22 Ouviram-no até esta palavra, e levantaram a voz deles, dizendo: leva da terra o tal, pois não é adequado ele viver. 23 Enquanto eles estavam gritando, arrojando as vestes e lançando poeira para o ar, 24 ordenou o quiliarca fosse ele conduzido para a fortaleza, tendo dito para ele ser interrogado com açoites, a fim de saber por que causa assim clamavam contra ele. 25 Assim que o ataram com correias, Paulo disse para o centurião de pé se lhes era lícito açoitar um homem romano não julgado. 26 Ouvindo [isso], o centurião, aproximando-se do quiliarca, anunciou, dizendo: o que estás prestes a fazer, pois este homem é romano. 27 Aproximando-se o quiliarca, disse-lhe: dize para mim, tu és romano? E ele disse: sim. 28 Respondeu-lhe o quiliarca: eu adquiri esta cidadania com grande soma de dinheiro. E Paulo disse: eu, porém, nasci. 29 Imediatamente, então, os que estavam prestes a interrogá-lo se afastaram dele, e o quiliarca teve medo, quando soube que era romano, porque o tinha amarrado. — (At
[…] Paulo de Tarso, depois de circunstanciado relatório da sua conversão, começou a falar da grandeza do Cristo, das promessas do Evangelho, e quando se detinha a comentar suas relações com o mundo espiritual, de onde recebia as mensagens confortantes do Mestre, a massa inconsciente, furiosa, agitou-se em ânsias mesquinhas. Grande número de israelitas despia o manto, arrojando poeira no ar, num impulso característico de ignorância e maldade. O momento era gravíssimo. Os mais exaltados tentaram romper o cordão dos guardas para trucidar o prisioneiro. A ação de Zelfos foi rápida. Mandou recolher o Apóstolo ao interior da Torre Antônia. E enquanto Cláudio Lísias se recolhia à residência a fim de meditar um pouco na sublimidade dos conceitos ouvidos, o companheiro de milícia tomou providências enérgicas para dispersar a multidão. Não eram poucos os que teimavam em vociferar na via pública, mas o chefe militar mandou dispersar os recalcitrantes à pata de cavalo.
Conduzido a uma cela úmida, Paulo sentiu que os soldados o tratavam com a maior desconsideração. As feridas doíam-lhe penosamente. Tinha as pernas doloridas e trôpegas. A túnica estava empapaçada de sangue. Os guardas impiedosos e irônicos amarraram-no a grossa coluna, conferindo-lhe o tratamento destinado aos criminosos comuns. O Apóstolo, sentindo-se exausto e febril, chegou à conclusão de que não lhe seria fácil resistir à nova provação de martírio. Refletiu que não era justo entregar-se de todo às disposições perversas dos soldados que o guardavam. Lembrou que o Mestre se imolara na cruz, sem resistir à crueldade das criaturas, mas também afirmara que o Pai não deseja a morte do pecador. (Ez
— Prendestes-me à coluna reservada aos criminosos, quando não podeis imputar-me falta alguma!… Vejo, agora, que preparais açoites para a flagelação, quando já me encontro banhado em sangue, no suplício imposto pela turba inconsciente…
Um dos guardas, um tanto irônico, procurou cortar-lhe a palavra e sentenciou:
— Ora e esta!… Não sois um Apóstolo do Cristo? Consta que teu Mestre morreu na cruz caladinho e, por fim, ainda pediu perdão para os algozes, alegando que ignoravam o que faziam.
Os companheiros do engraçado romperam em gargalhadas estrídulas. Paulo de Tarso, entretanto, evidenciando toda a nobreza do coração, no fulgor do olhar, replicou sem hesitação:
— Sim, rodeado pelo povo ignorante e inconsciente, no dia do Calvário, Jesus pediu a Deus perdoasse as trevas de espírito em que se submergia a multidão que lhe levantara o madeiro de ignomínia; mas os agentes do governo imperial não podem ser a turba que desconhece os próprios atos. Os soldados de César devem saber o que fazem, porque, se ignorais as leis, para cuja execução recebeis soldo, seria mais justo abandonardes o posto.
Os guardas ficaram imóveis, tomados de assombro.
Paulo, entretanto, continuou em voz firme:
— Quanto a mim, pergunto-vos: — Será lícito açoitardes um cidadão romano, antes de condenado?
O centurião que presidia os serviços da flagelação suspendeu os primeiros dispositivos. Zelfos foi chamado com espanto. Ciente do ocorrido, o tribuno interrogou o Apóstolo, sumamente admirado:
— Dize-me. És de fato romano?
— Sim.
Ante a firmeza da resposta, Zelfos achou razoável modificar o tratamento do prisioneiro. Receoso de complicações, ordenou que o ex-rabino fosse retirado do tronco, permitindo-lhe ficar à vontade no acanhado âmbito da cela. Somente então, Paulo de Tarso conseguiu algum repouso num leito duro, recebendo uma bilha de água trazida com mais respeito e consideração. Saciou a sede intensa e dormiu, apesar das feridas sangrentas e dolorosas.
Zelfos, contudo, não estava tranquilo. Desconhecia, por completo, a condição do acusado. Temendo complicações prejudiciais para a sua posição, aliás invejável do ponto de vista político, procurou avistar-se com o tribuno Cláudio Lísias. Esclarecendo o motivo de sua preocupação, o outro murmurou:
— Isso me surpreende, porque a mim afirmou que era judeu, natural de Tarso da Cilícia.
Zelfos explicou, então, que tinha dificuldade para discernir a causa, concluindo:
— Pelo que dizes, ele parece-me antes um mentiroso vulgar.
— Isso não — exclamou Lísias —, naturalmente possuirá títulos de cidadania do Império e agiu por motivos que não estamos habilitados a apreciar.
Percebendo que o amigo se irritara intimamente com as suas primeiras alegações, Zelfos apressou-se a corrigir:
— Teus conceitos são justos.
— Tenho de emiti-los em consciência — acrescentou Lísias bem inspirado —, porque esse homem, desconhecido para nós ambos, falou de problemas muito sérios.
Zelfos pensou um instante e ponderou:
— Considerando tudo isso, proponho seja apresentado, amanhã, ao Sinédrio. Julgo que somente assim poderemos encontrar uma fórmula capaz de resolver o assunto.
Cláudio Lísias recebeu o alvitre com displicência. No íntimo, sentia-se mais propenso a patronar a defesa do Apóstolo. Sua palavra, inflamada de fé, impressionara-o vivamente. Em breves, rápidos momentos de meditação, analisou todos os lances pró e contra uma atuação dessa natureza. Subtrair o acusado à perseguição dos mais exaltados era uma ação justa; mas disputar com o Sinédrio era uma atitude que reclamava mais prudência. Conhecia os judeus, muito de perto, e, por mais de uma vez, experimentara o grau de suas paixões e caprichos. Compreendendo, igualmente, que não deveria despertar qualquer suspeita do colega, com relação às suas crenças religiosas, fez um gesto afirmativo e declarou:
— Concordo com o alvitre. Amanhã, entregá-lo-emos aos juízes competentes em matéria de fé. Poderás deixar isso a meu cargo, porque o prisioneiro será acompanhado de escolta que o garanta contra qualquer violência.
(Paulo e Estêvão, FEB Editora., pp. 414 a 417. Indicadores 25 a 31)