Lázaro Redivivo

Capítulo XXII

O sábio juiz



— Salomão, o sábio rei dos israelitas, desde a célebre decisão, (1Rs 3:16) entre as duas mães que disputavam o mesmo filho, no princípio de seu reinado, tornara-se famoso juiz, além de soberano generoso e magnificente. Reverenciavam-no todas as tribos judaicas, abençoando-lhe o nome e respeitando-lhe o poder. Em razão disso, além de suas pesadas atribuições administrativas, era obrigado a atender a mil e uma questões dos súditos, que se aproveitavam de sua sabedoria, nos casos da vida particular.

Assim começou a história o simpático ancião do Plano superior, que nos visitava, a propósito de certas preocupações que nos prendiam à Terra. Finda a longa pausa, durante a qual conservou sobre os nossos o seu olhar muito lúcido, o velhinho prosseguiu:

— Foi assim que apareceu no reino uma questão estranha. A família de Natan, filho de Belazel, morto desde muito tempo, recebeu alguns papiros, onde se liam mensagens amigas, assinadas por ele, por intermédio de uma pitonisa de Jope, especializada em relações com os Espíritos dos mortos. Natan, que não mais pertencia ao mundo dos homens de carne, tinha o cuidado de não interferir em qualquer assunto propriamente humano, para não invadir a esfera de ação dos velhos amigos que deviam caminhar por si, aprendendo com a própria experiência. Comentava as realidades espirituais, referindo-se, de maneira velada, às situações e coisas do novo país a que fora chamado a viver. Entretanto, antigos companheiros seus manifestaram-se absolutamente hostis. Impossível que Natan, patriarca respeitável e amante da lei, voltasse do outro mundo escrevendo aos afeiçoados. Iniciaram-se discussões em tom discreto. Negociantes de cabras e carneiros transportaram o assunto de Jerusalém para a Arábia e da Arábia para a Fenícia.

Em vista das grandes dúvidas surgidas, encaminhou-se o problema ao esclarecido critério de Salomão. Os descendentes de Natan exigiam o pronunciamento da Justiça, em sentença insofismável.

O rei examinou o caso e esclareceu que precisava tempo para decidir. Sentia-se espantado. Resolvera já muitos processos de herança e partilha, onde os mortos compareciam como ausentes em definitivo e sem representantes legais, mas nunca lhe surgira um problema em cuja solução devesse considerar direitos e obrigações daqueles que haviam atravessado o horizonte sombrio da morte. Por isso, estudou e meditou dias e noites, ponderando sobre a reclamação havida. Poderia, de fato, emitir um laudo declamatório? Como decidir uma pendência em que havia partes interessadas no outro mundo? Seria razoável considerar apenas o direito dos súditos vivos? E os súditos que haviam partido para a morte, confiantes na Justiça do reino? O morto, certamente, havia dado o conteúdo dos papiros à pitonisa de Jope, sem qualquer constrangimento, e por sua espontânea vontade. Seria crime obsequiar alguém? Como impedir no mundo o sagrado direito de dar? Extinguir o intercâmbio da amizade entre as almas seria o mesmo que interromper o curso das bênçãos divinas. Jeová, o Magnânimo Senhor, não dava ao seu povo misericórdia e saúde, fortaleza e esperança todos os dias?

Muitos áulicos do palácio exigiram-lhe perseguições à pitonisa, porque essa cometera a falta de receber as dádivas de um amigo morto. Outros vieram rogar para que o rei poderoso e sábio, ao invés de uma declaração, emitisse sentença condenatória. As supostas mensagens, segundo a lei do Povo Escolhido, não passariam de miserável embuste.

Salomão, porém, sabia que, apesar da severa proibição do Deuteronômio, (Dt 18:9) que vedava o comércio com os mortos, Saul, antecessor de David, seu pai, fora consultar uma pitonisa em Êndor, (1Sm 28:1) antes da batalha de Gelboé, junto da qual recebera preciosas verdades do Espírito de Samuel. Em são juízo, portanto, a ninguém podia condenar.

Corria o tempo sobre o assunto, quando o povo, sabendo que a Justiça abriria tribunais para ouvir os mortos em suas decisões, começou a pedir audiências ao rei, suplicando-lhe a interferência em seus casos privados. A viúva de Caleb, filho de Jefté, rogava que o esposo falecido viesse renovar o testamento, expulsando os sobrinhos da velha propriedade. Eliezer, filho de Josué, o coxo, queria que o Espírito de seu pai repartisse de novo os camelos de que o seu irmão Natanael se havia apropriado indebitamente. Jeroboão, velho patriarca da tribo de Issacar, pediu que o grande juiz ouvisse sua mulher já falecida, relativamente aos legados que pretendia deixar para os seus oito filhos. Efraim, filho de Matatias, o mercador de jumentos, desejava que a alma de seu avô regressasse do Além para esclarecer a situação do seu genitor deserdado pela cupidez dos parentes. E até Zarifa, mulher de Jeremias, filho de Heber, veio suplicar uma informação do outro mundo, sobre quem seria o pai de Ruth, a pequenina enjeitada à sua porta.

Salomão, por mais de trinta dias, concedeu audiências incessantes e recebeu as mais estranhas rogativas, acabando por compreender que a Justiça Humana era organizada para pessoas humanas e que, de modo algum, deveria invadir os extensos e misteriosos domínios da Morte, sob pena de complicar todos os assuntos da vida, incentivando angústias e tormentos da Humanidade.

Em razão disso, com grande surpresa para os súditos irrequietos, devolveu os papiros aos descendentes de Natan, esclarecendo que a Justiça era um templo sagrado e não podia constituir-se em órgão de consultas sem interesse fundamental para a vida dos homens.

Calara-se o ancião, mas nós outros, que lhe escutáramos a história, atentos à sua palavra cheia de luz, indagamos, involuntariamente:

— Afinal, que disse o rei aos sábios de seu reino? No fundo, qual era, de fato, a sua opinião?

O velhinho sorriu com inteligência e acentuou:

— Salomão esclareceu aos áulicos e aduladores de seu palácio que respeitava Jeová e fazia o culto da reta consciência; que a sua sabedoria não dava para descortinar o mistério do país dos mortos; que se algum Espírito voltasse do túmulo a comunicar-se com as pessoas terrestres, ninguém deveria preocupar-se com o seu nome e sim com a substância de suas palavras, e que se o comunicante ensinava o bem devia ser considerado emissário dos Céus e ouvido com atenção, e se transmitia o mal deveria ser interpretado como mensageiro do Inferno e esquecido para sempre.


(.Humberto de Campos)