Preces de menino, na solidão — Reze! — Não foi você quem escreveu isto — Alucinações — Perasso, o feiticeiro — Doutrinando o Espírito.
PEDRO LEOPOLDO, 24 — (Do enviado especial do GLOBO, Clementino de Alencar) — Poucas horas nos separam do momento inicial da sessão anunciada para hoje à noite, e à qual compareceremos.
Aliás, ao que soubemos de manhã a reunião terá também a presença de elementos de destaque de Pedro Leopoldo, médicos, advogados, magistrados, funcionários, que já não escondem seu interesse e curiosidade pelo caso desse caixeirinho simplório e humilde que a versão mais generalizada e aceita na região dá como um confidente fiel de mortos ilustres.
Ao iniciarmos esta reportagem, quisemos fazê-lo como um simples observador anônimo e curioso que se lançasse, sem “parti pris”, num campo de revelações sensacionais, limitado, de um lado, pela desconfiança de alguns, e aberto, de outro, pela crença de muitos, para o infinito de todas as suposições que se espraiam sob a brumas do sobrenatural.
Por isso mesmo adotamos o método de ir grafando observações e impressões à medida que as íamos colhendo, no correr das horas e das situações para que nada perdessem elas em seu sabor original, nem ganhassem ou sofressem em sua intensidade, ante as surpresas ou decepções que porventura nos reservassem os fatos ulteriores.
Dentro desse método, vamos aqui expor, antes da sessão de logo à noite, o que nos contou , ao relembrar para a reportagem os fatos, muitos deles bastante impressionantes, que o encaminharam para o Espiritismo e revelaram suas faculdades mediúnicas.
Algumas dessas passagens nos foram confirmadas por pessoas idôneas da localidade, entre as quais o negociante Armando Belisário, e o pai de Chico Xavier, João Cândido, um dos raros vivos do grupo de operários com que foi inaugurada, há muitíssimos anos, a fábrica de tecidos daqui.
João Cândido e sua mulher, já falecida, criaram quinze filhos, quase todos ainda vivos e alguns ainda de menor idade. Hoje, o velho operário está aposentado e reside em Matozinhos, em companhia de alguns de seus descendentes. Os demais membros de sua família, exceto uma filha casada, moram em Pedro Leopoldo. São todos gente pobre, honesta e trabalhadora.
Agora, passemos à história de Chico Xavier, que grafaremos com todas as impressões colhidas, quando o ouvíamos, ontem à noite, e que ainda perduram em nós.
Quando menino, sua mãe, cuidando-lhe do corpo, embalava-lhe também a alma na fé católica em que vivera e morrera.
Assim, aos oito anos, Chico Xavier conhecia rezas e adorava santos. Grande era sua devoção, uma devoção de criança, nem sempre isenta de absurdos e de sustos. Atirar tostões ao mato, “para os santos”, era um dos seus gestos mais comuns de menino devoto. Outro hábito seu era refugiar-se à sombra das árvores e ali dizer baixinho, na solidão, as preces que aprendera dos lábios maternos. O interessante era que tal ato não resultava de intenção sua. Entregava-se a ele como quem obedece a uma força inexplicável. E, às vezes, quando rezava, no silêncio da mata, tinha a impressão de ouvir passos em redor, quebrando as folhas secas. Nada via, porém, nem se assustava. O que o assustava era algo muito estranho que sentia dentro de si, na confusão de suas ideias tenras. E era esse secreto pavor que o levava à constância fervorosa daquelas preces.
Assim, na mata, tivera ele o seu primeiro templo e as suas primeiras revelações, à maneira da predestinada .
Os anos da meninice passam. Então, ele começa a sentir com mais precisão, já sabe exprimir melhor aquele “algo de muito estranho” que havia dentro de si: tinha, às vezes, a impressão de que era outra pessoa muito diferente de si mesmo, que vivia em outros tempos, lembrava-se de coisas, fatos ocorridos com ele mas que, por mais que tentasse, não conseguia localizar na sua vida.
— “Lembranças que não eram da minha existência atual…”
Essa impressão o atormentava, esse mistério íntimo assustava-o. Corria à igreja.
O padre dizia-lhe: — Reza!
Ele rezava.
Mas o tormento não cessava. Uma vez, aos 17 anos, acompanhou a famosa procissão de Matozinhos e pedia à Virgem:
— Curai-me! Minha cabeça não parece minha.
E repetia as preces à sua mãe morta.
Por esse tempo, frequentava o grupo escolar de Pedro Leopoldo.
Uma tarde, sentado à beira do ribeirão que banha a cidade, veio a inspiração de uma pequena página descritiva: “O ribeirão, à tarde”.
Composta a página, exibiu-a, no dia seguinte, à professora. Esta leu-a e observou-lhe:
— Isto é de você? Não; não foi você quem escreveu isto.
Fê-lo então sentar e disse-lhe:
— Bem; escreva-me mais uma página.
— Sobre o quê?
— O ribeirão, à tarde…
Ele empenhou-se na produção, mas — apesar do tema já lhe ter merecido bela descrição — nada mais de bonito pôde escrever.
Passou-se algum tempo. Fosse por que fosse, ele se sentiu mais aliviado.
Logo a seguir, porém, ocorreu algo de terrível.
Sua irmã, moça sadia, trabalhava na fábrica de tecidos.
Certa manhã, às 9 horas exatamente, pôs-se ela a dar, em plena oficina, gritos medonhos.
Socorreram-na. Chamaram o médico. A moça, porém, escapou-se das mãos que a amparavam e correu para a rua como doida. Desceu até a ponte e quis atirar-se ao ribeirão, sendo agarrada a tempo, por vários operários.
Depois de indicar-nos pessoas que poderiam dar testemunho do fato, Chico Xavier prossegue no relato de episódios impressionantes.
Agarrada a tempo, na ponte, a moça teve um desmaio e foi conduzida para casa. Voltou a si, pouco depois, mas com estranha expressão no olhar e renovando, de quando em quando, os gritos terríveis.
De novo o médico.
Então, em casa, ouviram, com assombro, que a moça dizia:
— Aí vem o médico. Vai dar uma injeção nela. Mas isso não valerá de nada.
Dito e feito. Pouco depois de se retirar o médico, renovou-se a crise.
O médico é ainda uma vez chamado e a moça, cessando com os gritos, torna a observar:
— Aí vem o médico. Outra injeção vão dar nela. Mas não adianta.
E o resultado foi o mesmo da outra vez.
Os parentes estão alarmados. Desistem do médico e chamam o Perasso. Este era, naquele tempo, o feiticeiro da região. O pai da moça, João Cândido, foi procurá-lo. Nesse mesmo tempo a enferma dizia, em casa, em tom irado:
— Vi o pai dela falando com o Perasso.
E quando o Perasso, atendendo ao chamado, pôs o pé na porta da casa, a moça, que adormecera por instantes, acordou, gritando:
— Eh! Perasso, você vem aí! Mas não adianta nada! Comigo é peta!
Perasso não se perturba. Ele já conhece aqueles mistérios. E, enquanto ela reage:
— Ele começou a doutrinar o mau Espírito que estava nela — diz-nos Chico Xavier.
As horas foram passando. E Perasso sempre “doutrinando” o Espírito.
Então, a moça melhorou um pouco.
Na esperança de cura completa, os parentes afastaram-na do lugar. Levaram-na para pequena chácara de conhecidos, no Maquiné [v. ].
O outro irmão, José Cândido, fazia-lhe companhia, ali. O tempo foi passando sem novidade. Um dia, porém, a moça com uma laranja na mão, apanhou uma faca e partiu a fruta pelo meio…
— Queres a metade? — perguntou ela ao irmão.
Este aceitou.
Então ela atirou a fruta no chão e caiu em crise análoga à já descrita.
Nova cura foi então encetada, ainda por Perasso e de novo a moça ficou boa.
Foi por essa época, e na expectativa de nova crise da moça, que José e Chico Xavier começaram a frequentar algumas reuniões espíritas que se realizavam na região.
Assim, iniciados, acabaram realizando sessões em sua casa.
A irmã não teve mais crise. Casou.
Certa vez, numa das sessões, Chico Xavier caiu em transe. Sua mão traçou sobre o papel uma página referente aos Evangelhos.
Sentiu nessa ocasião o cérebro entorpecido. Mais tarde, a impressão foi outra. Parecia-lhe que uma corrente elétrica lhe passava pela cabeça e esta lhe doía muito, não raro.
Só em 1931 começou a psicografar versos.
Quando Chico Xavier concluiu a narração desses fatos fizemos-lhe algumas perguntas.
Numa terra onde tanto ouvíamos falar de fantasmas, pareceu-nos muito natural que indagássemos se ele já tivera ocasião de ver algum daqueles fugitivos das sombras.
Não, Chico Xavier nunca viu nada. Assim, o médium é, na região, um dos poucos que ainda não viu fantasmas…
Indagamos, também, sobre seus sonhos.
Ele tem tido alguns bem interessantes e mais ou menos relativos àquelas lembranças a que ele nos fizera referências em sua narrativa, de fatos ocorridos em outros tempos, em eras remotas, “lembranças que não eram da sua existência presente.”
Pedimos-lhe a citação de algumas dessas lembranças e sonhos relacionados.
Então, à margem da história propriamente do médium, ouvimos duas outras curiosas narrativas. Numa delas aparece um famoso Circo Guérin que, segundo a narração, deve ter existido na França, há uns dois séculos.
Na outra, em que julgamos encontrar reminiscências dos tempos feudais, aparece o nome dos Brissac, a velha estirpe que tantos marechais deu à França.
Trata-se de José Hermínio Perácio, seareiro espírita que, naquela época, residia na Fazenda de Maquiné, município de Curvelo, MG. Ele e sua esposa, D. Carmen Pena Perácio, tornaram-se dedicados companheiros de Chico Xavier, sendo cofundadores do Centro Espírita Luiz Gonzaga de Pedro Leopoldo. (, cap. 18, Elias Barbosa, IDE.) (Nota do Org.) [v. ]