Lázaro Redivivo

Capítulo XLII

Filosofia da dúvida



Nem sempre os inimigos declarados da fé são os destruidores da edificação espiritual. () Os materialistas confessos, por vezes, são excelentes pessoas de coração mole e cabeça dura. Sentindo-se afastados da prática religiosa, quase sempre experimentam sincero prazer no serviço aos semelhantes, absolutamente desinteressados da remuneração divina. A descrença deles resulta muito mais da impossibilidade espiritual que da má-vontade calculada. E como não se pode exigir fruto da laranjeira tenra, é necessário deixá-los no ateísmo provisório, ao sol e à chuva das experiências que fazem e desfazem as coisas e situações, para que o homem descubra a própria grandeza.

Os caracteres verdadeiramente perigosos para os serviços edificantes da fé são aqueles que lhe recebem as bênçãos, absorvem as luzes e recolhem os benefícios, declarando-se contra ela, no dia seguinte, empunhando as armas da inteligência com que precipitam no abismo da dúvida a mente frágil dos companheiros que lhes pedem a mão.

Os sacerdotes do Sinédrio, que provocaram a crucificação do Cristo, permaneciam na rigidez de princípios que lhes caracterizava o trabalho e jamais esconderam o desagrado que a lição de Jesus lhes causava, mas os soldados pagos para declarar que a ressurreição não passava de embuste grosseiro, asseverando, à maneira de observadores superinteligentes, que os discípulos haviam furtado o corpo do Mestre nas sombras da noite, esses, sim, ocasionaram graves distúrbios, junto ao Evangelho nascente. É inegável que semelhantes perturbadores não afetam a verdade eterna em sua essência divina. As permanentes discussões dos astrônomos sobre as manchas do Sol não impedem que o astro glorioso continue iluminando e sustentando o Planeta. As tricas teológicas da Terra nunca diminuíram a misericórdia de Deus. Entretanto, na esfera das realizações humanas, a ausência de cooperação dos favorecidos da inteligência retarda, de certo modo, as construções sublimes da fé viva para a concórdia e felicidade de um mundo melhor. É justo, portanto, indicarmos a zona nevrálgica do trabalho, procurando acordar os companheiros de cérebro desenvolvido e coração atrofiado. Desde os primeiros dias do Consolador, trazido à Terra com o Espiritismo cristão, cercam eles a esfera do serviço digno de restauração evangélica, lançando as areias movediças da dúvida no terreno destinado às convicções sadias.

Cooperando no ministério sublime de Allan Kardec, os Espíritos Sábios e Benevolentes organizaram com o inesquecível missionário a codificação da doutrina consoladora, endereçada ao espírito sofredor da Humanidade. Todavia, Charles Richet, não obstante os títulos enobrecedores que lhe exornam a personalidade, faz a revisão dos ensinamentos espiritistas, criando a Metapsíquica para evidenciar a supremacia da dúvida. William Barrett, membro da Real Academia da Inglaterra, depois de agraciado pelas luzes do Plano superior, proclama que a emoção nervosa é a fonte dos acontecimentos supranormais e que ainda vem longe o tempo em que se possa provar a sobrevivência do ser humano, além da morte, através das manifestações mediúnicas. Ochorowicz, favorecido por elevadas inteligências desencarnadas, acompanha o gigantesco esforço dos Amigos Espirituais, que lhe facultam notáveis demonstrações; no entanto, em seguida ao prestigioso serviço das entidades invisíveis, declara que a levitação é produto da mecânica biopsíquica, de cujos centros promanam, segundo a teoria dele, os raios rígidos que movimentam os corpos sem contato. Experimentadores diversos, após receberem favores brilhantes do mundo invisível, propõem que a palavra “materialização” seja substituída pelo termo “ectoplasia”, para significar que o fenômeno não implica a intervenção de inteligências estranhas e sim o mero desdobramento do corpo físico em condições desconhecidas da energia nervosa.

Possui a Ciência infinitos recursos terminológicos para incentivar a dúvida nas almas. E quando surgem pesquisadores conscienciosos e sinceros, que não temem as consequências de sua lealdade à sabedoria, alastram-se as definições sarcásticas e chovem pedradas. Até hoje, aparecem pessoas interessadas em apresentar William Crookes e César Lombroso na categoria de papalvos, a quem os médiuns subtraíram as faculdades de observação diante da vida. Mesmo no Brasil, homens de vasta cultura e projeção social, como Bittencourt Sampaio e Bezerra de Menezes, foram tachados de palermas e loucos, o primeiro porque permutou a política engenhosa dos homens pela divina política do Evangelho e o segundo porque trocou os interesses financeiros dos médicos altamente remunerados pelos interesses eternos do espírito.

É muito difícil vencer o dragão da vaidade humana que monta guarda ao nosso patrimônio intelectual.

Ainda que homens respeitáveis e bem intencionados, como Richet, venham à zona do esclarecimento, colaborando, com êxito, na intensificação da cultura moderna, surge sempre uma brecha, aqui ou ali, por ande o monstro deita as garras de fora, revelando a deficiência de nossa edificação pessoal.

Essas maravilhosas inteligências, filiadas à hesitação sistemática, continuarão prejudicando o desenvolvimento dos germens da fé e adiando indefinidamente as realizações de um mundo espiritualizado; entretanto, passarão também no campo infinito da vida, dando lugar aos cientistas mais fortes e desassombrados. Que ninguém se perturbe, em face desses homens admiráveis pelo raciocínio, porque eles vão discutindo, duvidando e morrendo e os Espíritos Benevolentes e Sábios prosseguirão construindo, sem desânimo e sem inquietação, a Terra Melhor de amanhã.


(.Humberto de Campos)