã mesmo, serás recolhido pela morte, juntamente com os teus filhos, vindo aprender conosco que ninguém confundirá o Eterno Poder!

Voltou Samuel à sua condição no Plano invisível e Saul caiu desmaiado de espanto, enquanto a pitonisa acordava para socorrê-lo.

E como acontece a muita gente que roga orientação aos Espíritos desencarnados, Saul desprezou as advertências ouvidas e atendeu aos caprichos condenáveis de seu coração, mas, também, no dia seguinte, estava com os filhos no caminho sombrio do sepulcro, a fim de aprender com a morte as sagradas lições da vida.


(.Humberto de Campos)