Lázaro Redivivo

Capítulo XLVI

Desajustado



Conheço-lhe os males, meu amigo, e reconheço a oportunidade de suas considerações.

Após o surgimento da sublime luz da crença em sua alma, parece-lhe a paz um mito distante. “Meu coração ganhou fé — assevera você —, mas perdeu a tranquilidade.” A palestra inteligente de preciosos amigos não acende em seu espírito o interesse de outro tempo. Se falam de economia, lembra você o serviço imenso de Jesus no setor da repartição dos bens terrestres; se comentam a política, você recorda o programa do Cristo nas atividades do amor ao próximo. Quando a Ciência, a Arte e a Literatura não sintonizam com as suas aspirações presentes, doloroso tédio invade-lhe o coração. Tolera as conversações sem movimentá-las e é com esforço que, muita vez, acompanha os comentários da vida e do mundo no círculo dos parentes, aos quais deve o tesouro dos júbilos familiares.

A espiritualidade superior é, agora, sua preocupação dominante. Em muitas ocasiões, assemelha-se ao homem de um velho conto, de minha meninice, perdido em gruta escura e selvagem, procurando acesso ao oxigênio leve do campo.

Antigamente, o mundo materializado fascinava-lhe os olhos. Era preciso correr na conquista de conhecimentos e vantagens, instalar a personalidade na galeria da evidência social e política e adaptar-se às dominações do momento, a fim de atender aos imperativos da existência terrestre. Mas, depois… Uma luz forte colheu-lhe a mente na estrada. Deslumbrado a princípio, você acreditou que era mais uma lâmpada festiva, no castelo das sensações; no entanto, aos poucos, reconheceu que não se tratava de uma claridade como as outras. Porque você tratou sempre os problemas da vida alimentando o firme desejo de acertar, encontrou a luz elevados recursos em sua sinceridade, e penetrou seu país interior, devagarinho, iluminando-lhe a consciência. Desde então, nasceu novo entendimento em sua alma. Transformaram-se as paisagens internas e externas. Muitos quadros que lhe pareciam grandiosos, tornaram-se insignificantes. Situações invejáveis, que noutra época seduziam seu coração, constituem hoje zonas escuras de que você foge naturalmente amedrontado. Vantagens converteram-se em perigos, conquistas em responsabilidades, e muitos ganhos que se lhe figuravam indispensáveis na tabela de aquisições do mundo representam agora para você derrotas e perdas, que é necessário evitar em benefício de sua própria felicidade.

Desajustado! Desajustado!

Seu pensamento repete essa definição todos os dias e seus velhos afeiçoados renovam a mesma observação. Debalde, procuram nos seus gestos, atitudes e palavras o homem que você já foi. Alguns afirmam que a velhice prematura se assenhoreou de seus dias; exclamam outros que a experiência religiosa lhe embotou o raciocínio. Você mesmo, em momentos de prova mais áspera, se esforça inutilmente por tornar ao passado. Todavia, não é mais possível o caminho de regresso. A verdade domina a fantasia e você é compelido a permanecer na mesma posição de deslocamento espiritual.

Desajustado! Desajustado!


Desde alguns séculos, existe no mundo a chamada legião dos homens “marginais”. São eles judeus alemães, nas sociedades germânicas; anglo-indianos, em círculos hindus; mestiços, na África Portuguesa e na 1lha de Java. Sentem-se deslocados, ansiosos, insatisfeitos… Chamam-lhes “sem pátria”, viajando a caminho de um porto que jamais encontrarão. Exasperam-se e sofrem, sem remédio que lhes cure a chaga íntima. Um deles, Stefan Zweig, sensibilidade extraordinária a serviço da inteligência, enfadado de fichários e passaportes, angustiado pela sua condição de peregrino internacional, preferiu o suicídio, menosprezando os dons de Deus:

Seu sofrimento, porém, meu amigo, era pior. Seu desajustamento, mais grave. Não havia pátrias terrenas que lhe pudessem satisfazer o ideal, porque a fé conferira ao seu coração a cidadania do mundo. Sofreria pelo brasileiro, como pelo javanês; meditaria na dor comum, onde essa dor aparecesse. Desprendera-se dos laços humanos, embora permanecesse dentro deles, segundo a expressão física. Era um prisioneiro libertado, conservando os grilhões por amor ao dever. O sangue que lhe corria nas veias modificara-se. Pertencia ao organismo da Humanidade. É por isso que a sua angústia interior ultrapassara a aflição dos que disputam uma pátria terrestre, confinada por pontes, árvores, rios ou cercas de arame. Ansiava o seu coração por uma esfera mais alta, onde pudesse pulsar ao ritmo da compreensão universal.

Para você, também, não há outro remédio na Terra senão prosseguir avante, procurando manter no seu espírito a bênção da divina serenidade. E quando o desalento assediar, de longe, o seu coração, lembre-se da súplica de Jesus, em favor dos continuadores amados. No capítulo dezessete, do Evangelho de João, o Mestre exclama: — “Não são do mundo, como eu do mundo não sou.” (Jo 17:16) Não ignorava que a sua lição deslocaria a mente dos aprendizes, reajustaria os valores da existência aos olhos de cada discípulo, perante a revelação da eternidade e lhes traria profunda renovação interior. Compreendia Jesus que esse trabalho é básico e essencial na edificação do Reino de Deus, e reconhecendo que necessitava esclarecer os aprendizes, de maneira inequívoca, Ele mesmo tomou a posição da margem. Nem no Céu, onde não poderia descansar ainda, nem na Terra, onde não conseguiria identificar-se com a maioria dos mortais e, sim, na cruz, na situação de Marginal Divino, convidando as criaturas ao monte da Ressurreição.

É evidente, pois, que o Cristo previu esse desajustamento temporário e espera que o cooperador fiel de sua obra tome a cruz que lhe pertença e lhe siga os passos, a caminho da Vida Imortal.


(.Humberto de Campos)