Na Hora do Testemunho

Na Hora do Testemunho



A crista do galo marca,

ponteiro do desafio,

a hora amarga da Arca

— profanação de gentio.


Sangue e fogo no esplendor

da aurora de um novo dia.

Pilatos lava o favor

nas águas da covardia.


Canta o galo, canta o galo,

terceira vez ele canta.

Pedro sente trespassá-lo

três golpes de espada santa.


Pesqueiros da Galileia,

num mar de cinza e de rosa,

lembram no céu da Judéia

a pesca miraculosa.


A hora da Loba — Roma

que devorou os rabinos.

Ninguém a vence nem doma

no entrançar dos destinos.


Na hora do testemunho

rompe-se o véu do sacrário.

Tremem as mãos sobre o punho

da espada do legionário.


Na amargura e na mudez

da noite das agonias,

Pedro chora a sua vez

e ouvem-se litanias.


A Loba dorme saciada

digerindo os seus rabinos.

Sobre a túnica sagrada

completam-se os desatinos:


— O esquadrão legionário

joga dados no Calvário.







Este volume é dedicado a todos os que souberem ser dignos na hora do testemunho

— demonstrando a sua firmeza de convicção,

— rejeitando o crime da profanação,

— não se omitindo em face da traição,

— exigindo o respeito à Codificação,

— resistindo ao conluio da adulteração.

Aos que se entregaram às sugestões inferiores, à vaidade pessoal e aos interesses institucionais, pensando servis à Causa ao agradar aos homens — a nossa piedade e a nossa prece.

Aos trânsfugas que desertaram e hoje clamam por esquecimento, a nossa advertência quanto aos perigos do futuro.


S. Paulo, 1978.




Introdução I




A sua veemência e sinceridade, na defesa da Obra de Allan Kardec, me fez pensar muito no cuidado que todos nós, os espíritas, devemos ter na preservação dos textos referidos, sob pena de criarmos dificuldades insuperáveis para nós mesmos, agora e no futuro. Meditando nisso, sou eu quem me sinto honrado em enviar-lhe estas publicações, no intuito de demonstrarmos em livro-documentário a elevação da sua defesa e o meu respeito no tocante à Codificação kardeciana, que nos cabe endereçar ao futuro tão autêntica quanto nos seja possível.

No caso de ser levado adiante o lançamento de um livro nessas diretrizes, o prezado professor poderá usar, ou apresentar no contexto do volume, qualquer trecho vu a total correspondência que lhe tenho enviado sobre o assunto, pois isso poderá clarear a atitude que tomei.






Nesta antevéspera de mais um aniversário do Livro dos Espíritos, que transcorrerá no próximo domingo, é necessário lembrarmos a importância de constante vigilância na preservação e defesa das obras fundamentais da Doutrina. E isso só pode haver se os espíritas estiverem convictos do valor e da significação espiritual e cultural dessas obras. Infelizmente não foi o que se viu no recente episódio de adulteração de O Evangelho Segundo o Espiritismo, com a venda total da edição ao público desprevenido e a sustentação pública da adulteração pela própria Federação Espírita do Estado. O que então se viu foi uma demonstração alarmante de falta de convicção doutrinária de parte dos responsáveis pela tradicional instituição.

Essa falta de convicção e de zelo pela Doutrina é o resultado de muitos anos de infiltração de princípios estranhos nos próprios cursos de Espiritismo dados pela Federação e por numerosas entidades a ela filiadas. O ensino deturpado só poderia levar o meio espírita à desfiguração dos textos de Kardec. No plano cultural, a adulteração é um crime que só pode ser desculpado pela ignorância. No Plano espiritual é a profanação da verdade revelada. E em ambos os planos, mas particularmente no moral, a adulteração é um ato de traição. Mas todas essas qualificações se reduzem apenas a uma — a ignorância — quando o procedimento revela, em sua própria forma e nas tentativas de sua justificação, o mais lamentável desconhecimento do próprio sentido dos trechos adulterados.

Chico Xavier, que tentaram envolver nesse processo lamentável, tomou posição clara e definida em defesa da inviolabilidade dos textos de Kardec. Mas como persistiram os realizadores da façanha em aponta-lo como envolvido, o famoso e querido médium solicitou a publicação de um livro-documentário, a fim de que não se possa, no presente e no futuro, continuar a citá-lo como implicado na questão.

Houve também os que reconheceram o erro cometido e se opuseram ao prosseguimento do plano adulterador, que pretendia desfigurar toda a Codificação do Espiritismo, segundo documentos oficialmente divulgados. A atitude de Chico Xavier e desses poucos (pouquíssimos) que tiveram a coragem de penitenciar-se, contrasta com a falta de convicção da maioria dos chamados lideres espíritas que se omitiram e calaram diante do aviltamento de sua própria doutrina.

O sintoma evidente de insensibilidade decepcionou todos os espíritas sinceros. E mais grave se torna quando sabemos que a Doutrina Espírita não foi elaborada por Kardec, mas pelos Espíritos Superiores, sob a orientação constante do Espírito da Verdade (nome derivado dos textos evangélicos) e sob a égide do próprio Cristo, segundo a sua promessa registrada pelos evangelistas, particularmente no Evangelho de João.

O remédio contra esse estado mórbido depende de medidas que não foram tomadas: o afastamento dos responsáveis pela adulteração dos cargos diretivos da instituição; a reformulação imediata dos cursos de doutrina e de médiuns, com exclusão dos livros, folhetos e apostilas adulterantes; o retorno imediato aos livros básicos de Kardec como únicas fontes legítimas de ensino espírita; o reconhecimento da posição subsidiária das obras de André Luiz, hoje superpostas às de Kardec; a condenação e exclusão total das obras de mistificação ou de mistura indébita de doutrinas estranhas. Enquanto isso não for feito, as raízes amargas da adulteração continuarão a fermentar no meio espírita e a alimentar a vaidade de pretensos instrutores e mestres. Temos de escolher entre ser espíritas ou ser mistificadores da doutrina.




Introdução II




Este é um livro diferente na bibliografia espírita. O testemunho de uma hora amarga, precisamente da hora em que os espíritas brasileiros, muito confiantes na solidez do seu movimento doutrinário, foram chamados a dar testemunho de sua convicção espírita. O desafio não partiu de nenhuma pressão externa, mas do próprio meio espírita. Acostumados a encarar o Espiritismo, no seu aspecto religioso, como o Cristianismo Redivivo, renascido em espírito e verdade, depurado das infiltrações pagãs e judaicas, viram-se de súbito ameaçados de deformações internas, promovidas nos próprios textos fundamentais da Doutrina pela Federação Espírita do Estado de São Paulo, até então considerada coma a principal guardiã da pureza doutrinaria em todo a Brasil. E o que mais assustava era que os elementos incumbidos da renovação dos textos diziam-se autorizados pelo médium Francisco Candido Xavier, exemplo de fidelidade e dedicação à Doutrina.


O desafio colhera de surpresa a todas, com o lançamento abrupto de uma edição adulterada de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. A Federação autorizara o seu Departamento do Livro a realizar a façanha. E o departamento tomara as devidas cautelas realizando seus trabalhas entre quatro paredes. Essa técnica anti-espírita desnorteara a todos. O livro surgia de um golpe, como um fato consumado, numa edição de trinta mil exemplares, em parte já vendida antecipadamente a vários Centros e Grupos Espíritas. E trazia duas explicações justificadoras: uma do tradutor, Paulo Alves de Godoy, e outra do Departamento do Livro, que expunha um plano de completa e total revisão de toda a Codificação Doutrinária de Allan Kardec. Uma novidade a mais, entre as muitas novidades desta hora de inquietação mundial, seguindo o exemplo das deformações católicas e protestantes das novas edições da Bíblia e dos Evangelhos.


Mas alguns espíritas zelosos não aceitaram com bons olhos a novidade. A edição adulterada saíra em Julho de 1974. O Grupo Espírita Cairbar Schutel, de Vila Clementino, denunciou o fato e lançou um movimento de protesto, espalhando por todo o país cinco mil boletins e quarenta mil exemplares do tabloide MENSAGEM, com análise rigorosa e condenação enérgica das modificações do texto. Outros grupos e instituições doutrinárias aderiram a esse movimento de reação e a polêmica extravasou na imprensa e no rádio. A FEESP [Federação Espírita do Estado de São Paulo] tentou sustentar a sua posição, o Grupo Espírita Emmanuel, de São Bernardo do Campo, colocou-se ao seu lado e afastou abruptamente Herculano Pires da direção do programa “No Limiar do Amanhã”, da Rádio Mulher. O grupo da Federação ameaçou também tirar-lhe a crônica espírita que há trinta anos mantém no “Diário de São Paulo”, mas nada conseguiu. A polêmica alastrou-se pelo país, mas apenas alguns líderes espíritas se manifestaram. As Federações dos Estados enviaram protestos à FEESP, mas não foram além disso. A Confederação Espírita Argentina também protestou. Enquanto isso, a FEESP vendia a edição adulterada. Mais tarde, a assembleia geral da União das Sociedades Espíritas, reunida na própria sede da FEESP, condenou por unanimidade a adulteração e os adulteradores foram vencidos, mas nem todos convencidos. A Liga Espírita do Estado tomou posição firme contra a adulteração. Jorge Rizzini, que a apoiava, foi logo mais afastado da direção do programa “Um passo no Além”, que mantinha na rádio das Casas André Luiz. Fez-se em todo o país o que Herculano chamou de “O Silêncio dos Rabinos, ao tilintar das moedas de Judas.”


O médium Francisco Candido Xavier, apesar de sua costumeira isenção em polêmicas doutrinárias, acabou manifestando-se contra a adulteração e tomou posição firme e clara na defesa dos textos de Kardec. A maioria dos chamados líderes espíritas não se manifestou. A hora do testemunho provara mal, revelando a falta de convicção da maioria absoluta, e portanto esmagadora, do chamado movimento espírita brasileiro. Mas os resultados foram se manifestando mais tarde, com um crescente interesse do meio espírita pelas obras de Kardec em edições insuspeitas.



A investigação das causas da adulteração revelou a fragilidade do movimento espírita brasileiro resultante de dois fatores principais: a ignorância e o beatismo. A maioria dos espíritas não estuda a sua doutrina e se entrega a um beatismo igrejeiro. Os cursos doutrinários ministrados pela Federação e outras instituições são orientados por obras escritas por pessoas que pretendem superar Kardec e misturam ideias pessoais de elementos de variadas correntes espiritualistas. O beatismo, elemento residual de nossa formação religiosa nacional, não é combatido, mas estimulado por esses cursos sincréticos. A incompreensão da natureza especificamente científica e cultural do Espiritismo é alarmante. O religiosismo popular, o interesse pelo sobrenatural, o apelo à emoção ao invés do estímulo à razão nas palestras e pregações asfixiam os elementos culturais no meio espírita. A pretensão a mestres e orientadores estufa a vaidade daqueles que pretendem assumir posições de liderança. A vaidade dos líderes afasta-os do estudo sério e humilde da Doutrina.


Verificou-se que a adulteração resultou principalmente da falta de compreensão do conceito do bem e do mal no Espiritismo, onde esses conceitos são definidos de maneira clara e precisa. A adulteração, propondo-se a “atualizar a linguagem doutrinária”, girou em torno de expressões evangélicas e kardecianas não compreendidas, e que foram substituídas por expressões ambíguas. Como o Espiritismo considera o homem essencialmente bom, os reformadores ingênuos resolveram suprimir dos textos qualquer expressão considerada “maldosa”. Por exemplo: a expressão evangélica “Amai aos vossos inimigos”, carregada de grande poder expressivo e grande força de comunicação, foi substituída por “Amai aos que não vos amam”, que é tola e vazia. A expressão “Espíritos maus” foi substituída pela expressão “Espíritos menos bons”, que além de sua flagrante irrealidade anula o conceito de “mau”, com chocante desatualização e flagrante contradição a princípios doutrinários básicos. Além dessas tolices, que comprometem o rigor e o equilíbrio do texto kardeciano, tornando-o alheio à realidade existencial evidente (mormente nesta hora de atrocidades sem limites que estamos vivendo) houve a aplicação ao texto de termos científicos inadequados.


Os adulteradores mostraram-se ignorantes do princípio doutrinário da bondade inata do homem como potência (bondade a se desenvolver no processo evolutivo, potência do bem a se transformar em ato através das experiências.)


A adulteração foi uma triste demonstração de ignorância e de beatismo religioso tipicamente anticultural. Esse primarismo entretanto, abria um precedente perigoso e tinha de ser repelido por todos os espíritos convictos. Nesse passo iríamos à desfiguração total do Espiritismo, repetindo todo o processo histórico de deformação do Cristianismo, transformado, por ignorância e conveniências imediatistas, num tipo de paganismo idólatra e obscurantista. A importância deste livro está na reação cultural a essas agressões primárias à doutrina, com a reafirmação da virilidade cultural do Espiritismo, da limpidez racionai dos seus textos, da sua posição de balizador do futuro espiritual do homem, posição essa perfeitamente confirmada pelo avanço científico e cultural do nosso tempo, no esquema preciso apresentado pela Doutrina há mais de um século. Por outro lado, este livro mostra a necessidade imperiosa de se recolocar o problema espírita em seus verdadeiros termos, sob pena de agirmos no campo doutrinário como simples macaco em loja de louças.




Introdução III




Ser fiel à Verdade, saber respeitá-la e fazer-se humilde perante ela são as três pedras de tropeço do homem na Terra. Podemos conhecer a Verdade e proclamá-la, procurar vivê-la e comunicá-la aos outros, mas ter a coragem de sustentá-la nos momentos de crise é quase um privilégio no mundo das vaidades e mentiras terrenas. Por isso os grandes Mestres têm sempre de provar a taça de fel do abandono, como Jesus no Horto, enfrentando sozinho a vigília da traição, ou no Calvário, suportando no abandono a crucificação.


Quase dois milênios passados, um dos mais lúcidos discípulos do Mestre, no dizer de Emmanuel, suportaria em Paris a solidão dos que amam a Verdade e a ela se consagram. A vida de Allan Kardec é o espetáculo da solidão do homem que toca a fímbria da Verdade e tem de suportar sozinho as consequências da sua audácia. Quando a estudamos espanta-nos a terrível solidão em que viveu e lutou, compreendendo só ele, inteiramente só, a grandeza da obra que realizava. Teve dezenas de companheiros, centenas de colaboradores, milhares de adeptos. Mas só ele compreendia a Doutrina que anunciava ao mundo.


À beira da sua tumba, no discurso de exaltação que lhe fazia, , discípulo dos mais ardorosos, acusou-o de ter feito “obra um tanto pessoal”, revelando não haver compreendido o seu sacrifício e a significação da sua obra. Após a sua morte, os que deviam dar continuidade ao seu trabalho se entregaram a disputas bizantinas em torno de questões acessórias. E logo mais surgiram os críticos dos seus ensinos, procurando adaptá-los às conveniências circunstanciais.


Em 1925, quando se reuniu em Paris o Congresso Espiritualista Internacional, o próprio Kardec, através de comunicações mediúnicas, teve de forçar , já velho e cego, a sair de Tours, na província, para defender o Espiritismo dos enxertos que lhe pretendiam fazer os representantes de várias tendências, com a aceitação ingênua de ilustres, mas desprevenidos, militantes espíritas. Todos eles professavam inabalável fidelidade à Doutrina, mas concordavam com a tese de que esta devia avançar dos limites kardecianos. Denis foi o baluarte da resistência e venceu a batalha, mas sozinho, também ele solitário.


Transcorridos 75 anos, teríamos de assistir em São Paulo, a praça forte da Verdade Espírita no Brasil e no Mundo, a uma nova e espantosa demonstração da solidão de Kardec. Adeptos da Doutrina, que através de muitos anos pareciam-lhe extremamente fiéis, repetiram o episódio evangélico das três negações de Pedro, enquanto a obra de Kardec — o Evangelho Ressuscitado em espírito e verdade — era crucificado no calvário da incompreensão humana. Antes do cantar do galo, no intermúndio frio e nevoento da madrugada, entre a noite agonizante e o dia que lutava para nascer, os discípulos que se diziam fiéis até à morte negaram e sustentaram a sua negação, ao som metálico das moedas de Judas. Se não fosse a reação de um pequeno grupo, também solitário e sem forças, pouco a pouco apoiado por outros, a obra de Kardec estaria hoje inteiramente deformada em traduções oficiais da Federação Espírita do Estado de São Paulo.


Nada menos de trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo foram postos em circulação no meio espírita brasileiro, numa pseudo-tradução em que se pretendia corrigir expressões da redação original de Kardec, sem o menor respeito pela cultura e o rigor metodológico do Mestre. Foram inúteis os apelos — em documentos pessoais, cheios de explicações minuciosas, dirigidos aos responsáveis pela instituição para que essa edição fraudulenta não fosse posta em circulação. As moedas de Judas soaram mais alto. A instituição preferiu a traição à Doutrina ao prejuízo monetário que teria de sofrer para manter-se fiel à Verdade. E mais tarde, perante o Congresso Espírita Estadual, que felizmente condenou por unanimidade a adulteração, o presidente da referida instituição vangloriou-se de haver sido esgotada a edição. E o responsável direto pela tradução, em carta dirigida à Mesa, acusou o médium Francisco Candido Xavier de corresponsável pela adulteração, colocando-o mesmo na posição de autor intelectual do processo.


Explica-se a rejeição do Congresso pela veemência da repercussão dos protestos contra a fraude, que já então ecoavam por todo o Brasil e até mesmo no Exterior. Acusaram-nos de violência, de falta de tolerância e de espírito de fraternidade, de provocar um escândalo pernicioso ao bom nome do movimento espírita, mas esqueceram-se da indignação que sempre, em todos os tempos, os crimes contra a Verdade desencadearam no mundo. Só os espíritos apáticos, indiferentes ou acomodatícios, podem conter o seu ímpeto ante crimes vandálicos dessa espécie. Dóceis criaturas lembraram que podíamos, através de entendimentos prévios e cordiais, impedir a adulteração. Não sabiam, por certo, que o crime havia sido planejado e praticado entre quatro paredes, de maneira que nós, os que o denunciamos, só pudemos fazê-lo quando ele já estava consumado, com a edição adulterada exposta à venda nas livrarias e grande parte já vendida antecipadamente. Só nos restava a denúncia pública e veemente, no cumprimento do dever de advertir o público, livrando os ingênuos do engodo planejado.


Já decorreu mais de um ano dessa ocorrência desastrosa e ainda não é possível avaliar-se o prejuízo causado no meio espírita pela circulação desses trinta mil volumes adulterados da obra básica da Religião Espírita, num país em que o Espiritismo tomou sobretudo uma feição religiosa, O silêncio absoluto da maioria da imprensa espírita e particularmente dos chamados líderes espíritas, em todo o Brasil, provou de sobejo o desconhecimento generalizado da Doutrina Espírita pelas pseudo-corifeus do Espiritismo em nossa terra. Cansamos de receber apelos de tolerância, de fraternidade, de caridade cristã, como se acaso fôssemos os promotores do escândalo, os responsáveis pela situação desastrosa criada no meio doutrinário. A falta de compreensão do valor, da significação, da importância cultural e histórica da obra de Kardec transparecia em todas essas solicitações angustiadas de candidatos à angelitude precoce.


Chegou o momento em que o médium Chico Xavier, apresentado pelos adulteradores como o Pedro arrependido, viu-se obrigado a romper o seu silêncio para declarar, alto e bom som, que não participara do conluio e estava decisivamente contra a deturpação dos textos básicos da Doutrina. Essa atitude de Chico Xavier lavou as “Estrebarias de Álgias”, mas até hoje existem criaturas angélicas que não acreditam na sua posição decisiva. Daí a iniciativa dele, dele mesmo, Chico Xavier, como se constata de maneira inegável neste volume, de solicitar-nos a publicação de um livro em que os fatos ficassem bem definidos.


O livro aqui está, como salvaguarda do futuro, segundo Chico deseja. Os leitores verão que a posição do médium contrasta com a nossa. Chico se pronuncia como intérprete dos Espíritos. Nós falamos por nós, como criaturas humanas indignadas ante a falta de respeito pela obra de Kardec, ante o atrevimento inconcebível dos que aceitaram os alvitres das trevas para corrigir de maneira bastarda os textos puros do Mestre. Não podemos admitir candidamente que os dirigentes de uma instituição até então respeitável, não obstante os seus deslizes doutrinários, tenham sido os promotores desse atentado à Doutrina. O dever impostergável de todos eles, consignado nos próprios estatutos da entidade, é o de propagar a Doutrina em sua pureza e defende-la. Não sabemos o que ainda fazem, depois dessa queda injustificável, no desempenho dos cargos em que permanecem impassíveis, como se nada tivesse acontecido.


Chico Xavier não diria isso, porque os Espíritos não interferem nas questões de nossa responsabilidade humana, e Chico é um instrumento deles na Terra. Mas nós dizemos, não podemos calar, temos o dever de zelar pela dignidade do movimento doutrinária. Se não mantivermos a ética espírita acima da ética mundana, mas, pelo contrário, a colocarmos abaixo, a pretexto de que no Espiritismo o princípio de fraternidade cobre todos os aleijões, estaremos reduzindo a Doutrina à condição amoral de uma cobertura para a irresponsabilidade. Os princípios de liberdade, igualdade e Fraternidade do Espiritismo resultam, como Kardec acentuou, no senso da responsabilidade individual e de grupa, ambos intransferíveis. Aqueles que falharam nos deveres de que foram investidos, a ponto de conspurcarem as obras fundamentais, os alicerces conceptuais da ética espírita, só têm um caminho a seguir: a renúncia aos seus cargos, para que outros mais capazes possam refazer os erros par eles praticados. E, se não entenderem o seu dever nesse sentido, devem ser advertidos pela corporação, sob pena da desmoralização desta.



Sem a observância ativa e vigilante dos princípios éticos que a informam, nenhum movimento cultural pode subsistir, pois estará minado em suas bases pela irresponsabilidade dos adeptos. O que se evidenciou, no caso da adulteração, desta vez de maneira ameaçadora e até mesmo arrasadora, foi o estado de alienação em que caiu a comunidade espírita no tocante às suas responsabilidades doutrinárias. Este não é um problema superficial, que possamos simplesmente ignorar. É um problema da mais alta gravidade para todas as organizações humanas. O que a ética espírita nos ensina é que não devemos confundir o erro com quem o cometeu. Esse é um princípio superior de ética. Perdoamos o autor ou autores do erra, mas não podemos tolerar o erro. Este tem de ser corrigido. E os autores que não revelaram sensibilidade suficiente para se penitenciarem devem ser corrigidos, sob pena de estimularmos o erro e criarmos no meia doutrinário um clima de indignidade geral.


Chico Xavier deu-nos uma prova eloquente desse procedimento. Envolvido indebitamente no caso da adulteração, por haver sugerido uma modificação em tradução que lhe parecia embaraçosa, sentiu-se responsável pelo crime e assumiu de pronta a sua responsabilidade total. Logo mais passado o estado emocional que o confundira, ao tomar consciência da distância que havia entre a sua sugestão e a intenção dos adulteradores, voltou a público para condenar a desfiguração dos textos kardecianos e retificar a sua posição. Jamais ele podia ter pensado em admitir a adulteração, pois com isso negaria todo o seu passado de cerca de meio século de fidelidade e respeito absoluto a Kardec.


O exemplo da desfiguração do Cristianismo é suficiente para nos mostrar os perigos a que fomos expostos. Essa desfiguração foi tão profunda que levou as igrejas a transformarem Jesus em mito e promoverem perseguições e matanças vandálicas em nome do Mestre e de Deus. Não basta esse terrível exemplo histórico, essa catástrofe moral que redundou na expansão do ateísmo e do materialismo na Terra, para advertir os espíritas, que se colocam sob a égide do Espírito da Verdade, quanto ao perigo da frouxidão moral no campo doutrinário? Queremos, por comodismo e em nome de interesses imediatistas, deixar que a irresponsabilidade deturpe também o Cristianismo Redivivo que o Espiritismo nos traz, mergulhando novamente a Terra em milênios de trevas? Se não lutarmos pela intangibilidade e a pureza da Doutrina, o que é que desejamos divulgar, oferecer, ensinar aos outros, pessoalmente e através de nossas instituições? As nossas ideias imprecisas e muitas vezes absurdas, as nossas pretensões orgulhosas, a pseudo-sabedoria da nossa vaidade, as nossas lamentáveis deficiências em todos os sentidos?



Os pretensos reformadores de Kardec nem sequer conhecem a sua obra, não penetraram ainda no conhecimento da harmoniosa estrutura da Doutrina e com isso não revelam a mínima condição cultural, intelectual e espiritual para suas tentativas de superação doutrinária. Só as criaturas simples, ingênuas, ignorantes ou fascinadas pela sua própria vaidade, pela obtusidade da sua autossuficiência, aceitam e propagam as falsas teorias elaboradas por esses adoradores de si mesmos, incapazes de um mínimo de autocrítica. Eles enxameiam no mundo e fazem apóstolos da mentira e da ilusão por toda parte, pois a vaidade humana se alimenta sempre da pretensão descabida de superioridade, num planeta de provas e expiações em que somos criaturas inferiores, extremamente necessitadas dos ensinos que rejeitamos.


É preciso que pelo menos esse proveito nos sobre do episódio da adulteração, em que tantas almas felinas tiraram a pele de ovelha para revelar a sua verdadeira condição. É preciso aprendermos a respeitar a Doutrina Espírita como a dádiva celeste que Jesus nos prometeu e nos enviou na hora precisa, no momento em que o nosso pobre mundo se preparava para um avanço decisivo na superação das suas condições de indigente do Cosmos. Quem tem autoridade para corrigir Jesus, Kardec e o Espírito da Verdade entre nós? Qual o missionário de sabedoria infusa que apareceu na Terra para nos provar que os ensinos do evangelho proclamados pelo Espiritismo devem ser substituídos por fábulas (como diz o Apóstolo Paulo) forjadas por este ou aquele indivíduo enfatuado e pretensioso?


O avanço das Ciências e da Cultura Geral em nosso século nada mais fizeram até agora do que confirmar, sem o saber, os princípios fundamentais da Doutrina Espírita. Onde está o ponto em que a Doutrina foi ultrapassada pelas concepções contemporâneas? Se tivéssemos hoje na Terra um missionário divino capaz de abrir novas perspectivas no campo doutrinário, a primeira coisa que ele faria, e que a legitimaria aos olhos das pessoas de bom senso, era empunhar de novo o chicote do Messias para expulsar os vendilhões do Templo. Não podemos ser tão néscios ao ponto de relegarmos ao arquivo do passado essa Doutrina que antecipou toda a evolução atual do saber humano em nosso tempo, só porque alguns pretenciosos reclamam vaidosamente o direito de deformar a Doutrina em nome do progresso. O progresso não é deformação, mas aprimoramento. E onde está aquela teoria, aquela doutrina, aquela sabedoria que se sobrepõe à que o Espiritismo nos oferece?


Que o episódio negro da adulteração nos sirva para mostrar a que situações ridículas e insustentáveis podem levar-nos a falta de vigilância e humildade, de oração e estudo. Precisamos de estudar Kardec intensamente, de assimilar os ensinos das obras básicas, de mergulhar nas páginas de ouro da “Revista Espírita”, não apenas lendo-as, mas meditando-as, aprofundando-as, redescobrindo nelas todo o tesouro de experiências, exemplos, ensinos e moralidade que Kardec nos deixou. Mas antes de mais nada precisamos de humildade para entrar no Templo da Verdade sem a fátua arrogância de pigmeus que se julgam gigantes. Precisamos de respeito pelo trabalho de um homem que viveu na Terra atento à cultura humana, assenhoreando-se dela para depois se entregar à pesada missão de nos livrar da ignorância vaidosa e das trevas das falsas doutrinas de homens ignorantes e orgulhosos.


Ao estender as mãos para tocar num livro doutrinário devemos perguntar a nós mesmos qual é a nossa intenção, o nosso estado íntimo. Porque, se não fizermos isso com respeito e humildade, poderemos cair na armadilha das adulterações, que está sempre aberta aos nossos pés inseguros. E não tenhamos dúvidas de que a omissão, em assuntos de tão profunda gravidade, que se refere ao nosso próprio destino e ao destino do mundo, é crime de cumplicidade. As pessoas, as instituições, as publicações que se omitiram na hora crucial da adulteração incidiram irremediavelmente na participação do crime, inscreveram seus nomes na lista dos omissos. Quem assume responsabilidades de divulgação e orientação no campo doutrinário não pode esconder a cabeça na areia quando a tempestade ruge. Essa imperdoável covardia é sempre assinalada com a marca indelével de Caim. Em qualquer setor das atividades humanas a fidelidade a normas e princípios é dever indeclinável de todos. Qual o estranho motivo que livraria os espíritas, integrados no mais alto setor dessas atividades, o da propagação e sustentação da Verdade, da pesada responsabilidade que falava Léon Denis? Seriamos tolos e simplórios se pensássemos que no Espiritismo estamos de mãos livres, sem a obrigação explícita e o dever inalienável de respeitá-lo e defendê-lo?


Embora não tenhamos a intenção de ferir ninguém, sabemos que são duras estas explicações que não são nossas, mas do próprio Cristo, quando lembrou aos fariseus que o fato de saber a verdade os condenava, porque em seu lugar ensinavam e sustentavam a mentira. Fomos acusado de intransigente. Pode alguém transigir com o erro sem dele participar? Fomos acusado de ortodoxa. Mas ortodoxia quer dizer “doutrina certa” e a heterodoxia, largamente pregada em nosso meio em nome de uma falsa tolerância quer dizer “mistura de doutrinas. confusão de princípios, colcha de retalhos”. Não nos julgamos puros nem santos e muito menos sábios. Todos nós, que nos reunimos para repelir a adulteração, só tivemos em vista a pureza, a santidade e a sabedoria da doutrina que professamos. Somos apenas fiéis, conscientes de nossas responsabilidades doutrinárias e contrários a todas as formas de aviltamento do Espiritismo. E isso porque? Porque a Doutrina Espírita é o Código do Futuro, elaborada para melhorar o homem e o mundo. Não nasceu da cabeça de um homem, de uma corporação científica ou de uma escala filosófica, e muito menos de um colégio de teólogos, mas da realidade natural dos fatos, dos fenômenos rejeitados pelos materialistas mas hoje aceitos e integrados por eles mesmos na realidade científica mais avançada. Não se constitui de preceitos, normas, dogmas, axiomas, mas de princípios ou leis que se impuseram à pesquisa científica mais rigorosa, de laboratório e de campo. Essas pesquisas não são apenas as de Kardec, mas as realizadas por cientistas eminentes nos meios universitários de todo o mundo, em geral iniciadas com o propósito de negar as conclusões de Kardec, mas sempre confirmando-as. Trata-se, pois, de um patrimônio cultural que se formou na sequência do desenvolvimento da cultura, bem enquadrada na História e na Teoria do Conhecimento. Podemos mesmo dizer que as conclusões da Doutrina Espírita não são postulados, mas fatos. São os fatos, sempre à disposição dos que pretenderem revisá-los, ou negá-los ou mesmo contraditá-los, que constituem a base do Espiritismo. Diante de um patrimônio cultural assim sólido e até hoje inabalável em todas as suas dimensões, como podemos admitir que pessoas ou grupos inscientes se atrevam a alterar, modificar, corrigir pretensiosamente aquilo que não estão sequer à altura de bem compreender?


Essa a justificativa legítima da nossa indignação ante o atentado inqualificável da adulteração que se pretendia realizar, abrangendo toda a estrutura doutrinária. Precisávamos não ter convicção, nem certeza do que admitimos, para aceitar de espinha curvada as pretensões alucinadas desta ou daquela instituição doutrinária. Nem Jesus agiu com mansidão ante a petulância dos fariseus vaidosos. Nem Paulo usou de tolerância conivente com os que, já no seu tempo, aviltavam o Cristianismo. Nem Kardec deixou de defender a Doutrina em nome de um falso conceito de fraternidade, e defende-la com firmeza e energia, empregando as palavras devidas. As sensitivas que murcham ao serem tocadas não são flores do jardim espírita. Porque o Espiritismo requer virilidade e franqueza dos seus adeptos. o sim, sim e não, não do Evangelho, para impor-se neste mundo de ambiguidades e comodismos.


Aqui está, pois, o livro que faltava em nossa bibliografia espírita sobre o caso da adulteração. Não é um livro de ódio ou ressentimento, mas de lealdade e amor. O amor não é capa de ilusões, não deve acocar o erro, mas defender e sustentar a Verdade, custe o que custar, para o bem de todos, adversários e companheiros. Amor e Verdade são as duas faces de Deus, que conformam o rosto divino aos olhos dos que sabem e podem encará-lo.




Anexo I



I

As cartas que Chico Xavier nos enviou, no período negro da adulteração, são os documentos da angústia por que passamos, todos os que víamos uma instituição espírita prestigiosa, envolvida pelas trevas no processo criminoso de adulteração da Doutrina. De março de 1975 a janeiro de 1976, como se vê pelas datas das cartas que ora publicamos, o abnegado médium escreveu-nos, revelando a sua perplexidade. Chegou mesmo. no princípio, a querer assumir a responsabilidade do desastre, aliviando os verdadeiros responsáveis. Viu-se depois na impossibilidade de fazê-lo, pois esse gesto de extrema abnegação contradiria todo o prolongado esforço de um trabalho mediúnico fiel, por quase meio século de rigorosa orientação doutrinária. Vemo-lo então confessar. amargamente, que nada tinha com o que se passava.


Por isso tivemos de defende-lo em certo momento e de incrimina-lo em outro, até que o esclarecimento se fizesse. Chico autorizou-nos a publicar os trechos de suas cartas que achássemos necessários, ou a usa-las por inteiro. Preferimos a transcrição total das mais significativas, para que o testemunho dos fatos ficasse completo, mostrando aos leitores a que ponto as trevas conseguiram afetar o trabalho na seara. A leitura e o exame atento desses documentos impõem-se a todos os espíritas de boa vontade e particularmente aos jovens, que neles encontram os recursos vivos e emocionantes para a vigilância que devem exercer no comportamento doutrinário. As novas gerações reelaboram as experiências das anteriores, como ensina Dewey e neste caso as experiências podem ser examinadas na confissão espontânea do médium que marcou entre nós meio século de intensa atividade doutrinária.


Este livro era para ter saído muito antes, mas as dificuldades surgidas foram tantas, que só agora conseguimos superá-las. A luta contra a verdade espírita é muito maior do que geralmente se pensa. Num mundo inferior como o nosso, as forças negativas dispõem de mais recursos e possibilidades de ação do que as forças positivas. Mas a verdade acaba sempre vitoriosa, quando os que a propagam e defendem são sinceros e dotados de firme convicção. As cartas de Chico Xavier nos dão a medida exata da sua convicção espírita, bem como do seu amor e do seu zelo pela doutrina.




II



UBERABA, 19.04.1975

Caro Amigo Prof. Herculano:

Deus nos abençoe!

Recebi a sua estimada carta de 16 [04.1975] e agradeço a sua generosidade e atenção de sempre.

A ausência da semana foi motivada por minha ida rápida a Pedro Leopoldo, mas estou nesta carta com os meus agradecimentos habituais.

Recebi igualmente a sua prezada carta de 27.03 [1975] e li, com muita atenção os seus apontamentos em nossa página do “Diário de São Paulo”, na edição de 6 do corrente.

Pode crer o querido amigo que tenho as suas manifestações referidas na mais alta conta como sempre sucede. Suas palavras nunca me poderiam ferir.

Elas nascem de sua necessidade, de seu imenso amor à nossa causa e o Espiritismo com Jesus e Kardec deve estar — e estará sempre com o Auxílio dos Mensageiros do Senhor, muito acima de nós. Assim tenho aprendido de nossa Doutrina de Luz e Amor e assim tenho visto em seus nobres exemplos. Lamento apenas não haver percebido, de minha parte, que me achava na base das dificuldades havidas porque a minha conversação com os nossos prezados confrades Paulo Alves Godoy e Jamil Salomão era para mim assunto de rotina, de que tratara e muitas vezes com amigos outros em conversações públicas e abertas, aguardando que companheiros competentes pudessem examinar as duas expressões de que falei ao estimado amigo, em correspondência anterior, — do ponto de vista de tradução apenas. Se houvesse tomado conhecimento de minha situação nos fatos, não poderia negar a minha responsabilidade e nem fugir de abraçá-la, como o fiz.

De qualquer modo, estou muito grato caro Professor por tudo. Digo isso, de coração, sem qualquer ideia de fazer efeitos.

Sua palavra amiga e correta de sempre, convidando-me a pensar mais detidamente em meus compromissos e encargos mediúnicos, é uma atitude abençoada e nobre. Não posso mas não posso mesmo me considerar um médium com qualidades especiais. Preciso e preciso muito, do amparo de todos os companheiros da nossa Causa, principalmente no que se refere aos assuntos de orientação doutrinária, para que as minhas fraquezas de criatura não se imiscuam nas manifestações de bondade dos Benfeitores Espirituais, trazendo complicações à nossa Seara de Luz e Amor, com as minhas falhas de comportamento. Creio que essas falhas são devidas mais à minha própria ignorância do que ao meu intuito de cultivá-las, mas quem sabe, caro amigo? Na mediunidade, mesmo naquelas exercidas por longo tempo, o médium pode ser acometido por acessos de invigilância, de vaidade, de orgulho, de intromissão na Obra dos Bons Espíritos, e criar muitas faixas de sombras. Médium falível e talvez até mais falível do que os outros de minha singela condição, se estou bem, isso se deve à presença dos Benfeitores Espirituais em meus passos e se estou mal, o que acontece muitas vezes, é que estou em mim mesmo e por mim mesmo.

Nessa luta prossigo e, por isso mesmo, necessito do apoio de todos os amigos que amam a nossa Doutrina Renovadora.

Continuo, desse modo, a pedir e pedir preces de todos os irmãos, em meu favor, e vou seguindo, na marcha dos dias, confiando nos Mensageiros de Jesus.

Quanto à nossa página no “Diário de São Paulo”, não terá. para mim, seu amigo e admirador, qualquer significação sem a sua presença. Peço-lhe, e peço-lhe, de coração, continuarmos juntos nessa tarefa aos domingos. E fale-me sempre como preciso ouvir. Exponha os seus pensamentos com a sua sinceridade de sempre. E creia, caso venha a desistir do seu nobre trabalho no “Diário”, em nossa seção aos domingos, de minha parte, considerarei também cessada a tarefa que me coube até agora. Juntos, começamos, juntos terminaremos.

Não saberia continuar sem o seu braço de companheiro. Que Jesus nos ajude e nos abençoe para continuarmos no trabalho de sempre.




III



UBERABA, 27.04.1975

Caro Prof. Herculano

Deus nos abençoe!

Li hoje os seus apontamentos no “Diário” que estão notavelmente doutrinários. Deus nos abençoe e nos fortaleça para servimos em nossos ideais. De mim mesmo, sou eu quem agradece a sua bondade e o seu apoio que me fazem sempre muito feliz e reconhecido.

A Doutrina necessita de companheiros sempre firmes na dedicação à nossa Causa e o seu exemplo é sempre para mim uma luz.

Humildade, não tenho, e a verdade é esta aí. Estou longe de ser o que devo ser, e só me consola a certeza de que luto para não ser o que sou e como sou, para ser o que realmente devo ser e o que esperam de mim.

Que Jesus tenha misericórdia deste seu amigo e servidor.




IV



UBERABA, 17.05.1975

Meu cara Prof. Herculano

Deus nos abençoe!

Recebi a sua confortadora carta de 25 último e sou eu quem agradece a sua dedicação. Suas palavras, como sempre, me trouxeram grande edificação espiritual e estou convencido de que os pioneiros de nossa Doutrina de Luz e Amor, qual Leon Denis e outros, estarão sustentando as suas forças nas tarefas gigantes da hora que atravessamos. O Senhor, por Seus Mensageiros, fortalecê-lo-á e renovar-lhe-á as energias, como sempre sucede, e tê-lo-emos firme na segurança de nossos princípios, a orientar-nos os caminhos.

É preciso não esmorecer e prosseguir à frente, porque o trabalho da Espiritualidade é sempre maior e sei que esse trabalho bendito, em suas mãos, cresce com as horas.

Se os companheiros sinceros e dedicados à nossa Causa silenciarem, o que será de nosso movimento assediado por vendavais da sombra, em todas as direções?

A luta é grande, mas a proteção dos Bons Espíritos é sempre maior e eles, os nossos Amigos da Vida Superior, que velam por nós, sustentarão as suas forças.

Sou, por espontânea vontade, conscientemente escravo dos meus deveres para com os nossos Benfeitores Espirituais, no entanto, perante os nossos irmãos da Humanidade, estou descompromissado e livre para respeitar as suas manifestações de lidador sincero e leal da Doutrina Espírita e para admirá-lo em sua fortaleza de ânimo e em sua fidelidade aos nossos princípios renovadores.

Jesus nos proteja e nos auxilie a seguir para adiante.

Agradeço a generosa remessa do seu livro “A Pedra e o Joio” portador de estudos e reflexões que me alertam e me auxiliam a pensar e discernir, como também agradeço o belo Volume “A Cor de Deus”, de autoria do nosso distinto poeta Rudmar Augusto, com a sua generosa dedicatória. É um formoso livro de apelos à verdade e à confraternização humana. Muito grato por suas atenções de sempre.




V



UBERABA, 08.07.1975

Caro Prof. Herculano

Deus nos abençoe!

O seu belo estudo “Chico Xavier, o homem, o médium e o mito” muito me alegrou e enterneceu.

Muito reconhecido ao carinho e a sinceridade de que as suas considerações estão impregnadas. A condição humana é uma bênção, mas a mitologia é dura de enfrentar. Efetivamente, eu ficaria muito envergonhado se fosse um médium diferente dos outros, sem provações e sem erros a marcarem o meu caminho de Espírito em resgate. Vamos seguindo para adiante e que Jesus nos abençoe e nos fortaleça.

Caro Professor, quando recebi a sua estimada carta anterior sobre os nossos volumes, em parceria, o nosso amigo Caio com outros companheiros do G. E. Emmanuel, já havia estado aqui oito dias antes.

Ele, nosso prezado Caio, me trouxe a notícia de que o prezado amigo dera a idéia e plano para que os livros com as crônicas domingueiras no “Diário de São Paulo” fossem lançados doravantes apenas com as notas escritas por mim acompanhadas pelas mensagens de nossos Benfeitores Espirituais, sem as suas interpretações, o que compreendi, de imediato. Não pude, desse modo, pelo inesperado com que a notícia me vinha ao conhecimento, senão concordar com a medida, mas pedi ao Caio me fornecesse todo o material em estudo para o novo volume, a sair para que eu possa retirar dez dos lançamentos do “Diário” mais expressivos e claros, em que a sua atitude, no caso da publicação do “Evangelho”, na tradução do nosso confrade Paulo Alves de Godoy, mais se evidenciasse, lançamentos esses que eu mesmo escolherei, para enviá-los às suas mãos ante a possibilidade de se publicar, sob o seu patrocínio, na Editora de que escolha, um livro em que estejamos juntos, marcando a questão havida para o agora e para o futuro. Caio e os presentes concordaram com a minha ideia e estou esperando o material aludido para retirar os dez lançamentos em que estejamos reunidos, — a mensagem, os seus apontamentos e as notas deste seu servidor, a fim de submeter o assunto ao seu exame e consideração. No caso, eu escolheria as dez crônicas-tríplices para o livro e o caro Professor escolherá os trechos de nossa correspondência sobre o assunto, ao mesmo tempo que o apresentará no possível volume. Que acha?

Com isso, marcaríamos ambos o episódio havido, no qual o caro Professor mostrará a sua defesa justa, ante a Codificação kardequiana, e de minha parte, demonstrarei, muito embora polidamente, o meu respeito a elas. Estou aguardando o citado material para fazer-lhe a remessa. Se o prezado amigo concordar com a ideia, organizaremos o volume na primeira oportunidade. Sinto bastante estarem as suas notas desmembradas dos lançamentos, em volumes próximos, mas não consegui sair do compromisso de continuar assinando os direitos autorais para o GEEM, logo ao receber a visita do Caio, com a anotação de que a ideia vinha do caro amigo. Entretanto, peço-lhe conservar os seus apontamentos publicados no “Diário”, os que não constarão dos livros próximos, pois pretendo enviar-lhe………. e duas mensagens não lançadas no “Diário”, em breve tempo, para que o prezado amigo estude a possibilidade de apresentá-las. No caso, o prezado professor estudará a possibilidade de encaixar os seus apontamentos já publicados, nas mensagens que enviarei em volume, a benefício das obras assistenciais de que me fala. Escreverei mais, oportunamente.




VI



UBERABA, 07.09.1975

Caro amigo Prof. Herculano

Deus nos abençoe!

Em anexo, envio-lhe hoje as (12) doze publicações de ápice no processo de opiniões, em torno da tradução de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, no qual, com o auxílio dos Benfeitores Espirituais, pude reconhecer a legitimidade da sua nobre tarefa na defesa da Obra de Allan Kardec. Por muito sincera fosse a minha ideia de substituir algumas palavras no texto da tradução em Português para não alterar as disposições mentais dos ouvintes novos das lições kardequianas em reuniões públicas, a verdade é que a sua veemência necessária na defesa da Obra de Allan Kardec me fez pensar muito no cuidado que todos nós, os espíritas devemos ter na preservação dos textos referidos, sob pena de criarmos dificuldades irreparáveis para nós mesmos, agora e no futuro. Meditando nisso sou eu quem me sinto honrado em enviar-lhe as referidas publicações, no intuito de demonstrarmos num livro-documentário a elevação da sua defesa e o meu respeito, no tocante à Codificação kardequiana, que nos cabe endereçar ao futuro tão autêntica, quanto nos seja possível.

No caso de se levar adiante o lançamento de um livro nessas diretrizes, sob a nossa dupla responsabilidade, o prezado Professor poderá usar ou apresentar no contexto do volume qualquer trecho ou a total correspondência que lhe tenho enviado sobre o assunto, pois isso poderá clarear a atitude que tomei, reconhecendo o meu erro e acatando o seu elevado ponto de vista, na aceitação espontânea de suas nobres razões em favor de nós todos.

A organização e título do livro, apresentação e comentários outros ficarão na pauta das expressões e maneiras que o estimado amigo julgar sejam as mais convenientes.




VII



UBERABA, 10.02.1976

Caro Prof. Herculano

Deus nos abençoe!

Parece incrível mas graças a Deus, o serviço para vós é tanto que os nossos assuntos, fora de nossas tarefas habituais, vão ficando adiados, sem que o desejamos.

Mas assim é que deve estar certo e, por isso, sei que o prezado amigo, sempre com muito mais encargos e lutas de trabalho do que as nossas pequenas tarefas, me perdoará o atraso em nossos temas do dia a dia.

Caro Professor, quanto ao nosso livro, em que compareceremos, expondo as nossas atitudes perante Jesus e Kardec, envio-lhe a importância de Hum mil cruzeiros que reúne parcelas de vários amigos de Belo Horizonte e Pedro Leopoldo, cuja lista de nomes tenho em mãos e aos quais falei sobre o volume. Esses amigos desejam adquirir o livro, logo que a publicação apareça, e, desse modo, mesmo que isso tenha alguma demora, peço-lhes guardar a importância para que os exemplares correspondentes à quantia reunida sejam enviados em meu nome, pois daqui farei a remessa ou farei a entrega pessoalmente em P. Leopoldo e B. Horizonte. Desde já, muito agradeço pela atenção que nos dispensará como sempre.

Sobre o possível rendimento do livro, se isso surgir, peço ao caro amigo canalizar para a instituição que julgue a mais indicável, porque, em nosso grupo aqui temos, sim, um bom núcleo de trabalho assistencial, mas confesso ao caro amigo que não convém aumentar aqui essas tarefas, porque se a assistência crescer muito, em nosso círculo, receio que isso prejudique o trabalho da mensagem psicográfica.

O seu coração amigo me compreenderá. Continuaremos com os nossos assuntos em outras cartas. Abraços





Anexo II




A liderança espírita é ainda um campo de ensaio. A maioria dos chamadas líderes espíritas não têm conhecimento suficiente da Doutrina. São, em geral, médiuns que se impuseram por suas faculdades ao respeito e à admiração de um grupo de adeptos. Às condições necessárias à liderança nas atividades comuns, acrescentam aos fatores mediúnicos: vidência, intuição, capacidade de doutrinação-espírita e abnegação ao próximo, seguindo o lema doutrinário de fora da caridade não há salvação. A esses acréscimos positivos juntam elementos negativos de suas condições individuais: autossuficiência, vaidade, autoritarismo, misticismo de tipa igrejeiro, pretensões culturais sem conteúdo, humildade aparente, hipocrisia farisaica que se excede em demonstrações de pureza e amabilidade festiva. Contrabalançadas pelas qualidades positivas já referidas, essas antiqualidades puramente sociais completam o equipamento do paternalismo que comove os adeptos desprevenidos.


A liderança espírita é um papel que o líder desempenha no meio doutrinário, apoiado no status social comum. Este problema do status é curioso, mas compreensível. Não sendo o Espiritismo uma religião organizada em forma igrejeira — mas uma doutrina livre que abrange todos os ramos do Conhecimento e tem a sua parte religiosa como consequência da científica e da filosófica — não há no Espiritismo cargos nem funções que possam definir um status específico, como o de sacerdote. O líder espírita é lavrador, operário, banqueiro, médico, empresário e assim por diante. Há uma relação natural entre o status social do líder e seu papel doutrinário, mesmo porque o movimento espírita é difuso, não forma uma ilha social, difunde-se por todo o organismo da sociedade. A importância do status social influi naturalmente na importância do papel doutrinário.


Esta breve caracterização da liderança-espírita já nos fornece indicações suficientes para um esboço da Psicologia da Liderança Espírita, que se mostra bastante complexa, Não pretendemos aprofundar o problema, mas apenas colocá-lo em função do assunto deste livro. O Espiritismo, como fato social e cultural, é um fenômeno ainda recente no panorama sociológico e exige tempo a fim de se definir em suas coordenadas evolutivas, em sua estática e sua dinâmica social e particularmente em seus vetores, ou seja, em seus elementos condutores de energias e determinadores de situações específicas. A própria especificidade das situações não é fácil de se definir e caracterizar, pois a condição de espírita não implica distinções raciais ou sociais e nem mesmo uma posição sectária explícita. A universalidade potencial do Cristianismo encontra-se em fase de atualização no Espiritismo, mas essa passagem da potência a ato depende de um lento e profundo processo de aculturação que, na verdade, consiste na elaboração de uma nova cultura. Tudo parece feito, e, no entanto, tudo está por fazer. Um mundo novo não surge do nada, como na alegoria do fiat, mas das raízes e da seiva de um mundo que o antecedeu. O velho e o novo se misturam gerando uma situação ambígua em que os indivíduos e os grupos espíritas mostram-se profundamente diferenciados entre si. Não existe a homogeneidade necessária às classificações habituais. A massa espírita não se destaca do quadro geral da população e esta a encara numa perspectiva plurivalente: os espíritas lhe parecem ao mesmo tempo benéficos e maléficos, ingênuos e espertos. cultos e ignorantes, bondosos e perigosos, a serviço de Deus ou do Diabo, criaturas de fé e de má-fé, racionais e fanáticos, e assim por diante. É a mesma situação dos cristãos primitivos no mundo antigo, embora pareça, atualmente, uma situação inteiramente nova. Nessa heterogeneidade sociocultural a liderança espírita exige extrema versatilidade, o que por sua vez, aumenta as suas dificuldades por gerar desconfianças. Combatidos, caluniados, perseguidos e ridicularizados pelo clero das religiões tradicionais, pelas diversas ordens espiritualistas, pelas instituições científicas (particularmente pelas instituições médicas) pela imprensa, o rádio e a tv, explorados em sua generosidade por espertalhões de todos os tipos, os espíritas desenvolveram naturalmente o seu instinto de defesa e preservam-se na desconfiança. Não obstante, a sua obstinação na boa-fé — decorrente dos princípios doutrinários de fraternidade, tolerância e amor ao próximo — os tornam vítimas frequentes de engodos e mistificações. Essa ingenuidade espírita é o que ameniza, não raro demasiadamente, as dificuldades da liderança espírita. O receio de fazer mau juízo do próximo, de critica-lo injustamente, faltando com a tolerância e a caridade, leva indivíduos e instituições a situações difíceis e embaraçosas.





Há dois tipos básicos de liderança espírita, decorrentes das necessidades naturais do movimento doutrinário. Podemos considerá-los nas seguintes categorias, segundo suas posições sociais, grau de cultura e funções que exercem nas instituições doutrinárias:


1ª — Líderes Doutrinários — Fundadores, presidentes e diretores de instituições. Constituem uma categoria de liderança austera, de tipo paternalista, semelhante à dos anciãos judeus e à dos apóstolos e dirigentes de comunidades na Era Apostólica. São homens e mulheres respeitáveis dedicados à doutrina, dotados de mediunidade ou de grande experiência na prática mediúnica, na direção do culto e na orientação administrativa. Tornam-se conselheiros naturais da comunidade e exemplos de moralidade. Sabem expor com facilidade os princípios doutrinários, orientar os neófitos, refutar as críticas e agressões dos adversários. Caracteriza-os o respeito pela Doutrina, com repulsa às inovações de práticas doutrinárias e à mistura de elementos estranhos, provenientes de outras correntes espiritualistas.


Até o final da década de 1920 a figura patriarcal desses líderes natos era comum em todo o Brasil. Cercados de respeito, admiração e até mesmo de veneração, fisicamente caracterizados por suas barbas longas e brancas, bigodes espessos, ou por cavanhaques brancos e pontudos, bigodes penteados, eles representavam o patriarcado espírita e os sólidos baluartes da doutrina inviolável. Estudavam as obras de e , de e . Firmavam-se nas pesquisas científicas de , Alexandre Aksakof, e outros luminares da época e rejeitavam sistematicamente a mistificação de , que apenas o grupo da Federação Espírita Brasileira, no Rio, sustentava e divulgava, como ainda hoje [1978] o faz, com apoio de alguns grupos do Norte e Nordeste e uma minoria do extremo-sul. O bom senso os guiava na interpretação prática dos ensinos de Kardec, o Codificador.


As transformações políticas dos Anos 1930, com a queda da I República e quebra do Café, o período Getulista e suas reformas, depois a I Guerra Mundial e o desenvolvimento forçado da industrialização, o panorama nacional modificou-se profundamente e o panorama espírita foi afetado. A geração dos patriarcas desapareceu rapidamente. O Mundo entrava na fase acelerada de transição que os Espíritos haviam anunciado a Kardec (como se vê em Obras Póstumas) e os horrores da II Guerra Mundial faziam brotar as gerações do desespero. Lembro-me da figura patriarcal de João Leão Pita (o Velho Pita, companheiro de) em seus últimos dias de vida terrena, no Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Suas longas barbas brancas e seus olhos azuis lembravam o velho , já então no Além. Pita, intransigente e lúcido, corajoso e temido encerrava a Era Patriarcal do Espiritismo Brasileiro. As novas gerações assumiam a liderança de um movimento órfão, aturdidas e inseguras. Deviam, segundo a lei das sucessões, reelaborar as experiências das gerações anteriores, mas não dispunham das condições necessárias. Novos líderes surgiram ansiosos por impor-se no panorama espírita, excitados por novidades e desprovidos de bases sólidas no tocante ao conhecimento doutrinário. Teorias antigas, como folhas secas sopradas pelos ventos do mundo desvairado, vinham das catacumbas de múmias do Egito, das vastidões da Índia e da Mesopotâmia, renovar a mentalidade espírita mal formada e pior informada. As instituições doutrinárias, mal dirigidas por líderes vaidosos e convencidos de sua sabedoria eclética, assistidos por sub-líderes subservientes, não dispunham mais, em suas raízes secas, da seiva necessária para uma reação defensiva. Caminhamos assim, de deturpação em deturpação, através de disparatadas acusações de erros de Kardec, para os mistifórios mais absurdos. A tentativa de criação de um Espiritismo corpuscular para substituir toda a obra kardeciana fracassou por falta de lógica. Os manuais, cursos e até mesmo um tratado de mediunidade em que os minerais, os vegetais e os animais figuravam como médiuns, resultaram numa seita de fanatismo. A tentativa delirante de dividir em duas partes a obra de Kardec e converter o Mestre em figura de lenda simplória afogou-se no seu próprio ridículo.


Mas a vaidade e a ignorância de mãos dadas tinham ainda um último golpe a tentar. Os novos líderes espíritas, embriagados pelo prestígio popular conseguiriam traçar um plano geral de aviltamento da Doutrina e efetivar o primeiro passo: a adulteração da obra mais popular de Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Essa profanação de gentio, , provocou a indignação das pessoas de bom-senso e dos adeptos fiéis da Doutrina, selada historicamente pela condenação maciça do Congresso Estadual da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo. Apesar dessa vitória da dignidade doutrinária, trinta mil volumes adulterados já haviam sido trocados pelas moedas de Judas e infestado o movimento espírita brasileiro.


A insensibilidade dos novos líderes não lhes permitiu renunciar aos seus postos de liderança rejeitada. Continuaram em seus lugares e tentaram ainda mais um golpe: a destruição da USE [União das Sociedades Espíritas do Estado] pela sua absorção nos quadros profanados da Federação. Perderam mais essa cartada mas não se deram por achados. O excesso de tolerância e a inconsciência da maioria responsável pela instituição, a incompreensão da gravidade do caso de adulteração oficial dos textos doutrinárias permitiram passivamente a continuidade das lideranças falidas. Tudo isso nos mostra a distância que se estendeu, o vácuo aberto entre duas épocas: a dos líderes natos e respeitáveis do passado e a dos líderes levianos e inconsequentes do presente. Nesta fase de aviltamento da espécie humana em todo o mundo, não houve condições para o restabelecimento da austeridade espírita em termos de respeito pela Doutrina e moralização dos quadros doutrinários. Onde os líderes não revelam capacidade de liderança a massa perde o rumo e a convicção doutrinária é substituída pelo aviltamento das consciências. Foi assim que o Cristianismo entrou no eclipse medieval e restabeleceu a mitologia e a idolatria que o Cristo condenara em termos candentes, com expressões vigorosas que os adulteradores modernos procuraram substituir por frases ambíguas e ridículas nos textos evangélicos e na obra de Kardec.


Assim traçado esse panorama sombrio, com as cores quentes da realidade ainda palpitante — demonstrado em fatos clamorosos e inegáveis as consequências da falta de convicção e austeridade no trato dos problemas doutrinários, podemos voltar à análise do problema das lideranças.


2ª — Líderes Mediúnicos — A liderança mediúnica exerce-se em três áreas distintas: na popular, indo geralmente além dos limites espíritas, com repercussão sobre a população em geral: na institucional, influindo na atividade e na orientação das instituições; na de divulgação, através de mensagens psicográficas distribuídas à imprensa e aos centros e grupos doutrinários, oferecendo-lhes novos recursos para o esclarecimento de problemas de comportamento individual e coletivo, bem como através de livros mediúnicos que enriquecem a bibliografia espírita e incentivam os estudos doutrinários e marcam a presença ativa dos Espíritos no campo cultural-evangélico. Os médiuns que se destacam nessa liderança influem sobre os outros médiuns e dão-lhes orientação e incentivo à produtividade. Esses líderes mediúnicos exercem ainda uma função de grande importância na orientação moral do povo, alargando a influência e a expansão do Espiritismo, influindo na aceitação da mediunidade como fato natural. Funcionam como os oráculos da Antiguidade, procurados por consulentes espíritas e não espíritas, consolando criaturas desalentadas por casos dolorosos ocorridos na família, justificando o título de Consolador conferido à Doutrina pela tradição evangélica. O Espiritismo se apresenta, através, deles, como o cumprimento da Promessa do Consolador, feita por Jesus. A liderança mediúnica tem assim um papel Fundamental no meio espírita. É dela que brota a orientação espiritual do movimento espírita, é nela que as outras lideranças se apoiam para o desenvolvimento de suas atividades. Por isso, a responsabilidade dos médiuns, que sempre se colocam, queiram ou não, na posição de líderes, é a de um termômetro que deve marcar a temperatura do movimento doutrinário e regulá-la na revelação dos dados necessários. É no exame atento desses dados — ensinos, orientações, advertências, estímulo — que os demais líderes podem acompanhar as curvas de ascensão e declínio da temperatura. Cabe particularmente aos líderes doutrinários e aos líderes intelectuais vigiar o funcionamento desse termômetro coletivo e corrigir os seus desvios e os seus momentos de inibição. Segundo o método kardeciano de aplicação do bom-senso e da razão esclarecida na rigorosa análise da produção mediúnica, sem se deixarem influenciar pelo antigo e perigoso prestígio do sobrenatural. Os médiuns são instrumentos humanos, sujeitos a todos os condicionamentos da espécie, podendo incidir em sintonias perturbadoras ou cair em apatia diante de situações conflitivas e difíceis do processo espírita. O guia seguro da liderança mediúnica é o Livro dos Médiuns, de Allan Kardec. É na leitura e estudo constante desse livro que os médiuns encontram o esclarecimento dos seus mais complexos problemas. Todos os demais livros sobre mediunidade, alguns alarmantemente afastados da realidade espírita, devem ser rigorosamente conferidos com O Livro dos Médiuns de Kardec. Sem esse critério todos os líderes e seus auxiliares correm o risco de enganos fatais.

3ª — Líderes Intelectuais — Os líderes intelectuais do movimento espírita são os intelectuais-espíritas que se dedicam à doutrina, que a estudam com afinco e perseverança, mantendo-se em atividade constante no plano doutrinário. Um intelectual pode ser espírita sem que seja precisamente um intelectual-espírita ou um líder intelectual. A expressão intelectual-espírita corresponde a uma categoria doutrinária bem definida. É um intelectual que se dedica ao Espiritismo, que assimilou a doutrina e integrou-se na mundividência espírita. Vivendo a doutrina no plano da inteligência e da cultura ele se torna naturalmente um líder intetectual espírita. Sem essa vivência e essa dedicação ao estudo e à pesquisa doutrinária ele será simplesmente um espírita dotado de intelectualidade, mas sem as condições necessárias à liderança intelectual espírita. É o mesmo que acontece com os cientistas ou os pesquisadores universitários que são espíritas, mas não se integram no campo doutrinário. O cientista espírita é aquele que se dedica à Ciência Espírita e contribui para o seu desenvolvimento com trabalhos e obras válidas, reconhecidas como tal pelo consenso geral e pelo consenso espírita. Os líderes espíritas intelectuais pertencem a todas as categorias do mundo intelectual: cientistas, filósofos, ensaístas, especialistas em comunicação, professores, médicos e assim por diante. Mas a legitimidade da sua condição de líder depende da sua atividade permanente no campo espírita, reconhecida pelas lideranças espíritas. Esse reconhecimento não depende de formalidades de nenhuma espécie. É o reconhecimento espontâneo do meio intelectual espírita. Este meio intelectual se define como a conjugação de pessoas habilitadas e experientes do meio intelectual comum para o trabalho intelectual espírita. Não podemos incluir nesse meio pessoas sem habilitação intelectual, por mais dedicadas que sejam à causa doutrinária. Só podemos obter um consenso intelectual espírita de um agrupamento de intelectuais. Como podem opinar, por exemplo, sobre questões de Ciência e Filosofia, de Religião e História ou Psicologia das Religiões, pessoas que não tenham conhecimento e experiência dessas matérias? É o mesmo que se pedir a um pedreiro que opine sobre questões de Botânica. A falta de compreensão desse problema tem provocado lamentáveis equívocos e situações desastrosas, como no caso da adulteração. Não se trata de preferência ou exclusivismo, mas do velho adágio: cada macaco no seu galho. Sem esse critério metodológico os macacos acabam invadindo as lojas de louças.





Podemos agora encarar o problema da Psicologia da Liderança Espírita, tomando como objeto os tipos de líderes de que tratamos. A tipologia da liderança espírita é elemento básico para a apreciação psicológica que devemos fazer. Não se trata de um estudo aprofundado da questão, mas de uma apreciação resultante da observação das diversas tipologias de conjunto das formas de liderança espírita. Necessitamos de trabalho mais metódico e profundo sobre este grave problema, mas é evidente que temos de iniciar a sua abordagem reunindo dados da observação e da experiência para desenvolvimento de pesquisas indispensáveis à boa orientação do movimento espírita, hoje entregue a si mesmo como um barco à deriva. O exemplo metodológico de Kardec foi posto de lado pela nossa incúria e os resultados desse descaso já nos levaram à confusão e ao ridículo. Tratemos de aproveitar essa amarga experiência antes de cairmos em novas situações humilhantes. Vejamos o que se pode fazer com os poucos dados que possuímos.


1ª Categoria — Lideres Doutrinários — A psicologia dos líderes doutrinários natos, fundadores e dirigentes das primeiras instituições espíritas no Brasil, define-se a partir da formação religiosa do nosso povo. Aqueles varões barbados e austeros dos primeiros tempos saíram das barbas bíblicas de Moisés, passaram pelas barbaças amedrontadoras do Padre Eterno católico-romano e revoltaram-se contra a mitologia católica nas barbas ardentes de . Sua psicologia, individual e coletiva, enraizava-se na crença e no medo. Esses dois fatores determinavam a a sua austeridade. Crentes na existência de Deus e criados no temor a Deus. encontraram no Espiritismo a porta de escape de que necessitavam para livrar-se da mordaça dogmática e entrar no uso da razão, sem caírem no abuso das concepções positivistas e materialistas do século passado. Nasceram de novo e reconheceram em Kardec o Messias que os arrancara do túmulo. A crença em Deus tornou-se conhecimento racional de Deus e o medo do pecado em respeito pelas leis de Deus. Essas leis não estavam nas Tábuas da Lei de Moisés, mas na própria estrutura da Natureza, englobando a natureza humana. O não precisava da autoridade de Moisés, fundava-se na autoridade direta de Deus, o Criador, transferindo para o plano humano a ordem geral da Natureza. As leis de Deus eram as leis naturais, como ensinava Kardec, e os mandamentos do Sinai podiam ser lidos na consciência de cada criatura humana. Esse fundamento panteísta explicava os mistérios da imanência, onipresença e onipotência de Deus, sem cair no panteísmo extremado que confunde Deus com a Natureza, o Criador com a Criação. Essa concepção transformara-se logo, à luz da evidência racional, em sólida convicção. Este é o segredo da firmeza e coragem com que enfrentaram o mundo hostil dominado pelo clero intolerante, pelos intelectuais ateus, pelo povo fanático, pelos tradicionalistas agressivos e pela fascinação mágica das formas de sincretismo religioso afro-brasileiro em desenvolvimento. Os pronunciamentos acadêmicos, particularmente de médicos empenhados em mostrar que o Espiritismo era uma fábrica de loucos, não os abalava. Eles se sentiam firmes em sua convicção e sabiam que os pseudo-sábios que tentavam abala-la não conheciam a Doutrina Espírita: falavam do que não sabiam.


Os resultados da prática mediúnica eram palpáveis e visíveis, como sempre o foram. Fortalecidos pela razão kardeciana e pela realidade dos fatos, esses líderes eram inabaláveis. Daí o seu profundo respeito à Doutrina, cuja lógica não podia ser contestada e cuja fenomenologia era confirmada pelas pesquisas de cientistas europeus que eram expoentes do saber da época. O sentimento religioso que os embalara na infância e na adolescência não fora chocado nem ferido por Kardec, que se limitara a explica-lo como lei natural da espécie humana. A moral evangélica, fundamento ético da estrutura social, tornava-se mais vigorosa á luz da doutrina e despia-se da roupagem negra das superstições. A dignidade humana se engrandecia, com as provas da imortalidade. Ninguém era alijado da presença de Deus nem deslocado da ordem social e moral em desenvolvimento. Todos os conteúdos do psiquismo individual eram esclarecidos pela Escala Espírita, esse esquema da evolução espiritual, que tanto se aplicava aos espíritos desencarnados quanto aos encarnados, esclarecendo situações e comportamentos antes considerados na pauta misteriosa das influências diabólicas. O Diabo era colocado no panteão mitológico e Kardec mostrava que o Inferno mitológico era mais racional e humano que o Inferno católico.


O sentimento de segurança, o amor de Deus substituindo o temor, a oração suprimindo indulgências, confissões e sacramentos, reduzia o formalismo religioso em loja de bijuterias. O racionalismo do século enriquecia-se com os elementos vitais da fé raciocinada e a fé crescia e frutificava à luz da razão. É o que podemos ver na bibliografia espírita da época, especialmente nas obras de , o médico e católico eminente que se tornara espírita. A mistificação roustainguista, tipicamente católica e carregada de resíduos bíblicos, foi apenas tolerada por Bezerra, empenhado em evitar cisões no movimento espírita nascente. Ele proclamava em suas crônicas espíritas do jornal O Paiz: Kardec é insuperável, evitava entrar em discussões inúteis com os fanáticos roustainguistas.


Algumas referências de Bezerra à obra de são dos seus primeiros tempos de conversão. Formado no Catolicismo, com uma vivencia longa de católico devoto, Bezerra não estava ainda bem integrado na posição espírita quando lhe chegou às mãos a obra mistificadora. Vendo que Roustaing pretendia restabelecer no Espiritismo a divindade de Cristo, a sua natureza sobrenatural, e influenciado pelos roustainguistas, encarou a obra com simpatia. Mas depois firmou-se em Kardec definitivamente. A natureza aberta da Doutrina Espírita e o espírito liberal de Bezerra o levou a não atiçar os ânimos. Além disso, não queria fracassar em seu intento de manter a união dos espíritas, ainda tão poucos no tempo. Mas o seu apego a Kardec foi tão fiel que o chamaram de Kardec Brasileiro. Temos nesse episódio uma prova da psicologia da liderança de Bezerra, que, sem atritos, conseguiu o seu intento mantendo e proclamando sua fidelidade irredutível a Kardec.


Podemos resumir assim a psicologia da liderança espírita da geração dos barbaças: convicção plena da verdade doutrinária, coragem inabalável na sustentação e defesa da doutrina, concessões internas para evitar cisões numa fase crítica. proclamação pública da grandeza e insuperabilidade de Kardec, confiança na razão na sua vitória perante as criaturas de bom-senso, respeito às convicções alheias, sem ceder nas convicções próprias, austeridade e nobreza na sustentação e defesa dos princípios doutrinários, respeito absoluto aos textos originais de Kardec. Esse respeito e a convicção dos barbaças é o que falta. infelizmente, a grande número dos líderes atuais, que não vacilam em lançar à venda livros deturpados e ridicularizantes para a doutrina, prejudicando-a moral e intelectualmente, para não se perder o dinheiro empatado na profanação. Os interesses materiais se sobrepõe aos interesses espirituais.


A Psicologia de liderança dos líderes doutrinários atuais é quase uma inversão da que esquematizamos acima. Sob a influência das grandes transformações do mundo a que já aludimos, os líderes atuais não encontram na doutrina a segurança dos antigos. Fundadores e dirigentes de instituições estão livres das pressões que os antigos tinham de combater. O Espiritismo está hoje amparado pelo referendo das Ciências e impõe-se ao mundo cultural como representação de uma realidade incontestável. Em lugar do sentimento de segurança dos barbaças, os líderes barbeados de hoje sentem a insegurança do mundo que desaba ao seu redor e procuram meias de adaptar-se às novas condições. A falta quase absoluta de uma compreensão real da doutrina (por falta de estudos aprofundadas da sua natureza e sua posição epistemológica) não lhes permite perceber que o Espiritismo não está ruindo com o velho mundo, mas alicerçando espiritualmente o novo mundo que vai nascer. Ao invés de se firmarem na convicção doutrinária, amedrontam-se com o tumulto das novidades que surgem de todos os lados e acham que a doutrina estagnou-se num mundo em mudança. Buscam adaptar a doutrina às novas condições, para salvá-la, e nesse engano grotesco a ameaçam de deturpações e retrocessos. Estão em pânico os líderes doutrinários atuais, na sua maioria, por incúria e ignorância, por falta absoluta de visão-espírita. O exemplo da adulteração pode ilustrar essa situação. O grupo da Federação Espírita do Estado de São Paulo entendeu (e o declarou na própria edição adulterada de O Evangelho Segundo o Espiritismo) que as igrejas cristãs estão passando os velhos textos da Bíblia para a linguagem atual, e isso com grande sucesso. O Espiritismo ficaria atrasado e era necessário acertar o seu passo com essas inovações profanadoras. Não perceberam que a posição das igrejas é retrógada, enquanto a do Espiritismo é atualíssima e até mesmo futuróloga. Desesperaram-se ao não encontrar o que mudar nos textos de Kardec e puseram-se a deturpá-los, certos de que salvavam a doutrina, e quando chamados à atenção explicaram ingenuamente que faziam experiências de novas formas de comunicação! Escudaram-se em expressões ambíguas usadas em mensagens mediúnicas, considerando-as arbitrariamente como linguagem atual. Na verdade, tratava-se de expressões que não tinham e não têm nenhum curso na atualidade da língua, reduzindo-se a uma aplicação restrita e infelizmente errônea. Pensaram que a barco afundava, e, na aflição de salvá-lo o viraram de borco. Episódio típico dos momentos de pânico. Demonstração inegável de falta de conhecimento doutrinário e assustadora falta de convicção espírita. Aturdidos ante a confusão, quiseram furtar-se à responsabilidade e a lançaram na conta de um líder mediúnico, o de maior prestígio, Chico Xavier. Mas o médium, que também se aturdiu com a trapalhada, acabou declarando que nada tinha a ver com a adulteração, sustentando, pelo contrário, a necessidade de preservação da pureza original dos textos. O fato é significativo e exige meditação de todos os que se interessam pela preservação da doutrina.


Mas outra prova de insegurança e medo surgiu logo mais, com a exigência de destruição da edição adulterada, que comprometia a doutrina. Ante a ameaça de vultoso prejuízo em dinheiro, os líderes em pânico alegaram a necessidade de venda da edição para que as obras da nova sede da Federação não fossem interrompidas. Entrava, assim, um novo fator na questão. A nova sede ia salvar o Espiritismo de uma derrocada material, de ordem patrimonial, garantindo a sua presença monumental nos novos tempos. Os líderes confundiam a instituição espírita com as catedrais ameaçadas pelas transformações da atualidade. Não compreendiam que as edificações, por mais importantes que sejam nada representam na projeção futura da Doutrina. O que importava preservar era a Doutrina e não as obras materiais e muito menos o dinheiro desastradamente empatado na profanação das obras doutrinárias. Cegueira espiritual absoluta, domínio das trevas no Plano espiritual. Os líderes preferiram o prejuízo moral, a profanação da doutrina, a ridicularização das obras modelares de Kardec, ao esvaziamento corajoso dos cofres. Por outro lado, revelando a extensão assustadora da crise espiritual, a maioria absoluta dos líderes, no Brasil inteiro, preferiram o silêncio acumpliciador ao protesto dignificante. Valia mais as acomodações de lideranças diversas, num conluio tácito estarrecedor, como se todos dissessem consigo mesmos: “Que se vão os princípios, mas fiquem os cruzeiros!” E ficaram realmente, ficaram os cruzeiros [atualmente reais] nos cofres, tilintando como as moedas de Judas. Enquanto isso, trinta mil volumes adulterados eram semeados no seio do povo, lançando as raízes nefastas de futuras confusões doutrinárias.


Tudo isso revela a incapacidade dos líderes atuais, cujo psiquismo abalado pela insegurança, o temor e a ignorância, e sobretudo a falta de convicção doutrinária, constitui a perigosa psicologia da liderança no movimento espírita desta hora de transição. As reuniões da grupo adulterador foram privativas sem a participação de elementos experimentados e conhecedores da doutrina. Guardavam um segredo medroso. Obstinavam-se em fazer tudo sozinhos, entre quatro paredes. Praticava-se o crime perfeito contra a doutrina, não haveria testemunhas. O meio espírita teria de receber o choque de um fato consumado. Os diretores da instituição estiveram ausentes, segundo declararam quando o escândalo explodiu. A venda de grande parte da edição foi feita às pressas e sem falar-se em modificações dos textos. O tradutor escolhido não tinha conhecimento das regras de tradução e na verdade não traduziu, decalcou traduções facilmente identificáveis. Quando os volumes foram postos à venda livre e os protestos surgiram, fizeram tudo para abafá-los e clamaram em manifesto que o assunto não devia ser tratado em público. A liberdade espírita era sacrificada nas exigências de medidas confessionais. A doutrina não pertencia ao mundo, mas a um grupo, inexperiente e desprovido de condições para a execução de uma simples tradução. Todos esses aspectos do caso revelam a tônica dominante do medo. Podemos reduzir a esse sentimento toda a psicologia da liderança espírita nesta hora de medo mundial. Mas porque esse medo no Espiritismo, doutrina sem segredos nem mistérios, aberta aos ventos da renovação que ela mesma prega, doutrina que é o roteiro das transformações e constitui a plataforma do mundo futuro? A resposta já foi dada, mas é bom insistir: porque falta aos líderes atuais o principal elemento da psicologia da liderança, que é o conhecimento doutrinário e consequentemente a convicção espírita. E ao perguntarmos pelo porquê dessa falta absurda a resposta será: falta de estudo, de interesse e de amor pela doutrina. A leviandade deste final de século infiltrou-se no meio espírita e a febre de inovações insensatas invadiu as instituições. A virulência dessa infestação demonstrou que o vírus da irresponsabilidade só pode ser combatido com uma renovação imediata e total das lideranças. Não há o que fazer com a psicologia do medo e da ignorância, senão alijá-la.


2ª Categoria — Líderes Mediúnicos — A Psicologia da Liderança Mediúnica é a própria Psicologia do Médium. Porque o médium é um líder nato, quer no seu grupo, quer em relação com o público em geral. Sua condição de intermediário o obriga a isso. Mas neste vasto país mediúnico só temos um médium capaz de liderança nacional, que é Chico Xavier. Só ele revelou até hoje condições para essa função esmagadora. Por isso está chegando à exaustão. E por isso o tentaram envolver, como escudo de extremo recurso, no caso da adulteração. Meio século de mediunidade sem descanso, enfrentando entrechoques doutrinários contínuos, ataques e críticas de opositores de toda a espécie, são mais que suficientes para destruir um gigante. Mas Chico Xavier resistiu até agora, graças a uma convicção inabalável e uma paciência muito superior a de Jó. É nele, na sua frágil figura humana e na indomável fortaleza espiritual, que encontramos o modelo da liderança mediúnica. Revelando mais uma vez o poder da humildade como no caso do infinitesimal na corrida atômica, o Invisível desafia, nele, todo o aparente poderio visível. Chico Xavier provou que só uma força pode se opor a todas as forças do mundo e vencê-las: a força da Humildade. Repetiu a façanha de Francisco de Assis perante o poderio maciço do Vaticano. O poder do médium se chama Humildade. Quando ele a perde, perde-se a si mesmo. Se temos só um líder mediúnico para mais de cem milhões de habitantes e não sabemos quantos milhões de médiuns, é porque a maioria dos nossos médiuns se perdeu em pretensões estúpidas e dissipações inócuas de suas faculdades.


O médium só exerce a liderança de maneira efetiva e eficaz quando não quer set líder e se recolhe à sua humildade. As forças do Céu agem na Terra ao inverso das condições terrenas. Psicologicamente o médium é a imagem do hermafrodita grego da era arcaica. É uma criatura dupla, ou seja, duas criaturas ligadas pelas costas, com dois rostos, quatro braços e quatro pernas, girando rapidamente no intermúndio em busca do Reino dos Deuses. Mas quando deixam de girar para subir e se acomodam na Terra, Zeus os corta com um golpe de espada e os reduz à condição normal da humanidade. Perdem a condição de líderes e se tornam ovelhas do rebanho comum.


A Psicologia do Médium é paranormal. Suas percepções extravasam dos órgãos sensoriais para captar as dimensões do invisível. Se examinar-se a si mesmo jamais temerá a morte, pois convive com os mortos, que na verdade não morreram. A liderança mediúnica não é do médium, mas das entidades espirituais que dele se servem. Mas ele é dono de si mesmo e os Espíritos não podem dominar as suas faculdades sem o seu consentimento. Isso o faz participar da liderança. Chico Xavier aceitou a orientação de Emmanuel, ligou-se a essa entidade e com ela passou a servir sem perguntar a quem. Não alimentou ambições terrenas e nunca pretendeu ser líder. Por essa renúncia a si mesmo tornou-se o líder mediúnico nacional. Mas Emmanuel respeitou o modo de ser do médium. Limitou a liderança de ambos ao plano moral e espiritual. Sua influência no plano doutrinário foi sempre indireta. Evitou manifestar-se diretamente sobre as graves questões doutrinárias do nosso meio. Mesmo no caso da adulteração, quando o seu pronunciamento através de Chico Xavier teria efeito decisivo, preferiu manter-se distante. Quando a situação exigiu uma intervenção esclarecedora, preferiu que Chico a fizesse na sua condição de médium. Uma questão de respeito ao livre-arbítrio dos homens, que devem aprender por si mesmos em suas experiências. Esse fato revela a posição dos Espíritos Superiores em face das lutas humanas ao mesmo tempo desmente as falsas teorias espiritualistas de que os médiuns são criaturas inteiramente passivas, dominadas pelos espíritos. Se os médiuns da Federação compreendessem isso não teriam permanecidos alheios à profanação da doutrina. Revelariam desejo de intervir e os Espíritos Superiores se serviriam deles. Ao que sabemos, houve pelo menos um médium que desejou intervir e recebeu mensagens enérgicas que foram sonegadas ao conhecimento geral. Os médiuns estão sujeitos a essas reações do ambiente, mas não são obrigados a permanecerem num ambiente negativo. Faltou instrução aos médiuns para que não se portassem como carneiros.


Na psicologia dos médiuns influem os elementos de sua formação religiosa. Nossos médiuns têm formação igrejeira ou para-igrejeira que o ensino espírita devia superar. Mas quando os líderes doutrinários também sofrem das influências igrejeiras não têm condições para auxiliar os médiuns. A humildade mediúnica é de desprendimento das pretensões terrenas, mas não de submissão aos sistemas religiosos errôneos que o Espiritismo vem reformar. A incompreensão geral desse problema transforma nossos médiuns em criaturas místicas, cheias da antigo temor a Deus em lugar do amor a Deus. Nossas escolas de médiuns surgiram impregnadas de resíduos místicos e mágicos, divorciadas da realidade nova que o Espiritismo nos apresenta. Se Chico Xavier tivesse cursado uma dessas escolas jamais se tornaria num líder mediúnico, não se livraria (e só o conseguiu em parte) do cheiro de incenso e da fascinação dos altares floridos. Mesmo conservando parte desses resíduos, Chico Xavier aprendeu muito na convivência direta com os Espíritos e teve a coragem de romper com os laços mais comprometedores da sua formação católica. Esses problemas precisam ser encarados de frente por líderes doutrinários e intelectuais realmente esclarecidos, capazes de dar aas médiuns uma orientação espírita. Sem um critério mais rigoroso de programação de cursos e uma escolha mais cuidadosa de expositores capazes, cursos e escolas se tornam Prejudiciais. Seria preferível a sua substituição por séries de palestras com sequência didática e posteriores debates a respeito, coordenadas por pessoas habilitadas.


3ª Categoria — Líderes Intelectuais — A Psicologia do Intelectual pode ser definida como um conflito dialético entre as suas aspirações e a realidade. Temos assim uma realidade subjetiva, tecida de anseios e pressupostos, e uma realidade objetiva que a ela se opõe. O conflito psicológico é dialético, um verdadeira diálogo secreto do qual deve resultar a síntese de uma posição intelectual definida e, portanto, depurada dos excessos subjetivos, que vão sempre além do concreto real. Esta é a situação geral dos homens na vida, mas no intelectual ela se agrava e se complica pela influência da imaginação. O intelectual espírita dispõe de maiores recursos para atingir a síntese, graças ao conhecimento doutrinário e das pesquisas científicas dos fenômenos mediúnicos. Esse conhecimento lhe proporciona uma realidade intermediária, que é a da realidade espiritual comprovada e não apenas imaginada. A doutrina lhe oferece os recursos metodológicos para estabelecer a ligação (que podemos chamar de perispirítica) entre o seu mundo interior e o mundo exterior. Só agora as Ciências começam a oferecer essa vantagem aos demais intelectuais. Essa defasagem entre a Ciência Materialista vai desaparecendo na proporção em que esta avança nos rumos daquela. Mas o intelectual espírita já tem a sua posição firmada e pode agir com segurança no terreno intermediário. Não obstante, corre o risco, se não tiver conhecimento e experiência suficientes de tentar conciliações utópicas, levado pela imaginação. Sem o rigoroso critério de Kardec, podem tomar a Nuvem por Juno, ver discos-voadores em cintilações estelares e assim por diante. Por isso, a liderança intelectual espírita só pode ser exercida por intelectuais perfeitamente integrados nos princípios kardecianos. Não se trata de uma forma de sectarismo, pois Kardec não fundou nenhuma seita, mas de uma exigência da própria evolução do Espiritismo, cujas leis somente Kardec definiu até hoje de maneira lógica, verificada e verificável.


Vejamos um exemplo concreto, que poderá esclarecer melhor este problema. Ilustre intelectual, de formação universitária, afirmou numa palestra pública em São Paulo, que o Espiritismo peca por exclusivismo antropológico, só admitindo a existência de espíritos humanos, sem levar em conta os gnomos, as fadas e outros seres espirituais chamados elementares em outras correntes do pensamento espiritualista. Foi advertido pelo espírita que presidia à reunião de que se enganava. De fato, o Espiritismo não trata especificamente dessas idealizações folclóricas, mas considera o processo evolutivo dos seres como um desenvolvimento sequente e progressivo de potencialidades espirituais. Assim, os seres inferiores pertencem ao campo da filogênese ôntica, nas fases antecedentes à humanização. Desde a ameba até o homem a linha da evolução desfila uma sequência espantosa de formas espirituais, que correspondem, na teoria espírita da evolução, à filogênese das teorias científicas, com sua imensa variedade de seres anteriores ao homem. A imaginação levava o orador para os caminhos da fantasia, por falta de conhecimento doutrinário. Outros formularam teorias mediúnicas que vão da pedra até o homem, confundindo a ação do espírito sobre a matéria com a mediunidade propriamente dita, e com isso fundaram escolas confusionistas. Há toda uma literatura do absurdo apresentada como desenvolvimento da doutrina e superação de Kardec. O fato de um intelectual contribuir com suas luzes para a divulgação do Espiritismo e mesmo para o seu progresso é importante, mas sob a condição de primeiro adquirir o necessário conhecimento da doutrina. Pode ser muito interessante falar-se em fadas, gnomos, silfos e ondinas, desde que, com isso, não se queira remeter o Espiritismo ao campo da mitologia e da superstição. A liderança intelectual é indispensável ao Espiritismo. Mas não podemos admitir as divagações intelectualistas na área doutrinária. A Ciência Espírita tem os seus métodos de pesquisa e avaliação de fenômenos, não de fantasia.





O processo cultural, sempre em desenvolvimento, é uma sequência de etapas ou ciclos culturais formando um continuum. Mesmo no estudo das culturas ilhadas da mais alta Antiguidade encontramos sempre os seus liames e conotações. A Cultura Espírita não é uma exceção e se liga a todo o processo. Enganam-se os que desejam adquirir cultura espírita pura. Hoje, mais do que nunca, o Espiritismo, em todos os seus aspectos, está ligado à chamada Cultura Geral. Os métodos culturais de pesquisa, avaliação e interpretação dos fenômenos, de observação e de cogitação filosófica são fundamentalmente os mesmos num campo e no outro, com as especificações necessárias nas áreas especificas. Esse é um dos postulados de Kardec, cuja visão global da Cultura não excluía nenhum setor do Conhecimento. Para se conhecer e compreender o Espiritismo a fundo é indispensável um esforço de atualização cultural, sem o que não seria possível o estabelecimento de ligações entre fatos e conceitos aparentemente diversos. Daí a necessidade de criação e instalação da sonhada Universidade Espírita ou de várias delas, para que a instrução espírita possa atingir as suas verdadeiras dimensões.


A finalidade do Espiritismo não é criar um mundo isolado dentro do mundo, mas integrar-se no mundo para transformá-lo. Os que ontem consideravam isso como apenas um sonho de lunáticos, hoje devem compreender que o sonho está se concretizando no mundo sublunar, não na Lua. É inacreditável o descuido dos espíritas de posses nesse sentido. Todos estão dispostos a fazer gordas doações a instituições assistenciais, mas se mostram avessos a contribuir para a criação de uma Universidade Espírita. Alguns intelectuais chegam mesmo a considerar absurdo esse projeto. O primeiro Congresso da USE [União das Sociedades Espíritas do Estado] criou, graças à luta de alguns contra a oposição da própria diretoria desse movimento, o Instituto Espírita de Educação que até hoje funciona por mercê de alguns abnegados, com pouca possibilidade de desenvolver-se. Os que pensam ganhar o Céu com doações de caridade material, esquecendo a caridade cultural, terão sérias decepções ao passarem para o outro lado. A Educação Espírita, combatida por alguns retrógrados, incapazes de compreender o valor da própria cultura que os acolhe generosamente no mundo, é a mais premente necessidade do movimento espírita, para que não mais se repitam episódios dolorosos como o do planejamento de adulteração de toda a obra de Kardec por pessoas que nem sequer a compreenderam. Esta análise é um esforço no sentido de despertar o nosso meio espírita para os perigos que o ameaçam. Nada mais.




Anexo III




Na batalha contra a adulteração tivemos de usar vários meios de persuasão. Um deles foi a poesia, em duas modalidades: a moderna e a clássica, para atender a diferentes gostos. Os poemas com que encerramos este memorial da adulteração foram impressos em folhetos e distribuídos a todo o Brasil. No primeiro, tentamos colocar o problema do Evangelho em face do mundo, usando a técnica de Cassiano Ricardo. O segundo poema é inspirado em Julio Dantas e Guerra Junqueiro. Nada melhor que o ritmo envolvente do autor de A Velhice do Padre Eterno para se obter uma visão diabólica e ao mesmo tempo humorística do envolvimento de espíritas pelas entidades trevosas. O que pretendemos nesse poema foi mostrar os vários elementos que levaram os adulteradores a tentar a ceia de uma Ave do Paraíso (no caso a Codificação) com os toques líricos de Julio Dantas em A Ceia dos Cardeais. Os resíduos do passado, a saudade dos velhos tempos de poderio eclesiástico a arrogância dos doutores da lei e o atrevimento dos insaciáveis clérigos medievais (caçadores impenitentes de aves paradisíacas) aparecem bem marcados como os elementos inconscientes de que os Espíritos das trevas se serviram para envolverem a turma invigilante. Esses poemas, numa edição popular de 5 mil exemplares, foram distribuídos gratuitamente em todo o país e produziram o efeito desejado. Houve também poemas de Guerra Junqueiro, psicografados por Jorge Rizzini. Chico Xavier permaneceu em sua linha de prudência mediúnica, evitando atritos, mas definindo claramente a sua posição, como já vimos. A posição de Chico é a de um Espírito desencarnado, que deixa aos homens a solução de seus problemas. Orientado por Emmanuel, ele só recebe e divulga mensagens de ordem moral e espiritual. Mas nós, os homens, temos de dar conta das nossas responsabilidades no plano doutrinário. Devemos ressaltar, nesse plano, a posição exemplar da Liga Espírita do Estado de São Paulo, cujo presidente, Messias, fez a mais completa e minuciosa análise da adulteração, em mais de setenta laudas mimeografadas e distribuído os volumes a várias instituições.





O Evangelho é semente. O mundo, o chão.

Jesus, o semeador. O ser é a cova.

Em cada cova o adubo, o coração.

E em cada coração o sentimento

que é sol e chuva e vento.

E a dor que é prova.


O Evangelho é raiz que nos penetra.

E nossa vida é a selva. Cresce a planta

na proporção da seiva que lhe damos.

Se a seiva é escassa, há de minguar a planta.

Quanto mais amamos

mais Fundo o Evangelho nos penetra,

mas se não amamos o Evangelho,

como vamos amar

segundo o Evangelho?


Somos cova no mundo. E cova funda.

Na cova há limo e pedra, bem e mal.

Se bem é bem, mal é mal. Ambos existem

porque o mundo é bom e mau ao mesmo tempo.

Como pode o Evangelho penetrar

na cova que é do mundo

para o mundo mudar?

Negando o bem? Negando o mal?

Pode o peixe do mar viver sem mar?

Há ódio e amor no mundo.

Covas boas e covas más.

Há amigos e inimigos, verdade e mentira

piedade e ira.

O mal melhora e se transforma em bem

junto do bem.


Se tudo é bem, porque Jesus semeou?

Porque a semente na cova e a raiz que cresce

e mergulha fundo na prova?

O Evangelho é luz do céu nas covas do mundo.

Luz no fundo.

Há covas boas, covas regulares ou menos boas

e covas más

que exigem pás.


O mundo é. O mundo existe. É objeto.

O Evangelho será. Existirá. É projeto.

O lavrador tem a terra e a semente

e na semente a safra.

A terra e a semente existem, a safra existirá.

E se não existir, o que será?

Mau lavrador é o que não põe a semente na cova.

Tolo é o que pensa que a semente é safra.

Expiação e prova mudam o mau em bom.

Ou não há prova?

E ninguém expia?

Só Jesus mudou o mundo com palavras Só.

Mas Jesus sabia que há palavras e palavras.

E Kardec também.

Por isso o Evangelho é um só. Só.

Feito com palavras exatas.

Mudar palavras não muda o mundo. E mudar

palavras de Jesus e de Kardec é trapacear.

Que a trapaça não se faça

onde houver quem quer melhorar.

Há Espíritos mudos, Espíritos mundos e Espíritos imundos,

Espíritos mudos são menos maus

e menos bons.

Estão na prova e na expiação.

Fermento bom no mau coração.

Há bons e maus.

E maus em trans(i)são.

Espíritos mundos são só mundo

(do mundo)

errantes fátuos entre o bom e o mau.

Bom por conveniência e mau por mal.

(Quem não conhece a escala espírita?)

Espíritos imundos são antimundo

mau por mal.

Há o mundo e o imundo. Quem disse foi Jesus,

que não era treva, mas luz

e também mais luz.

(Quem contradiz Jesus tem mais luz?)

E a cruz?

Não foi boa e má ao mesmo tempo

em sentidos opostos?

Ou foi menos boa?

Quem trapaceia com Jesus e Kardec

trapaceia

faz trapaça e ceia.

Vamos à ceia,

eia!


(Nota para os farautos — Este poema é cassiânico, inspirado em Cassiano Ricardo. Poema sem versos, com linossignos. Para entender é preciso pensar).





I


Kardec, ante a visão, orou a Deus

suplicando-lhe que enviasse ao mundo,

após o seu trespasse, alguns hebreus

do tempo de Jesus: Pedro, Mateus…


Ou se possível o valente Paulo

que rompera com tudo e até com Saulo.


Sofria, em febre, o grande fundador,

ao ver na Terra os seguidores seus,

reunidos como antigos fariseus

para um festim de trágico esplendor.


Kardec olhou o céu em busca de Jesus.

Por toda parte a treva. O céu não tinha luz.


— Ó Deus clemente, ó Deus de luz e amor,

porque me abandonais na hora da agonia?

Mas ao forte clamor a noite respondia

com gritos de urubus nos abismos do horror.


A escuridão do céu, tenebroso sudário,

lembrava o instante atroz em que o último grito

de Jesus abalou a terra e, do infinito,

a treva despenhou-se envolvendo o Calvário.


Era a hora final do drama da paixão,

em que se consumava a trama da traição.


II


Eis o quadro de horror que Kardec antevia,

o coração opresso, a mente em agonia:


Em torno a vasta mesa, em sala iluminada,

eram quarenta, ao todo, os rígidos perfis,

cada qual mais feroz, na posição de juiz,

olhar duro, cruel, e consciência togada.


Julgariam Kardec, e na ausência do réu,

por ele respondia a Codificação.

A sentença já pronta, isenta de paixão,

era impassível, fria e escura como o céu.


Mas de repente a mesa encheu-se de talheres

Passara o julgamento. O tribunal, agora

dispunha-se a ceiar. Era avançada a hora,

e a sala se enchia de gentis mulheres.


O tribunal virava em amplo restaurante.

Os juízes comensais sorriam satisfeitos.

Garçonetes, garçons, graçolas e trejeitos,

uma ceia de arromba, alegria esfusiante.


Mas Kardec enxergava, atrás de cada juiz,

a carranca feroz de um regente do Umbral,

esquálido, a esperar o momento fatal

em que se serviria a vítima infeliz.


Sobre a mesa, a final, foi posta a refeição:

esquartejada e frita — a Codificação.


III


A algazarra estrondou. Alegres comensais

batiam os pés no chão, os talheres nos pratos,

contando à vizinhança boquiaberta os fatos

da caçada infernal, em termos especiais.


— Uma ave bem nutrida, a Codificação,

(explicava solene, um elegante juiz)

mas já velha, cansada, ave menos feliz,

embora conservasse um porte de faisão.


Foi criada em jardins da encantadora França,

tratada por Kardec a rações de verdade,

ensinada a cantar com muita suavidade

em trinos de amor puro e notas de esperança.


Mas Kardec lhe deu (também já estava velho)

talvez por caduquice, uns grãos de falsidade

que espertalhões judeus meteram no Evangelho.


Forçoso era imolá-la a bem da santidade

do nosso bom Jesus, cujo verbo divino

jamais se maculara em palavrão mofino

e nunca tolerara expressões de maldade.


Depois, como sabeis, havia uma sentença

unânime e viril do nosso tribunal

que mandava expungir os resíduos do mal

desse corpo da mais encantadora crença.


Um só tiro bastou, em pleno coração,

para que ela tombasse inteira aos nossos pés.

No sangue que jorrou, a ira de Moisés

foi lançada num jato e coagulou no chão.


Que coágulos, meu Deus! Brilhava o sangue puro

como o sangue de Abel traído por Caim!

Seus olhos de condor lançavam sobre mim

anátema e perdão em nome do futuro.


Pousou sobre ela um torvo, horrendo escaravelho.

Crocitou na distância um como moribundo.

Senti-me um filisteu a estrangular o mundo.

O coração da ave era o próprio Evangelho!


Foi assim que a cacei por ordem da Justiça.

E ao disso me lembrar peguei-a pelos pés,

aliviei a consciência evocando Moisés

e rápido voltei à cotidiana liça.


Às vezes a consciência é incômodo troféu

que vira tribunal e nos converte em réu.


IV


A Codificação esquartejada e frita

exalava esse odor que ao estômago excita.

Velhos cardeais de outrora e bispos reencarnados,

trazendo inda por dentro as vestes purpuradas

mantinham cautamente as mãos entrecruzadas

à espreita do manjar, os olhos espichados.


— Este é um raro petisco, um albatroz glorioso!

(exclamava um bispinho esquálido e faminto)

Com dois copos ou três de um belo vinho tinto

dá-nos o que nos falta, o êxtase do gozo!


Um fradeco rotundo, envolto em seu burel,

que de bispo fingia, iludindo os videntes,

agitava-se inquieto e dizia entre dentes:

— Ave do Paraíso, um presente do céu!


— Passe-me o coração, esse é o melhor pedaço!

(gritava antigo frei de convento da Espanha

que perdera o burel mas não perdera a manha)

Por causa dele fui internado no Espaço!


Velho cardeal francês, agora doutorado,

reclamava a cabeça: “É uma delícia o miolo!

É nele que se pensa e nele se arma o rolo

que conduz ao garrote o padre rebelado!”


— “O miolo — continuava — essa invenção divina,

é fonte de heresia e ninho de pecados,

por isso tem sabor de leitos setinados,

de promessas de amor em boca fescenina.”


— Que horror! logo exclamou ex-bispo moralista —

Já de outra encarnação detesto a leviandade,

mas agora vivendo a era da verdade

permito-me provar algum sabor de artista.


— Cuidado! — advertiu um cardeal barrigudo —

é o que sai pela boca o que nos contamina!

Esta ave morreu, embora peregrina.

por mesclar palavrões no seu trinado agudo.


— Palavrões, palavrões! — disse um bispinho irado —

É hoje o que se ouve até nos Evangelhos!

Palavrões juvenis, palavrões entre os velhos!

E há quem chame Kardec — o bom senso encarnado!


Tínhamos de expungir de Kardec esse horror!

Inimigos, odiar e até Espíritos maus!

Retirar do Evangelho esses feios calhaus

é dever de cristãos, é tarefa de amor!


V


A Codificação sumia sobre a mesa.

Primeiro o Evangelho, o próprio coração

da obra de Kardec, o livro-religião

que nos religa a Deus com ternura e firmeza.


Seu texto é suave e doce, uma carne macia.

mas as fibras de luz que estruturam-lhe a forma

são duras como o aço e nelas se conforma

a verdade integral em firmeza e energia.


Depois o livro-base, essa pedra angular

que o Mundo Espiritual implantou no planeta,

o livro da razão, mais que o Sol, um Cometa

que arrasta em sua cauda a terra, o céu e o mar.


E depois o tratado da mediunidade,

livro-guia da nova comunicação,

nascido da pesquisa e da revelação,

o Código LM em que brota a Verdade.


E após, num desafio aos segredos do Eterno,

rasgando véu da sombra e os mitos da mentira,

A Gênese que espanca as ameaças da ira

e esse golpe de luz: o livro O Céu e o Inferno.


Duas asas de fogo abertas no infinito,

rompendo a escuridão do Cosmos e da Morte,

numa visão de fé da nossa própria sorte

que afugenta da mente as causas de conflito.


Era essa a ave divina, a encarnação da luz,

que as trevas devoravam em nome de Jesus.


VI


Feita a consumação, o Sínodo dos Bispos

dissolveu-se ali mesmo e somente os Cardeais,

que haviam preparado uns pitéus divinais,

ficaram no recinto a lambiscar petiscos.


— Libertos da canalha, agora vamos nós

participar em paz da ceia dos cardeais,

saboreando a final os pratos especiais!

(Isso disse o mais velho adocicando a voz).


— O primeiro pitéu, expôs o maioral!,

é que o mal se acabou entre os filhos de Deus.

Alguns são menos bons, pobrezinhos, plebeus,

e assim vão residir na Favela do Umbral.


Isso é de grande alcance e os bispos não manjaram.

Já livres de suspeita, agiremos sem peias,

como aranhas fiando em paz as nossas teias

em que as moscas humanas sempre se enredaram.


— Nada como a experiência aprimora a malícia!

(disse esfregando as mãos o cardeal menos velho)

Jesus deu bom exemplo através do Evangelho

e os devemos seguir na ação cardinalícia.


— A ação cardinalícia! É exato, meu amigo!

(exclamou Dom Miguel, o ex-cardeal de Espanha)

Que seria de nós, não fosse a nossa manha,

com essa ave a voar e nos pôr em perigo!


Esses bispos que nunca alcançarão o céu

(observou piscando o velhote Chardon)

nunca vão saborear um prato sem garçom

servido por um anjo em forma de pitéu!


Que alegria no olhar! Saíram tão contentes!

Pensam que a ave-mãe só foi purificada.

Mataram-na sem dó. Comeram-na à fartada.

E ainda agora estão a palitar os dentes.


— São crianças, notou o cardeal português.

Deviam retornar, ainda nesta existência

como bispos de novo e aumentar a experiência.

Ainda vivem a sonhar com o “Era uma vez…”


— Outro belo pitéu é a linguagem fingida

(exclamou sorridente o cardeal de Paris)

que não diz sem dizer e nem dizendo diz.

Quanto têm de aprender esses bispos na vida!


— Quando moço eu também me enganava com tudo

(murmurou a cismar o cardeal italiano)

uma jovem fatal, um sonho, o Vaticano…

Depois envelheci, prefiro ficar mudo.


— Esses bispos, porém não são jovens assim.

Alguns deles já são bem passados em anos.

E deviam saber que sempre, em nossos planos,

há lugar para o não e lugar para o sim.


— Dom Fabrizzio! gritou o cardeal mais antigo.

É hora de calar! É hora da mudez!

Não queira revelar os truques do xadrez.

Não há maus. Somos bons. Mas há sempre um perigo!


Mas apesar do aviso o toque da saudade

em todos despertara a sensibilidade.


VII


Cada bispo ao sair levou a tiracolo

o verdugo umbralino a que estava amarrado.

Os cardeais, ao revés, traziam escravizado

um verdugo servil rastejando no solo.


À evocação fatal da antiga encarnação,

os olhos dos cardeais lacrimejavam tanto

que os verdugos, em pé, se entregaram ao pranto…

Gritavam com voz grossa em tom de cantochão.


Envolvidos no sonho, errando na distância,

os cardeais não ouviam os lamentos do Umbral.

Continuaram a cismar lembrando cada qual

a mocidade heróica e alegrias da infância.


— Ah, disse o mais antigo, de alva cabeleira,

que saudade da Espanha, essa terra cristã,

onde coisas como esta ou encrencas do Islã,

resolvíamos sempre ateando uma fogueira!


Nada nos impedia agirmos à vontade.

Nosso amor pelo Cristo impunha-se viril

no fogo salvador ou no garrote vil.

Vivíamos na lei da pura Cristandade!


Ó, heroica Madri de juízes implacáveis!

Barcelona queimou a Codificação.

A andaluza Sevilha erguia o seu brasão

em noitadas de ferro e sangue memoráveis!


Silenciou o cardeal, os olhos marejados.

e um suspiro escapou dos seus lábios magoados.

Dom Fabrizzio exclamou: Que saudades da Itália

que vigoroso amor o nosso por Jesus!

Foi Roma que inventou o suplício da cruz

para glorificá-lo em sudário e mortalha.


A bela catedral de São Pedro e São Paulo

foi sempre o meu refúgio em tempos que lá vão!

De um lado o velho Pedro e de outro o jovem Saulo

proclamam o poder sem par da conversão.


Quanto amei nessa terra em puríssimo ardor.

Vigilante que eu era em todos os processos

meti no calabouço alguns padres possessos

e outros mandei queimar. Mas tudo por amor!

Suspirou o cardeal e caiu no mutismo,

nostálgico, a lembrar o antigo Cristianismo.


O terceiro evocou, tristonho, a velha França

dos seus tempos de herói nas ruas de Paris,

quando moço arriscara a vida por um triz

na mais gloriosa noite, ordenando a matança.


Oh, noite imemorial de São Bartolomeu!

Uma jovem que amei, donzela suave e pura,

fi-la tombar à espada numa esquina escura.

Entreguei-a a Jesus. Era infiel: morreu.


Mandei rezar por ela uma missa às ocultas,

Comprei flores e enviei à sua sepultura.

Era uma encantadora e doce criatura.

Não podia ficar, como outras, insepulta.


Soluçou o cardeal. Tinha os olhos em brasa.

Levou a mão ao peito: Essa emoção me arrasa!

E temia morrer ao voltar para casa.


O quarto estremeceu: Ah, como é diferente!

Sim, como é diferente o amor em Portugal!

Nosso amor por Jesus, em Lisboa ou no Porto,

não era assim violento, assim fero e brutal.

Dávamos ao herege uma cela somente,

em que ele, arrependido, acabaria morto

pela própria exaustão, de modo natural.


Como era bom, assim poupá-lo das torturas,

deixá-lo sossegado a procurar o Cristo

no cilício comum das próprias amarguras.

Caía geralmente em transe nunca visto,

logo se inteiriçava e os anjos o atendiam.

Morria suavemente e buscava as alturas.


Nas regiões infernais fui sempre socorrido

por almas divinais luminosas e puras,

que me diziam sempre haver-se redimido

no silêncio ideal das celas sem torturas.

Por isso aprovo agora expungir-se a maldade

das sublimes lições do Meigo Nazareno.


Não vivemos no inferno, embora os palavrões,

os crimes a matança e o horror dos assaltos

sejam hoje comuns neste mundo terreno.

Talvez chamando bons a todos os vilões,

tirando ao dicionário os termos menos altos,

consigamos fazer da Terra um paraíso,

um mundo menos mau, com gente de bom siso.

Embora, na verdade, eu creia que isso cabe

ao sublime Jesus no Dia de Juízo.

Mas Deus é lá quem sabe!


Mergulhou-se o cardeal, perplexo, em mudez.

A verdade brilhava em límpida nudez.


VIII


Kardec, tristemente, enviou a Deus

uma sentida prece de perdão.

Compreendia que o homem, seu irmão,

não superara a lei dos fariseus.


Heranças milenares o impediam

de compreender a luz do Espiritismo.

O coração do homem é um abismo

em que as sombras do mal se debatiam.


Lembrou-se da batalha sem quartel

que enfrentara em Paris para legar

à humanidade um código sem par

que ela transforma em Torre de Babel.


Quanto sofrera parecia inútil

ante a visão que ali o assombrara.

A Codificação se revelara

grave demais para esse homem fútil.


Que mais restava? Só pedir perdão

para si mesmo e para todos quantos

julgando-se mais santos do que os santos

destruíam-lhe a Codificação.


Kardec olhou o céu em busca de Jesus.

Por toda parte a treva. O céu não tinha luz.