Gastão Penalva, o brilhante ourives do pensamento no imenso filão de ouro inculto das nossas letras, acenou-me da sua tenda de trabalho, enviando-me, pelas colunas de “Jornal do Brasil” de 4 deste mês, uma carta carinhosa e comovedora, em cujas linhas tristes deixa transparecer o seu desalento, em face dos espetáculos dolorosos de ruínas e de sangue, que ressurgem no mundo.
“A Humberto de Campos, onde estiver.” [v. ]
A epígrafe e o endereço de sua missiva afetuosa tocaram-me as fibras mais sensíveis do coração, por demonstrarem a sua certeza na minha sobrevivência.
Sim, meu irmão, eu recebi a tua palavra dolorida e cariciosa, evocando os dias escuros da Terra, sentindo nos olhos redivivos o rocio das lágrimas benfeitoras.
A tua lembrança é uma ave de melancolia, trazendo-me ao coração a suave mensagem de um afeto que não se confundiu nas esperanças mortas.
De todos os apelos por mim recebidos do mundo, após a travessia das águas enigmáticas do rio da morte, o teu foi talvez o mais profundo e o mais agradável à minhalma. Não me procuraste, obedecendo ao convencionalismo social, junto à lápide singela que me guarda os despojos entre os túmulos suntuosos do São João Batista, onde se recolhem os ossos da aristocracia do ouro da cidade maravilhosa; não me buscaste como os Tomés da fenomenologia espiritista, perguntando o número exato dos soldados comandados por Aníbal na segunda guerra púnica, na falsa suposição de que a morte representa para nós outros um banho prodigioso de sabedoria, e nem me pediste o milagre da felicidade sobre a face da Terra.
Caminhando comigo nas avenidas do pensamento, através das humildes edificações dos meus livros, procuraste a minhalma nas mais afetuosas recordações.
Marinheiro valoroso do oceano das ideias, contemplaste o céu, pesado de nuvens tempestuosas, lembrando o companheiro que desapareceu no dorso da onda traiçoeira, no misterioso silêncio da noite, para ressurgir na alvorada de uma vida melhor.
E, agradecendo a dádiva de Jesus, que me permitiu acudir à tua recordação amiga, estive espiritualmente contigo, antes que molhasses a pena no coração amargurado para me endereçar a tua carta carinhosa. Ouvindo as tuas considerações íntimas, quando manuseavas a bíblia de angústia da minha vida, desejei intensamente imitar o gesto famoso de Ulisses, no palácio de Alcino, quando o canto de Demódoco o fez chorar com a descrição de seus sofrimentos, repassada de louvores ao heroísmo dos companheiros mortos.
Presenciando os movimentos homicidas, que se desenrolam na Europa, sentes o frio mortal de todos os corações bem formados que observam, estarrecidos, o crepúsculo desta civilização que se despenha nos desfiladeiros dos milênios, como mais um fruto apodrecido.
Por toda parte é morticínio e destruição. A força faz sentir o peso terrível de seus postulados de violência, numa de suas mais singulares alternativas na história do direito.
A cultura intelectual experimenta o insulto de todas as energias das sendas tenebrosas.
Dizia Renan que “o cérebro queimado pelo raciocínio tem sede de simplicidade, como o deserto tem sede de água pura”. E nós observamos que a ciência do mundo, nas suas explosões de inconsciência, se reduz, agora, a um punhado de escombros.
O antigo continente, fonte desta civilização que se perde, à mingua da água pura da fé, no deserto das ambições desmedidas, dá a ideia de um novo inferno, onde o Diabo desse a beber aos espíritos o vinho sinistro da ruína e da morte.
Meditando nas bocas de fogo, assestadas para as mulheres e criancinhas indefesas, perguntas-me se cheguei a ouvir falar, “do tempo em que vivia como mortal, em guerras sem declaração, invasões sem anúncio, conquistas sem ideal”, no desdobramento das ações malignas, levadas a efeito pela nossa geração, condenada no berço pelas suas inquietações desesperadas.
Sim, meu amigo, a morte não me ocultou a porta da análise relativamente aos nossos panoramas tristes e sombrios.
O repouso absoluto no túmulo é a mais enganosa de todas as imagens que o homem inventou para a sua imaginação atormentada.
Atravessada a fronteira de cinzas do sepulcro, sentimo-nos dentro do santuário das mais profundas revelações.
A luz suave e tranquila da verdade confunde-nos todos os enganos.
Aí na Terra prevalecem as convenções sociais, os imperativos de ordem econômica e a claridade falsa do artificialismo das gloríolas mundanas. Aqui, porém, é a revelação da espiritualidade pura.
O mundo esqueceu a fonte preciosa da fé, submergindo-se no abismo dos raciocínios mais sombrios.
A atualidade é um campo de batalha onde se glorificam todos os símbolos da força bruta e onde todas as florações do sentimento estão condenadas ao extermínio.
Contrariamente às tuas suposições, vemos, igualmente, os quadros angustiosos e sinistros.
Sentimos as preces aflitas dos corações maternos, dilacerados nas suas mais cariciosas esperanças. Contemplamos essa juventude envenenada, que caminha para a morte, glorificando a imagem infeliz de D’Annunzio, quando preconizava, para os moços da época, a ponta da baioneta, como o primeiro e último amor.
Mais que isso, podemos observar, de perto, as agonias silenciosas dos lares abandonados e desprotegidos, que balançam na árvore da vida, arrancados pelas mãos impiedosas dos nossos bárbaros que ameaçam as bases cristãs, de que a nossa civilização fugiu, um dia, levada pelo egoísmo dos mais fortes.
Ante as sombras dolorosas que invadem o mundo velho, sinto contigo o frio do crepúsculo, preludiando a noite de tempestade, cheia de amarguras e de assombros.
Dentro, porém, de nossa angústia, somos obrigados a recordar que a nossa geração de perversidade e descrença está condenada, por si mesma, aos mais dolorosos movimentos de destruição.
O mundo cogitou de ciência, mas esqueceu a consciência, ilustrou o cérebro e olvidou o coração, organizou tratados de teologia e de política, fazendo tábua rasa de todos os valores da sinceridade e da confiança.
É por isso que vemos o polvo da guerra envolver os corações desesperados, em seus tentáculos monstruosos, enquanto há gigantes da nova barbaria proferindo discursos bélicos, em nome de Deus, e sacerdotes abençoando, em nome do Céu, as armas da carnificina.
Os sociólogos mais atilados não conseguem estabelecer a extensão dos fenômenos dolorosos que invadem os departamentos do mundo.
A embriaguez de ruína mobiliza os furacões destruidores das novas tiranias sobre a fronte dos homens, e nós acompanharemos a torrente das dores com a nossas lágrimas, porque fizemos jus a essas agonias amarguradas e sinistras, em virtude do nosso esquecimento da lei do amor, no passado espiritual.
A hora que passa é um rosário de soluços apocalípticos, porque merecemos as mais tristes provações coletivas, dentro das nossas características de espíritos ingratos, pois as angústias humanas não ocorrem à revelia d’Aquele que acendeu a luz da manjedoura e do calvário, clarificando os séculos terrestres.
Das culminâncias espirituais, Jesus contempla o seu rebanho de ovelhas tresmalhadas e segue o curso dos acontecimentos do mundo, com a mesma divina melancolia que assinalou a sua passagem sobre as urzes da Terra.
Enevoados de lágrimas sublimes, seus olhos contemplam os canhões e os prostíbulos da guerra, os gabinetes do despotismo e da ambição, os hospitais de sangue entre cadáveres insepultos e, observando a extensão de nossas misérias, exclama como Jeremias: — Oh! Jerusalém!… Jerusalém!…
E nós, operários obscuros do Plano Espiritual buscamos disseminar a nossa consolação, junto aos que sucumbem ou fraquejam.
O Evangelho é a nossa bússola, e não nos detemos para a lamentação, porque, hoje, meu amigo, eu sei orar, de novo, juntando as mãos em rogativa, como no tempo da infância em Parnaíba, quando a simplicidade infantil me enfeitava o coração.
Aqui, oramos, trabalhamos e esperamos, porque sabemos que Jesus é o fundamento eterno da Verdade e que um dia, como Príncipe da Paz, instalará sobre a Terra dos lobos o redil de suas ovelhas abençoadas, e mansas.
Nessa era nova, vê-Lo-emos outra vez, nos seus ensinos redivivos, espalhando a esperança e a fé, confundindo quantos mentiram à Humanidade em seu nome.
Antes, porém, que o novo sol resplenda nos horizontes do orbe, seremos reunidos no Plano Espiritual para sentir as vibrações suaves do seu amor infinito.
Nesse dia, meu irmão, certamente o Senhor fará descer as suas bênçãos compassivas sobre o teu coração generoso e fraterno. Mensageiros de piedade e de luz hão-de esperar teu Espírito carinhoso, no limiar do sepulcro e, contemplando a claridade imortal da vida verdadeira, ouvirás uma voz, terna e carinhosa, que murmurará aos teus ouvidos:
— “Gastão Penalva, sê bem-vindo ao reino da paz, tu que choraste com as viúvas e com os órfãos, sonhando a concórdia no caminho dos homens!… Retempera as tuas energias, porque o trabalho não findou na estrada interminável da Vida. Sob as bênçãos de Deus, lutarás pela nova redenção, ao longo do Infinito!… Poderás renovar as tuas aspirações, dilatando os teus esforços, porque o salário do bom trabalhador está reservado nos Céus aos operários sinceros e devotados de todas as crenças que iluminam a noite dos corações atormentados do planeta terrestre!…”
Então, meu amigo, o orvalho brando das lágrimas lavará todas as recordações penosas dos dias de incompreensão e de amargura que viveste no mundo, e uma nova luz balsamizará o teu íntimo, onde florescerão os lírios perfumados do amor e da divina esperança.
(Recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em 6 de Outubro de 1939)
Aníbal — Um dos maiores generais cartagineses (247 antes da era cristã), inimigo dos romanos — que muito combateu e afinal dominou. São chamadas púnicas as três guerras havidas entre cartagineses e romanos, nome que era o da língua (púnica) falada por aqueles. Aníbal, depois de coberto de glórias e homenagens em sua pátria, teve alternativas, e chegou, por traições, a correr risco de ser entregue a inimigos. Para evitar que tal sucedesse, envenenou-se, já sexagenário.
Alcino — Rei dos Feacianos, povo fabuloso mencionado na Odisseia, de Homero, o velho poeta grego. No palácio desse rei foi que Ulisses, o rei legendário, teve acolhida, quando regressou de Troia. A Odisseia, que tem em Ulisses a sua figura central, é rica em detalhes sobre o caso aludido.