Lázaro Redivivo

Capítulo XIII

Rogativa e ação



Nas asas veludosas do sono, chegou o aprendiz ao Palácio Resplandecente da Grande Esfera. Diante da luz que o circundava, suas vestes pareciam constituir pesada túnica de lodo negro. Ofegante de júbilo, encontrou um mensageiro que o aguardava, atencioso, no pórtico. Deslumbrado, ajoelhou-se e exclamou em lágrimas:

— Emissário dos Céus, meu Espírito enlameado na carne vive prisioneiro da angústia sem esperança. Em vão procuro a felicidade — mito dos mortais que vagueiam na Terra! Sonho com a paz, desde os albores da existência, entretanto, vivo na luta incessante do mal. Em derredor de mim estende-se a treva impenetrável do sofrimento!… Detesto a dor, mas embalde lhe fujo aos grilhões! Atormento-me por atender às obrigações espirituais que a fé me conferiu nos caminhos do mundo, todavia, afronta-me a adversidade em toda parte. Os homens não me compreendem, as circunstâncias repelem-me e, em todas as situações, sinto o gume afiado da zombaria alheia. Ridicularizam-me os maus, enquanto os bons se desinteressam de minha sorte! os ignorantes, preguiçosos, em demasia, menosprezam-me o concurso e os sábios, excessivamente ocupados, não me dispensam consideração. Perseguido por dificuldades sem conta, sinto-me encarcerado em pesadas correntes de desespero. Ouço o sublime convite do Evangelho da Luz, mas permaneço sitiado nas sombras pelos obstáculos e tropeços de toda sorte. Se, num esforço supremo, tento abraçar a verdade, encontro multidões de exploradores cínicos e de mentirosos sem consciência!… No círculo de meus familiares, o infortúnio e a aflição constituem a recompensa aos meus serviços. Sou, talvez, uma peça útil na maquinaria doméstica pela expressão econômica de minha presença, contudo, sinto frio e sede porque ninguém se recorda de minha necessidade de conforto!…

Nesse instante, soluços angustiosos escaparam-lhe do peito opresso. E porque o mentor amigo continuasse em silêncio, embora a compaixão que lhe transparecia do olhar, o peregrino continuou em pranto:

— Viverei assim todo o tempo de minha permanência na carne? Não terei direito à paz, à misericórdia? Caminharei como condenado a tormento infernal, quando há tantas mãos que abençoam e bocas que sorriem nas estradas humanas? Que fazer para remediar a situação dolorosa e terrível?

O emissário fixou nele os olhos muito lúcidos e respondeu com serenidade:

— Não chores por dificuldades imaginárias nem te refiras a ingratidões inexistentes. Chora por ti mesmo, pela tua escolha individual no campo da luta! Cercou-te o Senhor de dádivas sublimes. Deu-te o dia radiante de sol e a noite iluminada de estrelas, para que busques a libertação, mas preferes o encarceramento no escuro abismo da primitiva animalidade. Foste à carne viver em nome d’Ele, Divino Doador das Bênçãos, contudo, teimas em viver exclusivamente em nome do teu velho egoísmo. Queres efetivamente a felicidade? Faze a felicidade dos outros. Procuras a paz? Começa por apaziguar os próprios desejos e extinguir as paixões inferiores que te vibram no ser. Falta-te a colaboração alheia? É que ainda não cooperaste realmente para o bem. Pretendes que os demais se afeiçoem aos teus propósitos, despreocupando-te das necessidades alheias.

A essa altura, o mendigo terrestre enxugava os olhos, embora continuasse genuflexo. Parecia surpreendido, porquanto ao invés de consolação recebia esclarecimento.

— A imponderação — continuou o mensageiro —, como acontece a muita gente, viciou-te o dom da palavra. Grande é a tua eloquência para exprimir a queixa e profunda a sutileza com que disfarças a realidade de teu mundo íntimo. Ainda não ajudaste os ignorantes, nem respeitaste os sábios. Ao contato com os primeiros, é preciso exercer a bondade e a paciência, o entendimento e o perdão, e, no convívio dos segundos, é necessário não esquecer a humildade e o aproveitamento, a aplicação e o serviço. E, se choras no círculo da família, muitas vezes bebes o fel do desespero, porque te! negando à compreensão e ao carinho fraternal, ofereces recursos materiais aos companheiros no sangue.

Talvez porque o interpelado revelasse extrema perturbação no rosto, o emissário ofereceu-lhe o braço amigo e terminou:

— Volta ao serviço terreno, meu irmão, em nome de Nosso Divino Senhor! Perdoa e auxilia, trabalha e espera, praticando o bem e esquecendo o mal.

O peregrino da Terra estava confundido e humilhado, mas o mensageiro amparou-o, seguindo-lhe os passos, no retorno ao corpo físico.

Convidado, acompanhei-os, com emoção.

A manhã ensolarada enchia-se de cânticos festivos.

O nosso amigo acordou, vestiu-se e, ao café, uma senhora simpática indagou, humilde:

— Meu filho, que direi aos companheiros que te pedem concurso para os tuberculosos desamparados?

— Nada! — resmungou ele — estou farto de gente má.

A respeitável matrona voltou a perguntar:

— E aos amigos de nossas atividades espiritualistas?

— Diga-lhes que não! Não estou disposto a suportar imbecilidades.

— Meu filho! Meu filho!… — exclamou a senhora, com inesquecível inflexão de voz.

— Estou entediado, minha mãe! Não me dê conselhos! — replicou ele agressivamente.

O generoso orientador dispôs-se ao regresso e disse-me sem mágoa:

— Viu? Inúmeros amigos encarnados rogam, com enternecimento, a proteção divina, mas fogem a ela com indiferença e brutalidade.

E num sorriso sereno:

— Deixemo-los! Tentamos ajudá-los com a luz da verdade e do amor, mas preferem esperar pelas trevas da dor e da morte.


(.Humberto de Campos)