Lázaro Redivivo

Capítulo VI

Quem avisa…



Conta-se que um cômico célebre, em pleno espetáculo, recebeu, no entreato, um telegrama triste, anunciando-lhe a morte do pai. Desatando as lágrimas, voltou à ribalta em suprema consternação, comunicando à plateia: — “Meus senhores, acabo de ser informado de que meu pai morreu!…” Ao invés, porém, da compunção dos ouvintes, recebeu estonteantes aplausos. O público ria gostosamente, acreditando na continuação da peça, embora o patético a caracterizar-se no rosto angustiado do artista. Naquele instante, seu coração era uma fonte de lágrimas, sustentando um rio de gargalhadas.

Onde a culpa do infeliz?

Há pessoas que nascem na Terra com o dom de chorar para que outros desenvolvam a faculdade de rir.

A propósito, conheço um homem que viveu alguns anos no mundo escrevendo anedotário venenoso, que muitos leitores consumiam, ávidos, no silêncio de salas desertas. Cavalheiros respeitáveis e senhoras bem-postas, jovens de ambos os sexos, recolhiam-se, de quando em quando, em obscuros recantos da casa, cultivando a perfídia sorridente e a ironia maliciosa. Liam com interesse, lembravam pessoas de suas relações, emoldurando-as nos quadros que a leitura lhes sugeria e, não raro, cerravam a porta, a fim de viverem, mais intensamente, as impressões recolhidas.

O pobre autor desempenhava atribuições de escriba popular. Nas ruas, nos cafés, nas bancas de jornais, nas rodas de amigos, surpreendia todas as notas picantes, aproveitando-as em molho de escândalo na frigideira da gramática para o consumo geral. Os fregueses eram numerosos e, por isso, não era pequeno o trabalho das linotipos.

O comentarista alegre, contudo, se fazia rir como Triboulet, o palhaço, a fim de ganhar a vida, no fundo de si mesmo desejava ser como Epaminondas, o tebano ilustre, que morreu amando as realizações honestas. E mais tarde, ao apagar das luzes, ele, que vendia risos, passou a exportar sofrimentos. Com a renovação espiritual, modificou-se-lhe a clientela. Suas páginas não mais figuravam entre as leituras secretas guardadas a sete chaves. Eram, agora, folhas pálidas de filosofia da desilusão, da sombra, do destino e da dor.

Encontrou, nessa fase, amizades mais sólidas. Junto daqueles que colhem as rosas da existência humana, inumeráveis são as fileiras dos que trabalham entre os espinhos e, se alguns espíritos jovens estão bailando despreocupados, no festim da vida carnal, são incontáveis os corações amadurecidos que velam, súplices, nas trevas da noite. Em vista disso, talvez, encontrou ele simpatias novas, mais claras e mais sinceras.

Mergulhado nesse campo de vibrações diferentes, transferiu-se para o castelo da morte, onde, surpreendido, encontrou as profundas e maravilhosas revelações da vida. Renovado, feliz, prosseguiu escrevendo para os companheiros de luta, reavivando-lhes a esperança no naufrágio das ilusões. Como marinheiro experiente, sentindo a inesperada segurança da praia, atirava salva-vidas aos irmãos de sonho, que se debatiam a distância, na fúria das águas móveis e traiçoeiras.

Mantinha-se nesse labor, quando os admiradores de sua primeira fase de serviço, velhos cultivadores da malícia humana, gritaram do alto de sua superioridade:

— Ele? Impossível. Como falar do Céu, quem se agarrava freneticamente à Terra?

— É mentira! Ele não tinha fé!

— Como é isso?! há subversão na ordem espiritual? A pregação do bem estará confiada aos impenitentes da vida humana?

O pobre comentarista desencarnado começou a receber acusações e pedradas. Alguns adversários gratuitos, se pudessem, levantá-lo-iam do túmulo para afrontá-lo a pancadas. Surgiram discussões, perseguições, atritos.

Impressionado e comovido com as torturas de que o amigo era vítima, procurei-o, em pessoa, não só para confortá-lo, mas também para recolher-lhe as íntimas impressões. Não fui encontrá-lo, porém, descabelado, a gritar, como personagem de ópera, em desespero. Revelava-se calmo, sereno, seguro de si mesmo; e, cheio de compreensão pelas fraquezas do próximo, terminou a palestra, esclarecendo com um sorriso:

— Não, meu amigo, não estou desalentado. Se estivesse por lá, no turbilhão, talvez fizesse pior. Se ainda me demorasse na carne e soubesse que um homem, como eu, andava escrevendo sobre a iluminação eterna da alma, depois da morte do corpo, admitiria tudo, menos a realidade. Muitos me acusam, gratuitamente, classificando-me de escritor venenoso, mas… que fazer?

Fez longa pausa, mostrou maior lucidez no olhar compreensivo e concluiu:

— Não me preocupo, agora, por mim, que tenho a felicidade de resgatar o passado. Como é natural, todavia, preocupo-me pelos meus antigos clientes, porque se me conhecem tão bem, dão testemunho de que me leram com atenção. Leram e gostaram. E se eu, presentemente, trabalho para destruir a árvore que plantei, eles que se preparem diante do futuro, porquanto é provável que quase todas tenham de vomitar os frutos que ingeriram gostosamente.


(.Humberto de Campos)