Evangelho por Emmanuel, O – Comentários aos Atos dos Apóstolos

Capítulo CXVII

Revolta contra Paulo no Templo



27 Quando estava prestes a se consumar os sete dias, os judeus da Ásia, vendo-o no Templo, incitaram toda a turba e lançaram as mãos sobre ele, 28 gritando:varões israelitas, socorrei-[nos]! Este é o homem que por toda parte está ensinando todos a [serem] contra o povo, [contra] a Lei e [contra] este lugar. E ainda introduziu gregos no Templo e tornou comum este lugar santo. 29 Pois tinham visto Trófimo, o efésio, na cidade com ele, o qual supunham que Paulo havia introduzido no Templo. 30 Agitou-se toda a cidade, e houve aglomeração do povo. Depois de agarrarem a Paulo, o arrastaram para fora do Templo e imediatamente foram fechadas as portas. 31 Estavam procurando matá-lo, quando chegou o relato ao quiliarca da coorte que toda Jerusalém estava tumultuada. 32 O qual, tomando logo consigo soldados e centuriões, desceu correndo até eles. Ao verem o quiliarca e os soldados, eles pararam de bater em Paulo. 33 Então, aproximando-se o quiliarca, segurou-o e ordenou que fosse atado com duas correntes; e informava-se sobre quem seria [ele] e o que teria feito. 34 Na turba, uns gritavam algo, outros outra [coisa]; não podendo ele saber com certeza por causa do tumulto, ordenou fosse ele conduzido à fortaleza. 35 Quando chegou a escadaria, sucedeu de os soldados o carregarem por causa da violência da turba, 36 pois a multidão do povo o seguia, gritando: leva-o! — (At 21:27)


[…] Na véspera do último dia da purificação judaica, o convertido de Damasco compareceu às cerimônias com a mesma humildade. Logo, porém, que se colocou em posição de orar ao lado dos companheiros, alguns exaltados o cercaram com expressões e atitudes ameaçadoras.

— Morte ao desertor!… Pedras à traição! — gritou uma voz estentórica, abalando o recinto.

Paulo teve a impressão de que esses brados eram a senha para maiores violências, porque, imediatamente, estourou uma gritaria infernal. Alguns judeus frementes agarram-no pela gola da túnica outros travaram-lhe os braços, violentamente, arrastando-o para o grande pátio reservado aos movimentos do grande público.

— Pagarás teu crime!… diziam uns.

— É necessário que morras! Israel se envergonha de tua presença no mundo! — bradavam outros mais furiosos.


O Apóstolo dos gentios entregou-se sem a mínima resistência. Num relance, considerou os objetivos profundos de sua vinda a Jerusalém, concluindo que não fora convocado tão só para a obrigação pueril de acompanhar ao Templo quatro irmãos de raça, desolados na sua indigência. Cumpria-lhe afirmar, na cidade dos rabinos, a firmeza de suas convicções. Entendia, agora, a sutileza das circunstâncias que o conduziam ao testemunho. Primeiramente, a reconciliação e o melhor conhecimento de um companheiro como Tiago, obedecendo a uma determinação que lhe parecera quase infantil; em seguida, o grande ensejo de provar a fé e a consagração de sua alma a Jesus-Cristo. Com enorme surpresa, tomado de profundas e dolorosas reminiscências, notou que os israelitas exaltados deixavam-no à mercê da multidão furiosa, justamente no pátio onde Estêvão havia sido apedrejado vinte anos atrás. Alguns populares desvairados arrebataram-no à força, prendendo-o ao tronco dos suplícios. Engolfado nas suas lembranças, o grande Apóstolo mal sentia os bofetões que lhe aplicavam. Rápido, arregimentou as mais singulares reflexões. Em Jerusalém, o Mestre Divino padecera os martírios mais dolorosos; ali mesmo, o generoso Jeziel se imolara por amor ao Evangelho, sob os golpes e chufas da populaça. Sentiu-se então envergonhado pelo suplício infligido ao irmão de Abigail, oriundo de suas próprias iniciativas. Somente agora, atado ao poste do sacrifício, compreendia a extensão do sofrimento que o fanatismo e a ignorância causavam ao mundo. E refletiu: — O Mestre é o Salvador dos homens e aqui padeceu pela redenção das criaturas. Estêvão era seu discípulo, devotado e amoroso, e aqui experimentou, igualmente, os suplícios da morte. Jesus era o Filho de Deus. Jeziel era seu Apóstolo. E ele? Não estava ali o passado a reclamar resgates dolorosos? Não seria justo padecer muito, pelo muito que martirizara os outros? Era razoável que sentisse alegria naqueles instantes amargos, não só por tomar a cruz e seguir o Mestre bem-amado, como por ter tido o ensejo de sofrer o que Jeziel havia experimentado com grande amargura.


Essas reflexões proporcionavam-lhe algum consolo. A consciência sentia-se mais leve. Ia dar testemunho da fé, em Jerusalém, onde se encontrara com o irmão de Abigail; e, depois da morte, podia aproximar-se do seu coração generoso, falando-lhe com júbilo dos seus próprios sacrifícios. Pedir-lhe-ia perdão e exaltaria a bondade de Deus, que o conduzira ao mesmo lugar, para os resgates justos. Alongando o olhar, entreviu a pequena porta de acesso ao pequeno aposento prestes a desprender-se do mundo nas agonias extremas. Parecia ouvir ainda as derradeiras palavras de Estêvão misturadas de bondade e perdão.

Mal não saíra de suas reminiscências, quando a primeira pedrada o despertou para escutar o vozerio do povo.

O grande pátio estava repleto de israelitas sanhudos. Objurgatórias sarcásticas cortavam os ares. O espetáculo era o mesmo do dia em que Estêvão partira da Terra. Os mesmos impropérios, as fisionomias escarninhas dos verdugos, a mesma frieza implacável dos carrascos do fanatismo. O próprio Paulo não se furtava à admiração, ao verificar as coincidências singulares. As primeiras pedras acertaram-lhe no peito e nos braços, ferindo-o com violência.

— Esta será em nome da Sinagoga dos cilícios! — dizia um jovem, em coro de gargalhadas.

A pedra passou sibilando e dilacerou, pela primeira vez, o rosto do Apóstolo. Um filete de sangue começou a ensopar-lhe as vestiduras. Nem um minuto, porém, deixou de encarar os carrascos com a sua desconcertante serenidade.


Trófimo e entretanto, cientes da gravidade da situação, desde os primeiros instantes, através de um amigo que presenciara, a cena inicial do suplício, procuraram imediatamente o socorro das autoridades romanas. Receosos de novas complicações, não declinaram as verdadeiras condições do convertido de Damasco. Alegavam, apenas, tratar-se de um homem que não devia padecer nas mãos dos israelitas fanáticos e inconscientes.

Um tribuno militar organizou incontinente um troço de soldados. Deixando a fortaleza, penetraram no amplo átrio, com ânimo decidido. A massa delirava num turbilhão de altercações e gritarias ensurdecedoras. Dois centuriões, obedecendo às ordens do comando, avançaram, resolutos, desatando o prisioneiro e arrebatando-o à multidão que o disputava ansiosa.

— Abaixo o inimigo do povo!… É um criminoso! É um malfeitor! Estraçalhemos o ladrão!…


Pairavam no ar as exclamações mais estranhas. Não encontrando rabinos de responsabilidade para os esclarecimentos imprescindíveis, o tribuno romano mandou que o acusado fosse algemado. O militar estava convencido de que se tratava de perigoso malfeitor que, de há muito, se transformara em terrível pesadelo dos habitantes da província. Não encontrava outra explicação para justificar tanto ódio.

O peito contuso, ferido no rosto e nos braços, o Apóstolo seguiu para a Torre Antônia, escoltado pelos prepostos de César, enquanto a multidão encaudava o pequeno cortejo, bradando sem cessar: — Morra! Morra!




(Paulo e Estêvão, FEB Editora., pp. 410 a 413. Indicadores 18 a 22)