Depois da grande batalha de Tsushima, um dos grandes generais japoneses concitava os mortos a se levantarem, de modo a sustentar as energias exauridas dos camaradas agonizantes. E eu compareço aqui, como uma sombra, para dizer ao formoso coração de Agrippino Grieco que me encontro de pé. É verdade que, depois de longa ausência, não nos encontramos nas nossas tertúlias literárias do Rio de Janeiro. Nem nos achamos num local tão famoso como a Acrópole, onde a deusa de Atenas distribuía as suas bênçãos entre os sábios. Mas há em nossas almas essa doce alegria de velhos irmãos que se reconhecem pelas afinidades santificantes do Espírito.
É certo que os seus olhos mortais não me veem. Todavia eu recorro ainda aos símbolos mitológicos para justificar a minha presença nesta casa de simplicidade e de amor cristão. Suponhamos que me encontro por detrás do véu de Ísis, como as forças que se ocultam aos olhos dos homens, no famoso santuário de Delfos.
Agora, meu amigo, as fronteiras do sepulcro nos separam. Para falar-te, sou compelido a me utilizar da faculdade de outros, como se empregasse uma nova modalidade de aparelho radiofônico. Seus olhos deslumbrados me procuram, ansiosamente, porém, nem mesmo a letra me pode identificar para o teu Espírito habituado às supremas investigações de nossas forças literárias do ambiente contemporâneo. Mas nós nos entendemos no âmago do coração, compreendendo mutuamente, através das mais puras afinidades espirituais. A sombra do sepulcro não podia obscurecer a minha admiração, que se manifesta, agora, com uma intensidade ainda maior, sabendo que despiste a toga de Nicodemos, para devassar a verdade no beiral do meu túmulo.
Compreendo a elevação do teu gesto e louvo as tuas atitudes desassombradas. Um mundo de novas observações aflora-me ao pensamento para entregá-las ao teu coração nesta noite, de sagrada memória para a minha vida de homem desencarnado; porém, dificuldades inúmeras impedem a realização de meus modestos desejos.
Não desejo reviver o acervo de minhas velhas recordações, cheias de lágrimas muito amargas; todavia, se não represento mais a figura de Tirésias, dando palpites ao mundo, do seio de sombras da sua noite, desejaria trazer-te o complexo de minhas emoções novas e de meus novos conhecimentos.
Não te posso, todavia, fornecer os elementos mais essenciais de meu novo mundo impressivo, porquanto a Terra tem as suas cores definidas, nos diversos setores de suas atividades, e as imagens literárias não poderiam corresponder às minhas novas necessidades.
Também, a mudança integral das perspectivas não me faria redizer o passado, com os seus enganos, com referência aos centros envenenados de nossa cultura. O Plano Espiritual está cheio de incógnitas poderosas. Aqui vivemos uma expressão mais forte do problema do ser e do destino. Não aportamos do outro lado do tão somente para devassar o mistério das sombras. Chegamos no além-túmulo com um dever mais profundo e mais essencial — o de conhecermos a nós mesmos, segundo o grande apelo de Alexis Carrel numa de suas últimas experiências científicas. Surpresas numerosas assaltam a nossa imaginação, mas os aspectos exteriores da Vida não se modificam de modo absoluto. A incógnita de nossa própria alma para o desencarnado é, talvez, mais complexa e profunda. Aí no mundo, costumamos entronizar a razão como se tão somente por ela subsistissem todas as leis de progresso. Entretanto, sem a luz da fé, a nossa razão é sempre falível. Reconhecemos a propriedade desse asserto quando observamos a caminhada sinistra dos povos para a ruína e para a destruição.
Se os valores raciais trouxessem consigo a prioridade da evolução, não teríamos tantas teorias de paz e de concórdia espezinhadas pela incultura e pela violência, pelos princípios dos mais fortes, como se os homens desta geração houvessem sorvido no berço um vinho diabólico e sinistro.
A razão do homem, em si mesma, fez o direito convencional, mas fez igualmente o canhão e o prostíbulo. E, sem a fé, sem a compreensão de sua própria alma, estranho às suas realidades profundas, o homem caminha às tontas, endeusando todas as energias destruidoras da alegria e da vida.
Um espetáculo imponente apresenta a sociedade moderna, com a sua época de miséria e de deslumbramento. O homem da atualidade é um hífen desesperado entre duas eras extraordinárias. De cá, assistimos a esse esboroar do mundo velho, para que o novo organismo do orbe surja na plenitude das suas forças restauradoras. E eu não te poderia falar de um livro de Sainte-Beuve ou de apontamentos da história nesse ou naquele setor. Falar-te-ia muito; todavia, a nossa palavra singela de humilde jornalista desencarnado teria de rodopiar em torno de problemas demasiadamente complexos, para um ligeiro encontro de amigos, dentro da noite.
Eu sei que não poderás aceitar as teses espiritistas de um jato, como se o teu coração recebesse um banho milagroso. Lutarás contigo mesmo e submeterás tudo o que os teus olhos veem, ao cadinho de tuas análises rigorosas, mas sentir-me-ei resignado e feliz se puder alimentar a dúvida no íntimo de teu coração. A dúvida, como já o disse alguém no mundo, é o túmulo da incerteza.
A hora vai adiantada, e, se não tenho mais o relógio do estômago que me fazia enfrentar nas avenidas a poeira impiedosa dos automóveis felizes, tenho de subordinar as minhas atividades a certas injunções de ordem espiritual, a que não posso fugir.
Não rubriques o papel de que não tenho necessidade para te falar mais demoradamente ao coração.
Guarda o meu pensamento que, se vem do mundo das sombras, parte também do mundo da minha estima fraternal e de minha admiração.
Que o teu barco seja conduzido a melhores portos no domínio da cultura espiritual, de modo a valorizares, ainda mais, os teus valores intelectivos, são os votos de um irmão das letras, que, apesar de “morto” para o mundo, faz questão de viver com a lembrança de teu pensamento e de tua afeição.
(Recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em 30 de Julho de 1939, na sede da União Espírita Mineira, em Belo Horizonte, Minas Gerais)
Eis as primeiras impressões dadas à reportagem, que imediatamente pediu a opinião de Agrippino Grieco:
Ao Diário da Tarde, de 31 de Julho:
— “O “médium” Francisco Xavier escreveu isto ao meu lado, celeremente, em papel rubricado por mim. A atenção que lhe dei e a leitura que fiz em voz alta dos trabalhos por ele apresentados, com as assinaturas de Augusto dos Anjos e Humberto de Campos, não importam em nenhuma espécie de adesão ao credo espírita, como fiz questão de esclarecer naquele momento. Sempre fui movido por sentimentos de catolicidade, graças à educação recebida na infância, mesmo sem ir a extremos de clericalismo radical. O meu livro “S. Francisco de Assis e a Poesia Cristã” aí está a testemunhar quanto me merecem os grandes autores da Igreja. Mas o certo é que, como crítico literário, não pude deixar de impressionar-me com o que realmente existe do pensamento e da forma daqueles dois autores patrícios, nos versos de um, e na prosa de outro. Se é mistificação, parece-me muito bem conduzida. Tendo lido as paródias de Albert Sorel, Paul Reboux e Charles Muller, julgo ser difícil (isso o digo com a maior lealdade) levar tão longe a técnica do “pastiche”. De qualquer modo, o assunto exige estudos mais detalhados, a que não me posso dar agora, nesta visita um tanto apressada à formosa terra de Minas.”
Ao Diário Mercantil, de 5 de Agosto:
— “O assunto é complexo, requer uma série grande de coeficientes de ordem religiosa, intelectual, literária, etc., sob a ação dos quais deve ser analisado; mas, assim mesmo, nunca deixa de ser interessante.
“Tive, já, ocasião de externar a minha maneira de encará-lo ao me entrevistar com um representante dos “Diários Associados”, na capital do Estado, quando disse textualmente o que o “Diário Mercantil”, em serviço telefônico, divulgou em edição do dia 2 do corrente.
“Assim, nada tenho mais a acrescentar senão repetir algumas palavras sobre a profunda emoção que me assaltou ao ler as referências da mensagem de Chico Xavier feitas a mim e atribuídas a Humberto de Campos.
“Íntimos, num contato cordial e literário constante, ambos críticos, ambos homens de letras, era natural que entre mim e Humberto existisse uma amizade intensa e mútua. Agora, anos após sua morte, eis que me é dado encontrar-lhe novamente as ideias e o estilo, e da maneira extraordinária por que o foi.
“Com isso, não afirmo coisa alguma. Apenas transmito minha primeira impressão, que continua a mesma. Não discuto o modo por que foi obtido o original subscrito por Humberto. Imitação? “Pastiche”? Mistificação? Não nos reportemos apenas a isso. O que não me deixou dúvidas, sob o ponto de vista literário, foi a constatação fácil da linguagem inconfundível de Humberto na página que li. Como crítico, se, sem que eu conhecesse sua procedência, ma houvessem apresentado, tê-la-ia atribuído ao autor de “Sombras que sofrem”, “Crônicas”, “Memórias”, e outras inúmeras preciosidades das nossas letras contemporâneas.”
Posteriormente, já de regresso ao Rio de Janeiro, Agrippino Grieco deu ao Diário da Noite em 21 de Setembro, a seguinte entrevista:
— “Pouco tenho a acrescentar ao que os “Diários Associados” divulgaram, aliás numa reportagem brilhante e variada, sobre o meu encontro póstumo com a literatura de Humberto de Campos.
“Estava eu em Belo Horizonte e, por mero acidente, acabei indo assistir a uma sessão espírita. Ali, falaram em levar-me à estação de Pedro Leopoldo para ver trabalhar o médium Chico Xavier. Mas, já havendo tantas complicações no Plano Terrestre, quis furtar-me a outras tantas do Plano Astral, e lá não fui. Resultado: Chico Xavier resolveu vir a Belo Horizonte.”
E prossegue:
— “Na noite marcada para o nosso encontro, fui, em vez de ir ao sítio aprazado, jantar tranquilamente num restaurante onde não costumava fazer refeições e onde não sei como conseguiram descobrir-me. Mas o caso é que me descobriram junto a um frango com ervilhas e me conduziram à agremiação onde havia profitentes e curiosos reunidos em minha intenção.
“Salão repleto; uma das grandes noites do kardecismo local… Aboletei-me à mesa da diretoria, junto ao Chico, que não me deu, assim inspecionado sumariamente, a impressão de nenhuma inteligência fora do comum. Um mestiço magro, meão de altura, com os cabelos bastante crespos e uma ligeira mancha esbranquiçada num dos olhos.”
A seguir, o Sr. Grieco descreve, sem esconder a grande impressão que o domina ainda, o fenômeno que presenciou:
— “Nisto, o orientador dos trabalhos pediu-me que rubricasse vinte folhas de papel, destinadas à escrita do médium; tratava-se de afastar qualquer suspeita de substituição de texto. Rubriquei-as e Chico Xavier, com uma celeridade vertiginosa, deixando correr o lápis com uma agilidade que não teria o mais desenvolto dos rasistas de cartório, foi enchendo tudo aquilo. À proporção que uma folha se completava, sempre em grafia bem legível, ia eu verificando o que ali fixara o lápis do Chico.
“Primeiro um soneto atribuído a Augusto dos Anjos. A seguir, percebi que estavam em jogo, bem patentes, a linguagem e o meneio de ideias peculiares a Humberto de Campos. Dirão tratar-se de um “à la manière de”, como os de Paul Reboux e Charles Muller.”
Por fim, apreciando o texto das comunicações, diz, concluindo:
— “Será uma interpretação digna de respeito. Quanto a mim, não podendo aceitar sem maior exame a certeza de um “pastiche”, de uma paródia, tive, como crítico literário que há trinta anos estuda a mecânica dos estilos, a sensação instantânea de percorrer um manuscrito glorioso.
“Eram em tudo os processos de Humberto de Campos, a sua amenidade, a sua vontade de parecer austero, o seu tom entre ligeiro e conselheiral. Alusões à Grécia e ao Egito, à Acrópole, a Tirésias, ao véu de Ísis muito ao agrado do autor dos “Carvalhos e Roseiras”. Uma referência a Sainte-Beuve, crítico predileto de nós ambos, mestre de gosto e clareza que Humberto não se cansava de exaltar em suas palestras, que não me canso de exaltar em minhas palestras. Conjunto bem articulado. Uma crônica, em suma, que, dada a ler a qualquer leitor de mediana instrução, logo lhe arrancaria este comentário: “É Humberto puro!”
“Fiquei naturalmente aturdido… Depois disso, muitos dias decorreram e não sei como elucidar o caso. Fenômeno nervoso? Intervenção extra-humana? Faltam-me estudos especializados para concluir. Além do mais, recebi educação católica e sou um entusiasta dos gênios e heróis que tanto prestígio asseguram à religião que produziu um Santo Antônio de Pádua e um Bossuet. Meu livro “São Francisco de Assis e a Poesia Cristã” aí se encontra, a testemunhar quanto venero a ética e a estética da Igreja. Mas — repito-o com a maior lealdade — a mensagem subscrita por Humberto de Campos profundamente me impressionou…”
Batalha de Tsushima — Tsushima é um arquipélago japonês, na entrada meridional do mar do Japão, entre a Coreia e o Japão. Foi nessas águas que, em 1905, o almirante Togo infligiu irremediável derrota à esquadra da Rússia, que estava em guerra com os nipônicos. Foi o resultado dessa batalha naval que decidiu do término da luta.
Acrópole — Cidade da antiga Atenas, na Grécia, situada sobre um rochedo de 46 metros de altura, aproximadamente. Aí havia templos, monumentos, notadamente o Partenão, a Pinacoteca, etc.
Delfos — Antiga cidade da Grécia, então tida por sagrada e por ser o centro da Terra. Seu templo e seu oráculo tornaram-na célebre, e todos os gregos, além de príncipes estrangeiros mandavam ricas dádivas e colocavam seus bens sob a proteção de (deus mitológico, filho de Júpiter), em nome de quem o oráculo fazia suas famosas profecias. Os tesouros ali acumulados acenderam temíveis cobiças, e, por ocasião de uma guerra, foram fundamente pilhados. [No frontão do templo de Apolo, em Delfos, está escrito: “Nosce te ipsum”, “Conhece-te a ti mesmo”. — Elias Barbosa]
Nicodemos — Fariseu, membro do tribunal supremo que decidia em última instância, no tempo de Jesus-Cristo. Tocado pelas doutrinas do meigo Nazareno, Nicodemos, para dirimir as dúvidas do seu espírito procurou Jesus, mas à noite, meio às escondidas, temeroso do juízo dos seus pares. Mais tarde, quando os principais sacerdotes pretenderam decidir sumariamente sobre a prisão de Jesus, Nicodemos tomou a defesa, perguntando-lhes: Porventura julga a nossa lei a alguém, sem primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez? (Jo
Tirésias — Adivinho de Tebas, Egito, célebre pelas profecias que fez no seu tempo. Deixou livros sobre adivinhações e augúrios, e uma filha, Manto, também profetisa.
Livro de Alexis Carrel — O homem, esse desconhecido (livro já traduzido em português)