1 E sucedeu que, em Icônio, eles entraram juntos na sinagoga dos judeus e falaram de tal modo que creu grande multidão, tanto de judeus quanto de gregos. 2 Porém os judeus que não se persuadiram, excitaram e exasperaram a alma dos gentios contra os irmãos. 3 Assim, [eles] permaneceram bastante tempo, falando abertamente sobre o Senhor, que testemunhava a palavra da sua graça, concedendo fossem realizados sinais e prodígios pelas mãos deles. 4 Dividiu-se a multidão da cidade: os que estavam com os judeus e os que [estavam] com os apóstolos. 5 [Foi] quando ocorreu um motim dos gentios e dos judeus, com as suas autoridades, para ultrajá-los e apedrejá-los. 6 Percebendo [isso], fugiram para as cidades da Licaônía, Listra e Derbe, e circunvizinhança. — (At
[…] Chegados à cidade, apresentaram-se ao amigo de Eustáquio, de nome Onesíforo. Recebidos com generosa hospitalidade, no sábado imediato, antes mesmo de fixar-se no trabalho profissional, Paulo foi expor os objetivos de sua passagem pela região. A estreia na sinagoga provocou animadas discussões. O elemento político da cidade constituía-se de judeus ricos e instruídos na ; contudo, os gentios representavam, em grande número, a classe média. Estes últimos receberam a palavra de Paulo com profundo interesse, mas os primeiros desfecharam grande reação logo de início. Houve tumultos. Os orgulhosos filhos de Israel não podiam tolerar um Salvador que se entregara, sem resistência, à cruz dos ladrões. A palavra do Apóstolo, entretanto, alcançara tão grande favor público que os gentios de Icônio ofereceram-lhe um vasto salão para que lhes fosse ministrado o ensinamento evangélico, todas as tardes. Queriam notícias do novo Messias, interessavam-se pelos seus menores feitos e por suas máximas mais simples. O ex-rabino aceitou o encargo, cheio de gratidão e simpatia. Diariamente, terminada a tarefa comum, compacta multidão de iconienses aglomerava-se ansiosa por lhe ouvir o verbo vibrante. Dominando a administração, os judeus não tardaram em reagir, mas foi inútil a tentativa de intimidar o pregador com as mais fortes ameaças. Ele continuou pregando intrépida, desassombradamente. Onesíforo, a seu turno, dava-lhe mão forte e, dentro em pouco, fundava-se a igreja em sua própria casa.
Os israelitas mantinham viva a ideia da expulsão dos missionários quando um incidente ocorreu em auxílio deles.
É que uma jovem noiva, ouvindo ocasionalmente as pregações do Apóstolo dos gentios diariamente penetrava no salão em busca de novos ensinamentos. Enlevada com as promessas do Cristo e sentindo extrema paixão pela figura empolgante do orador, fanatizara-se lamentavelmente, esquecendo os deveres que a prendiam ao noivo e à ternura maternal. Tecla, que assim se chamava, não mais atendia aos laços sacrossantos que deveria honrar no ambiente doméstico. Abandonou o trabalho diuturno para esperar o crepúsculo, com ansiedade. Teóclia, sua mãe, e Tamíris, o noivo, acompanham o caso com desagradável surpresa. Atribuíam a Paulo semelhante desequilíbrio. O ex-doutor, por sua vez, estranhava a atitude da jovem, que, diariamente, insinuava-se com perguntas, olhares e momices singulares.
Certa vez, quando se dispunha a voltar para casa de Onesíforo, em companhia de Barnabé, a moça lhe pediu uma palavra em particular.
Ante suas perguntas atenciosas, Tecla corava, gaguejando:
— Eu… eu…
— Dize, filha — murmurou o Apóstolo um tanto preocupado —, deves considerar-te em presença de um pai.
— Senhor — conseguiu dizer ofegante —, não sei por quê, tenho recebido grande impressão com a vossa palavra.
— O que tenho ensinado — esclareceu Paulo — não é meu; vem de Jesus, que nos deseja todo o bem.
— De qualquer modo, porém — disse ela com mais timidez —, amo-vos muito!…
— Paulo assustou-se. Não contava com essa declaração. A expressão “amo-vos muito” não era articulada em tom de fraternidade pura, mas com laivos de particularismo que o Apóstolo percebeu sobremaneira impressionado. Depois de meditar muito na situação imprevista, respondeu convicto:
— Filha, os que se amam em espírito, unem-se em Cristo para a eternidade das emoções mais santas; mas quem sabe está amando a carne que vai morrer?
— Tenho necessidade da vossa afeição — exclamou a jovem, de olhar lacrimoso.
— Sim — esclareceu o ex-rabino —, mas os dois temos necessidade da afeição do Cristo. Somente amparados nele poderemos experimentar algum ânimo em nossas fraquezas.
— Não poderei esquecer-vos — soluçou a moça, despertando-lhe compaixão.
Paulo ficou pensativo. Recordou a mocidade. Lembrou os sonhos que tecera ao lado de Abigail. Num minuto, seu espírito devassou um mundo de suaves e angustiosas reminiscências; e como se voltasse de um misterioso país de sombras, exclamou como se falasse consigo mesmo:
— Sim, o amor é santo, mas a paixão é venenosa. Moisés recomendou que amássemos a Deus acima de tudo; e o Mestre acrescentou que nos amássemos uns aos outros, em todas as circunstâncias da vida…
E fixando os olhos, agora muito brilhantes, na jovem que chorava, exclamou quase acrimonioso:
— Não te apaixones por um homem feito de lodo e de pecado, e que se destina a morrer!…
Tecla ainda não voltara a si da própria surpresa, quando o noivo desolado penetrou no recinto deserto. Tamíris faz as primeiras objeções em grandes brados, ao passo que o mensageiro da Boa Nova lhe ouve as reprimendas com grande serenidade. A noiva replica mal-humorada. Reafirma sua simpatia por Paulo, expõe francamente as intenções mais íntimas. O rapaz escandaliza-se. O Apóstolo espera pacientemente que o noivo o interrogue. E, quando convocado a justificar-se, explica em tom fraternal:
— Amigo, não te acabrunhes nem te exaltes, em face dos sucessos que se originam de profundas incompreensões. Tua noiva está simplesmente enferma. Estamos anunciando o Cristo, mas o Salvador tem os seus inimigos ocultos em toda parte, como a luz tem por inimiga a treva permanente. Mas a luz vence a treva de qualquer natureza. Iniciamos o labor missionário nesta cidade, sem grandes obstáculos. Os judeus nos ridicularizam e, todavia, nada encontraram em nossos atos que justifique a perseguição declarada. Os gentios nos abraçam com amor. Nosso esforço desenvolve-se pacificamente e nada nos induz ao desânimo. Os adversários invisíveis, da verdade e do bem, certo se lembraram de influenciar esta pobre criança, para faze-la instrumento perturbador de nossa tarefa. É possível que não me compreendas de pronto; no entanto, a realidade não é outra.
Tamíris, contudo, deixando entrever que padecia da mesma influência perniciosa, bradou enraivecido:
— Sois um feiticeiro imundo! Esta é que é a verdade. Mistificador do povo simplório e rude, não passais de reles sedutor de moças impressionáveis. Insultais uma viúva e um homem honesto, qual sou, insinuando-vos no espírito frágil de uma órfã de pai.
Espumava de cólera. Paulo ouviu-lhe as diatribes, com grande presença de espírito.
Quando o moço cansou de esbravejar, o Apóstolo tomou o manto, fez um gesto de despedida e acentuou:
— Quando somos sinceros, estamos em repouso invulnerável; mas cada um aceita a verdade como pode. Pensa, pois, e entende como puderes.
E abandonou o recinto para ir ter com Barnabé.
Os parentes de Tecla, porém, não descansaram em face do que consideravam um ultraje. Na mesma noite, valendo-se do pretexto, as autoridades judaicas de Icônio ordenaram a prisão do emissário da Boa Nova. A fileira dos descontentes afluiu à porta de Onesíforo, vociferando impropérios. Apesar da interferência dos amigos, Paulo foi arrastado ao cárcere, onde sofreu o suplício dos trinta e nove açoites. Acusado como sedutor e inimigo das tradições da família, ao demais blasfemo e revolucionário, foi indispensável muita dedicação dos confrades recém-convertidos para restituir-lhe a liberdade.
Depois de cinco dias de prisão com severos castigos, Barnabé o recebeu exultante de alegria.
O caso de Tecla revestira proporções de grande escândalo, mas o Apóstolo, na primeira noite de liberdade, reuniu a igreja doméstica, fundada com Onesíforo e esclareceu a situação, para conhecimento de todos.
Barnabé considerou impossível ali ficarem por mais tempo. Novo atrito com as autoridades poderia prejudicar-lhes a tarefa. Paulo entretanto, mostrava-se bastante resoluto. Se preciso, voltaria a pregar o Evangelho na via pública, revelando a verdade aos gentios, já que os filhos de Israel se compraziam nos desvios clamorosos.
Chamado a opinar, Onesíforo ponderou a situação da pobre moça, transformada em objeto da ironia popular. Tecla era noiva e órfã de pai. Tamíris havia criado a lenda de que Paulo não passava de poderoso feiticeiro. Se, na qualidade de noiva, ela fosse encontrada novamente junto do Apóstolo, mandava a tradição que fosse condenada à fogueira.
Ciente das superstições regionais, o ex-rabino não hesitou um minuto. Deixaria Icônio no dia imediato.
Não que capitulasse diante do inimigo invisível, mas porque a igreja estava fundada e não era justo cooperar no martírio moral de uma criança.
A decisão do Apóstolo mereceu aprovação geral. Assentaram-se as bases para a continuação do aprendizado evangélico. Onesíforo e os demais irmãos assumiram o compromisso de velar pelas sementes recebidas como dádiva celestial.
No curso das conversações, Barnabé estava pensativo. Para onde iriam? Não seria justo pensar na volta? As dificuldades avultavam dia a dia e a saúde de ambos, desde a internação nas margens do Cestro, era muito inconstante. O discípulo de Pedro, contudo, conhecendo o ânimo e o espírito de resolução do companheiro, esperou pacientemente que o assunto aflorasse espontânea e naturalmente.
Em socorro dos seus cuidados, um dos amigos presentes interrogou Paulo com vivacidade.
— Quando pretendem partir?
— Amanhã — respondeu o Apóstolo.
— Mas, não será melhor repousar alguns dias? Tendes as mãos inchadas e o rosto ferido pelos açoites.
— O serviço é de Jesus e não nosso. Se cuidamos muito de nós mesmos, nesse capítulo de sofrimentos, não daremos conta do recado; e se paralisarmos a marcha nos lances difíceis, ficaremos com os tropeços e não com o Cristo.
Seus argumentos pitorescos e concludentes espalhavam uma atmosfera de bom humor.
— Voltareis a Antioquia? — perguntou Onesíforo com atenção.
Barnabé aguçou os ouvidos para conhecer detalhadamente a resposta, enquanto o companheiro retrucava:
— Certo que não: Antioquia já recebeu a Boa Nova da redenção. E a Licaônia?!
Olhando agora para o ex-levita de Chipre, como a solicitar a sua aprovação, acentuava:
— Marcharemos para a frente. Não estás de acordo, Barnabé? Os povos da região precisam do Evangelho. Se estamos tão satisfeitos com as notícias do Cristo, por que negá-las aos que necessitam do batismo da verdade e da nova fé?!…
O companheiro fez um sinal afirmativo e concordou, resignado:
— Sem dúvida. Iremos para a frente; Jesus nos auxiliará.
E os presentes passaram a comentar a posição de Listra, bem como os costumes interessantes da sua gente simples. Onesíforo tinha lá uma irmã viúva, por nome Lóide. Daria uma carta de recomendação aos missionários. Seriam hóspedes de sua irmã, durante o tempo que precisassem.
Os dois pregoeiros do Evangelho rejubilaram-se. Principalmente Barnabé não cabia em si de contentamento, afastando a ideia triste de ficarem completamente isolados.
No dia seguinte, sob comovidos adeuses, os missionários tomavam a estrada que os conduziria ao novo campo de lutas. […]
(Paulo e Estêvão, FEB Editora., pp. 318 a 323. Indicadores 95 a
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