Luz Acima

Capítulo XLI

Na interpretação rigorista



Juvenal Silva, após longa incursão nos domínios espiritualistas, concluiu que as aflições humanas representavam fatalidade, que a dor constituía inevitável espinho e que não seria razoável imiscuir-se nas questões de auxílio. Não afirmavam os filósofos e instrutores que o indivíduo recebe sempre de acordo com os próprios méritos? Se não era possível modificar a estrutura da semente, por que a audácia de transformar as situações? Examinando todas as teses doutrinárias “ao pé da letra”, rematava, convicto: — “Para que ajudar? se o aleijado respira sem movimento e se o pobre sofre miséria e infortúnio, certo, obedecem a desígnios que não nos compete perturbar.”

Às vezes, em companhia de amigos íntimos, pilheriava:

— Se eu der vinte cruzeiros ao malfeitor fantasiado de mendigo, provavelmente comprará recursos com que possa atacar o primeiro viandante desprevenido que lhe apareça.

Em algumas ocasiões, recorria ao caso da víbora enregelada que, socorrida pelas mãos de caridoso caminheiro, readquirira o equilíbrio, inoculando-lhe veneno letal.

Retraído nas interpretações que lhe agradavam, passou a vida, paradoxalmente. Aceitava a Revelação Divina, mas negava o espírito de sacrifício. Se algum companheiro ponderava a inconveniência do rigorismo, à frente dos textos sagrados, valia-se das passagens que, de algum modo, lhe garantiam os pontos de vista e observava:

— O próprio Cristo não asseverou que nem um fio de cabelo da cabeça, cairá sem que o Pai o queira? Se nossas dificuldades estão dependendo da vontade de Deus, como entender as interferências da criatura?

Cristalizando-se-lhe a estranha atitude mental, tratou de ensimesmar-se na Terra. Depois de trancafiar-se na torre falsa do individualismo excessivo, cercou-se de cofres pesados e flores leves num palacete que resumia os mais avançados serviços de conforto moderno. Sentindo-se amplamente desobrigado de auxiliar a quem quer que fosse, amealhou facilmente o que pôde, preservando-se para o futuro.

No campo teórico, era notável discursador, mas, no terreno da ação, Juvenal entregara-se, inerme, às sugestões que o egoísmo lhe oferecia. Se irmãos de luta lhe batiam às portas, implorando socorro para desamparados, informava, semicolérico:

— Não dou. Cada qual recebe o que merece. Onde guardarão vocês a cabeça? Isto é invasão de seara alheia. A beneficência é dever do Estado. Não posso interferir com autoridades.

Quando alguém lhe dizia que a dor não esperava por decretos e que a morte não costumava ler portarias governamentais, explodia furioso:

— Cada espírito se cerca, daquilo que merece ou que pede.

E lá vinha Juvenal com vastíssima série de referências às leis regenerativas. Para firmar-se, estribava em estudos de toda sorte. Recorria a doutrinas orientais e ocidentais. Citava inumeráveis exemplos da própria vida. E ninguém lhe deslocava o parecer.

De tempos a tempos, surgiam senhoras caritativas, reclamando contribuição para a benemerência social. Ele, contudo, reagia forte:

— Perdoem-me — exclamava, irritadiço —, mas creio guardarem escassos deveres em casa. De outro modo, não perturbariam o serviço divino, porquanto esta caridade pedinchona não se harmoniza com a justiça. Se vocês soltarem todos os malfeitores presos à grade do sofrimento adequado, que seria do mundo em que vivemos? Saibam que não as acompanho. Sou adversário da desordem.

Invariavelmente, retiravam-se as protetoras dos necessitadas, em meio à tristeza e ao desapontamento.

Em semelhante rumo, prosseguiu Juvenal até à desencarnação, finda a qual, entrou em aflitivo isolamento. Vivia a esmo, como que envolvido numa coluna de neblina espessa. Lamentava-se, chorava, pedia auxílio, mas em vão. Pressentia a passagem de muita gente em torno dele; mas ninguém lhe prestava atenção.

Apareceu, todavia, um momento em que o desventurado foi atendido por um mensageiro da assistência divina.

Valendo-se do ensejo, lastimou-se, suplicou, exigiu.

Afinal — declarava em desespero —, não fora um criminoso, um perverso…

O enviado, de olhar translúcido e coruscante, informou calmo:

— Filho, cada qual recolhe o que planta. A árvore do egoísmo não produz flores de cordialidade.

Juvenal desfez-se em explicações. Acusado pela consciência, pretendia argumentar contra si próprio. Se não praticara maior soma de bens é que supunha conveniente não dever contrariar os dispositivos das provações remissoras.

— Sim — acrescentou o emissário, sereno —, de acordo com os mesmos princípios, compreende-se-lhe, agora, a solidão…

— Quer dizer — exclamou Silva, desalentado — que deveremos invadir os celestes desígnios?

O mensageiro, porém, esclareceu sem perturbar-se:

— Se a dor humana é lavoura de renovação para quem sofre e resgata, é também sementeira sublime para todos aqueles que desejam plantar o bem imperecível. De outra forma, Jesus não precisaria imolar-se na cruz por nós todos.

O interlocutor escutava, admirado. Antes, contudo, de sua argumentação, o venerável socorrista indagou, direto:

— Juvenal, se você, quando via alguém aproximar-se de sua porta ou de sua personalidade, conhecia de tão perto a questão do merecimento, nunca pensou que a sabedoria e o programa de Deus atuavam em cada acontecimento, através de ligações invisíveis, porque o sofredor ou o necessitado já se faziam dignos de seu amparo e de sua proteção?

Silva que, não obstante egoísta, recorria ao raciocínio e à lógica, perdeu o gosto de responder, mergulhou a cabeça entre as mãos e começou a meditar.


(.Humberto de Campos)