Lázaro Redivivo

Capítulo XLVIII

O discípulo ambicioso



Quando Judas, obcecado pela ambição, procurou avistar-se com Caifás, no Sinédrio, (Mt 26:14) trazia a cabeça incendiada de sonhos fantásticos.

Amava o Mestre — pensava, presunçoso —, entretanto, competia-lhe cuidar dos interesses d’Ele. A vaidade absorvia-o. A paixão pelas riquezas transitórias empolgava-lhe o espírito. Despreocupado das necessidades próprias, intentava resolver os problemas do Senhor, perante as forças políticas do tempo. Valer-se-ia da influência prestigiosa dos sacerdotes, movimentaria Jerusalém, tomaria o cetro do povo israelita, em obediência às tradições dos reis e juízes do passado e, logo que fosse consolidado o poder, restituiria a Jesus a direção, a honra, a chefia… O Mestre ensinava a concórdia, a tolerância, a paciência e a esperança, mas, como efetuar as reformas necessárias, através de simples atitudes idealistas?

E o discípulo, em atitude de homem escravizado à ilusão, aguardava Caifás, que não se fez esperar muito tempo.

Na sala enorme, iniciaram discreta conversação.

O sumo-sacerdote, após abraçá-lo com fingida simpatia, observou, em tom cordial:

— Com que então o Templo tem a felicidade de contar com a sua valiosa colaboração!

— Ah! sim, é verdade — exclamou o leviano aprendiz, sentindo-se envaidecido.

Caifás, consciente da própria importância na administração de Jerusalém, voltou a dizer:

— Precisávamos de alguém, com bastante coragem, para salvar o Messias Nazareno.

— Oh! sim — disse Judas, contente —, compreendo a situação.

— De fato — prosseguiu o chefe do Templo necessitamos de um rei que nos restaure a liberdade política e, em boa hora, os galileus nos oferecem tal oportunidade. Aliás, tenho muito prazer em tratar com a sua pessoa, homem providencial na realização, que não perde tempo com palavras ociosas. Tentei abordar indiretamente outros homens daqueles que acompanham o Nazareno, porém, todos eles, ao que me pareceu, são esquivos e indecisos. Creia, no entanto — e elevou muito o diapasão de voz, impressionando o interlocutor pela segurança verbal —, creia, porém, que o seu gesto, anuindo aos nossos propósitos, apressará a vitória do Messias, conferindo elevados títulos aos seus companheiros. Terão eles destacada posição de domínio e sentar-se-ão na assembleia mais alta do povo escolhido. É tempo de libertação e, certo, Jesus é o rei que Jeová nos envia.

Judas não cabia em si mesmo, tal o contentamento que lhe tomava o coração. Preocupado, no entanto, com a situação do Profeta, a quem tanto devia, perguntou, humilde:

— E o Mestre?

Dissimulou Caifás os sentimentos sinistros que lhe vagavam na alma e respondeu em voz quase doce:

— Compreenderá, certamente, a necessidade das medidas aparentemente rigorosas. O Mestre, por exemplo, segundo o plano estabelecido, será preso, por uma questão de segurança pessoal. Será detido, a fim de que se coloque a salvo de qualquer incidente desagradável, enquanto nos valeremos da grande aglomeração de patriotas na cidade para proclamar a nossa independência. Liquidada a vitória inicial, com a submissão das autoridades romanas, coroaremos o Messias, que ostentará o cetro do poder.

O discípulo exultava. Conhecedor antigo dos efeitos da lisonja nos corações indisciplinados e invigilantes, Caifás continuou:

— O meu prestimoso amigo, até que se resolva a situação em definitivo, chefiará os companheiros e receberá as homenagens que lhe são devidas. Tomará o lugar do Messias, provisoriamente, e ditará ordens, até que ele próprio, com a garantia desejável, possa assumir o poder.

Satisfeitíssimo, o visitante indagou:

— E que devo fazer inicialmente?

O sacerdote perspicaz respondeu com naturalidade:

— Não temos tempo a perder. Formaremos a documentação necessária.

— Como devo fazer? — perguntou ainda o aprendiz enganado.

— Chamarei as testemunhas — esclareceu o sumo-sacerdote — e, perante nós, responderá afirmativamente a todas as interrogações que lhe forem dirigidas. Não precisará informar-se quanto a particularidade alguma. Bastará responder “sim” a todas as perguntas formuladas. Posso dispor de sua lealdade?

Judas não hesitou. Estava decidido a seguir as instruções, de modo incondicional. Mais alguns minutos e organizou-se pequena assembleia, com juízes e testemunhas. Dois escribas perfilaram-se para fixar as declarações.

Formada a reunião, o sumo-sacerdote chamou o denunciante e iniciou o interrogatório:

— É discípulo de Jesus, o Nazareno? Confiante, Judas respondeu:

— Sim.

— Vem fazer declarações ao Sinédrio, como judeu convicto da santidade da lei?

— Sim.

— Afirma que o Messias Nazareno pretende ser o rei de Israel?

— Sim.

Assegura que ele promete a revolução contra o poder de César e a autoridade de Ântipas?

— Sim.

— É verdade que ele odeia os romanos?

— Sim.

— Deseja, de fato, aproveitar a Páscoa, para começar a rebelião?

— Sim.

— Declarará a emancipação política de Israel, imediatamente?

— Sim.

— Promete lutar contra quaisquer obstáculos para derrubar as combinações políticas existentes entre Roma e esta província, no sentido de coroar-se rei?

— Sim.

De posse das declarações comprometedoras, Caifás interrompeu o inquérito, mandou que Judas esperasse na ante-sala e iniciou providências junto de romanos e judeus, para que Jesus fosse preso, imediatamente, como agitador político e explorador da confiança pública.

Em breves horas, um grupo de soldados postava-se nas vizinhanças do Templo, à espera da ordem final, e Caifás, compensando Judas com algum dinheiro, fez-lhe sentir a necessidade de sua orientação na prisão inicial do Messias, assegurando que, em breve tempo, se cumpriria a redenção de Israel.

O discípulo invigilante foi à frente de todos e encaminhou a triste ocorrência.


E, quando os fatos marcharam noutro rumo, debalde o Iscariote procurou avistar-se com as autoridades, tão pródigas em promessas de poderes fascinantes. Findo o processo de humilhações, encarceramento, martírio e condenação de Jesus, o aprendiz infiel conseguiu encontrar o sumo-sacerdote e alguns intérpretes da lei antiga, em animada conversação no Sinédrio.

Em lágrimas, Judas rogou que fosse interrompida a tragédia angustiosa da cruz, e sentindo, tarde embora, que fora vítima da própria ambição, devolveu as moedas de prata, exclamando, de joelhos:

— Socorrei-me! Cometi um crime, traindo o sangue inocente!… A vaidade perdeu-me, tende compaixão de mim!…

Os interpelados, porém, como velhos representantes da ironia humana, responderam simplesmente:

— Que nos importa? Isso é contigo… (Mt 27:4)


(.Humberto de Campos)