Marcas do Caminho

Capítulo XIX

Recordações em Leopoldina



A sombra amiga destes montes calmos,

Meu pobre coração de anacoreta,

Amortalhado em fina roupa preta,

Desceu à escuridão dos sete palmos.


Viera o fim dos sonhos intranquilos,

Entre grandes e estranhos pesadelos,

Satisfazendo aos trágicos apelos

Da guerra inexorável dos bacilos.


A morte terminara o horrendo cerco,

Sufocando as moléculas madrastas…

Eram trilhões de células nefastas

Voltando à paz do túmulo de esterco.


Indiferente aos últimos perigos,

Meu corpo recebeu o último beijo

E comecei o lúgubre cortejo,

Sustentado nos braços dos amigos.


Em triste solilóquio no trajeto,

Espantado, fitando as mãos de cera,

Rememorava o tempo que perdera,

Desde as primárias convulsões do feto.


Porque morrer amando e haver descrido

Do Eterno Sol do qual vivera em fuga?

Como é sombrio o pranto que se enxuga

Pelo infinito horror de haver nascido!?…


Depois, vi-me no campo onde a dor medra,

Ao contato do chão frio e profundo,

Chegara para mim o fim do mundo

Entre as cruzes e os dísticos de pedra.


Terrível comoção pintou-me a cara

Na escabrosa cidade dos pés juntos,

Tomara-se defunta entre os defuntos

Toda a ciência de que me orgulhara.


Trêmulo e só, no leito subterrâneo,

Sentia, frente à lógica dos fatos,

O pavor dos morcegos e dos ratos

Dominar os abismos de meu crânio.


Meus ideais mais puros, meus lamentos

E a minha vocação para a desgraça

Reduziam-se à mísera carcassa,

Para o açougue dos vermes famulentos.


Em seguida, o abandono, enfim, do plasma,

Os micróbios gritando independência,

E tomei nova forma de existência

Sob a fisiologia do fantasma.


Fugindo então ao gelo, à treva e à ruína

Do caos sinistro em que vivera imerso,

Revelou-se-me a glória do Universo

Santificado pela Luz Divina!


Oh! que ninguém perturbe meus destroços,

Nem arranque meu corpo à última fuma,

É Leopoldina a generosa urna

Que, acolhedora, me resguarda os ossos.


Beije minhalma alegre o pó da rua

Deste painel bucólico e risonho,

Onde aprendi, no derradeiro sonho,

Que o mistério da vida continua…


Bendita seja a terra augusta e forte,

Onde, através das vascas da agonia,

Encontrei a mim mesmo, em novo dia,

Pelas revelações de luz da morte.




(C. E. Amor ao Próximo — Leopoldina, MG, 17.06.1945)

Essa mensagem foi publicada originalmente em 1969 pela FEB e é a 81ª lição do livro “”