Surpreendeu-se você com a minha resposta despretensiosa e sincera [v. ], sobre as complexidades do Espiritismo, diante das manifestações das inteligências menos desenvolvidas, nos serviços fenomênicos, e pergunta-me, inquieto:
— Mas, você aprova o uso da cachaça e do fumo por entidades desencarnadas? Elogia o linguajar dos manifestantes a que me referi? Não considera essa tolerância um perigo para o sistema doutrinário?
Parece, contudo, meu amigo, que você não penetrou a essência de minhas palavras. Não posso aprovar o uso de drogas aviltantes nem pelos desencarnados, nem por você que não desdenha venenosos anestésicos, adquiridos como material elegante. Não posso elogiar o erro deliberado, como ninguém pode, em sã consciência, louvar os desequilíbrios voluntários. Quanto à sua terceira interrogação, consideramos que o sistema doutrinário nada tem que ver com as manifestações do indivíduo. O Estado, representando o conjunto das leis que regem um País, será responsável pelos fenômenos infantis, dentro dos quais o patriota do futuro não sabe senão balbuciar alguns rudimentos da língua? Condenará, porventura, a criança que não lhe pode soletrar os códigos, ou providenciará serviços eficientes de educação?
Desde 1583, época em que, segundo Rio Branco, foi firmado o primeiro contrato para a introdução de escravos africanos no Brasil, cercamo-nos deles, valendo-nos de sua cooperação heroica. Pensávamos, antigamente, que bastaria a morte do traficante ou do comprador para que o problema fosse liquidado com a remessa das almas para o céu ou para o inferno. Entretanto, meu amigo, não é assim. Adquirimos débitos individuais e coletivos.
A contar de 1758, quando o corajoso sacerdote Manuel Ribeiro da Rocha ousou escrever contra a vergonha da escravidão, autorizadas vozes se levantaram, sob a luz do Cruzeiro, contra o doloroso comércio de homens livres. Em 1789, a abolição já constituía um dos itens do programa político da Conjuração Mineira. Em 1810, o príncipe D. João fez o possível por golpear o ignóbil movimento, sensibilizado com as injustiças que presenciava diariamente no Rio, efetuando providências para a extinção gradual do cativeiro, que culminaram com a ratificação do tratado concluído em Viena, entre Portugal e Inglaterra, pelo qual a Nação Portuguesa se propunha a cessar todo o tráfico na costa africana. Mais tarde, D. Pedro I, na Convenção de Novembro de 1826, assinava novo acordo com a Grã-Bretanha, pelo qual o Governo do Brasil se comprometia a proibir toda espécie de comércio de escravos na Costa da África. Entretanto, não abandonamos o movimento odioso e conta-se que muitos navios ingleses, depois da Convenção, postavam-se nas vizinhanças de Angola e Moçambique, expulsando as nossas embarcações negreiras.
Não valeram exortações de estadistas e pensadores do Brasil ou do estrangeiro. Enviava-nos o Cristo a sua Divina 1nspiração, através dos caracteres mais nobres do Governo, mas continuávamos no movimento criminoso, atendendo a caprichos cruéis. Não nos contentávamos em gastar o nosso ouro na aventura sinistra. Hoje sei que muitos franceses ilustres, inclusive alguns dos precursores intelectuais dos chamados “direitos do homem”, emprestavam capitais, com excelente expressão lucrativa, aos negociantes de vidas humanas, alimentando o condenável comércio.
Acredita que a nossa teimosia pudesse ficar impune? Nossa atitude coletiva envolve um débito moral de vasta expressão.
Objetará, talvez, que não fomos o único País a escravizar os filhos de outras terras e responderemos que não somos o único País a pagar tributos dessa natureza. Desde muito antes do Império Romano, que perdeu a hegemonia política em virtude do instinto de dominação, todas as nações da Terra saldam os compromissos morais, de acordo com os débitos contraídos.
Pergunta-me, ainda, você, como interpretar as entidades reconhecidamente perversas, que comparecem, por vezes, no círculo de manifestações dos antigos escravos desencarnados em solo brasileiro. De acordo com a lógica, acreditamos que são criaturas tão detestáveis e infelizes como as entidades dos brancos reconhecidamente pervertidos, que se transformam, por vezes, em monstruosos demônios, perseguindo e obsidiando inteligências frágeis e mentes vacilantes.
Ultimando as indagações, você exclama e interroga:
— Oh! compreendo a responsabilidade, mas como extinguir o mal?
Sim, as nossas responsabilidades morais, nesse setor da evolução coletiva, são bem graves e não podemos desdenhá-las.
Voltando às primeiras afirmativas destas humildes considerações suplementares, tomamos a liberdade de personificar o “Estado” no sistema doutrinário do Espiritismo cristão, classificando as manifestações diversas do Espiritismo fenomênico como “zonas educativas”.
Supõe você que a Abolição terminou em 13 de maio de 1888? A grande resolução da Princesa Admirável atingiu os “escravos físicos”, continuando-se aqui o serviço de libertação dos “cativos espirituais”. José do Patrocínio e Luís Gama, Antônio Bento e Castro Alves, André Rebouças e Joaquim Nabuco prosseguem na jornada redentora. A Princesa Isabel não considera o movimento terminado e continua, também, servindo à grande causa, desatando os grilhões da ignorância e acendendo novas luzes na esfera a que você chegará em futuro próximo.
Observo que em sua pergunta derradeira você mostra o desejo de receber um roteiro de serviço. A propósito, comunico-lhe que levei suas considerações e indagações ao conhecimento de um dos Espíritos mais belos que militaram na campanha abolicionista do Brasil, e essa criatura generosa deu-me a resposta sábia, que transmito a você, sem omitir uma só palavra:
— Diga aos nossos companheiros do Espiritismo cristão no Brasil que eles receberam de Jesus um sagrado depósito, qual o de associar o Evangelho da Redenção às conquistas científicas, filosóficas e religiosas da Humanidade. Insista para que aproveitem a gloriosa oportunidade em obras de amor. Que eles nos ajudem no benemérito serviço de educação e libertação daqueles a quem tanto devemos! Mas, ouça! Avise-os para não se aproximarem dos nossos benfeitores humildes como catedráticos orgulhosas e envaidecidos e, sim, como irmãos verdadeiramente interessados no bem. E, sobretudo, diga-lhes que também nós estamos empenhados na mesma luta pela iluminação espiritual, mas que ao ensinarmos a Pai Mateus e Mãe Ambrósia as lições acerca das leis de Kepler, dos movimentos de Brown e das ondas de Marconi, aprendemos com eles, por nossa vez, as lições de humildade, devotamento e renúncia, nas quais já se diplomaram, desde muito, negando a si mesmos, tomando a sua cruz e seguindo a Nosso Senhor Jesus-Cristo.