Luz Acima

Capítulo XVIII

O devoto incompreensível



Ante o céu claro-escuro do crepúsculo, o devoto extasiado rogava ao Altíssimo:

— Senhor, abri-me os celeiros da prosperidade espiritual! Preciso crescer mentalmente, para servir-vos. Sinto, Pai, que minhas forças jazem adormecidas… Que fazer por elevar-me? Disponho de elementos materiais suficientes com que prover às exigências da vida. No entanto, no fundo, reconheço-me desalentado e abatido… Quero vibrar em vosso infinito amor, dedicar-me à procura infatigável de vossos dons de sabedoria; contudo, intimamente, demoro-me na indecisão do viajante que se vê desamparado sob a neblina espessa… Ó Magnânimo Pai, não me deixeis dormitar à margem do caminho… Não sou ignorante das coisas sagradas. Sei que é imprescindível trabalhar na iluminação de nós mesmos para que o mundo seja finalmente redimido… Estou informado de que a vossa vontade impera sobre a nossa, mas aprendi, desde muito tempo, que a nossa colaboração individual é indispensável na execução dos programas salvadores. Todavia, como avançar se me faltam recursos ao espírito? Ajudai-me na superação de mim mesmo; auxiliai-me a rasgar a venda que me impede a contemplação de vossa gloriosa luz, impressa em todos os quadros da vida. Não me desampareis. Sou vosso. Pertenço-vos. Dilatai-me o entendimento, dai-me ocasião de revelar o aproveitamento das bênçãos que já me concedestes, facilitai-me a demonstração das dádivas com que me aquinhoastes. Aguardo-vos a manifestação paternal, descerrai para mim as fontes da graça, a fim de que minha compreensão se expanda e cresça. Sejam executados os vossos desígnios!…

Recordando a saudação do anjo, na formosa narrativa do Evangelho de Lucas, repetiu o pensamento de Maria: (Lc 1:38)

— Cumpra-se no escravo a vontade do Senhor!…

Depois da prece, levou o lenço aos olhos e enxugou as lágrimas que a contrição lhe trouxera.

A noite começava a enfileirar constelações no campo celeste.

Retomou, então, o caminho do lar, reconfortado. Orara com fervor e aguardava a bênção divina para o próprio engrandecimento.

Antes, porém, de transpor o jardim doméstico, eis que a esposa, aflita, vem ao encontro dele.

Um dos filhos, molestado por estranha cólica e atendido pelo médico, submeter-se-ia a delicada intervenção cirúrgica, em breves horas.

Atordoado, como se alguém lhe houvesse desfechado tremendo golpe no crânio, não voltara ainda a si, quando um servidor de confiança, palidíssimo, se lhe postou à frente, notificando que o maior depósito de algodão de sua propriedade fora inexplicavelmente incendiado. Não puderam situar a procedência do fogo que lavrara, implacável, enquanto encontrou combustível.

O devoto fez força para não cair. O sangue concentrava-se-lhe no cérebro, aos borbotões. Estava muito distante do próprio domínio. A mente vagueante parecia incapaz de exercer qualquer direção construtiva sobre o pequeno mundo fisiológico…

Contudo, não movera os pés. Nesse comenos chega, suarenta, velha tia, excessivamente nervosa, comunicando-lhe que o pai agonizava em cidade próxima…

O devoto esqueceu que a Bondade Divina podia curar-lhe o filho, conferir-lhe novo algodoal mais rico e mais extenso e proporcionar merecido repouso ao cansado genitor que, de há muito, lutava e padecia na Terra. Num minuto, aquele homem se transformou. Ele, que rogara do Céu recursos para iluminar-se, para dilatar-se mentalmente, para crescer em conhecimento e virtude e engrandecer-se para a vida imperecível, ao invés de receber os testes divinos, com fortaleza e serenidade, a fim de melhor e mais plenamente aproveitar a oportunidade de elevação, gritou, acabrunhado:

— Onde está Deus que me não ouve as orações? Sou um desventurado, o mais infeliz dos homens!…

E caiu no leito, vencido, quando a luta apenas começava, fugindo às possibilidades de crescimento espiritual para cair nos sedativos dum médico.


Registrando-lhe a experiência, de perto, na condição de amigo desencarnado, reconheci que quase todos os crentes, ao suplicarem a proteção do Céu, não pretendem, no fundo, respirar o clima superior da Verdade e da Luz. O que pleiteiam, sem dúvida, é a posição de orquídeas na estufa celeste.


(.Humberto de Campos)