19 Chegaram judeus de Antioquia e Icônio e, persuadindo as turbas, depois de apedrejarem Paulo, o arrastaram para fora da cidade, supondo que ele estava morto. 20 Após os discípulos o rodearem, levantou-se e entrou na cidade. No [dia] seguinte, saiu com Barnabé em direção a Derbe. — (At
[…] Não obstante tal êxito, crescia igualmente a animosidade de uns tantos, contra a nova doutrina.
Os poucos judeus de Listra deliberaram consultar as autoridades de Icônio, relativamente aos dois desconhecidos. E foi isso o bastante para que se turvassem os horizontes. Os comissionários regressaram com um acervo de notícias ingratas. O era pintado a cores negras. Paulo e Barnabé eram acusados de blasfemos, feiticeiros, ladrões e sedutores de mulheres honestas. Paulo, principalmente, era apresentado como revolucionário temível. O assunto, em Listra, foi discutido “intra muros”. Os administradores da cidade convidaram o sacerdote de Júpiter a entrar na campanha contra os embusteiros e, com a mesma facilidade com que haviam acreditado na sua condição de deuses, passaram todos a atribuir aos pregadores as maiores perversões. Combinaram-se providências criminosas. Desde a chegada dos dois desconhecidos, que falavam em nome de um novo profeta, Listra vivia sobressaltada por ideias diferentes. Era preciso coibir os abusos. A palavra de Paulo era audaciosa e requeria corretivo eficaz. Finalmente, deliberaram que o fogoso pregador fosse apedrejado na primeira ocasião que falasse em público.
Ignorando o que se tramava, o Apóstolo dos gentios, deixando Barnabé acamado por excesso de trabalho, fez-se acompanhar do pequeno Timóteo, no sábado imediato, ao entardecer, foi até à praça pública onde, mais uma vez, anunciou as verdades e promessas do Evangelho do Reino.
O logradouro apresentava movimento invulgar. O pregador notou a presença de muitas fisionomias suspeitas e absolutamente desconhecidas. Todos lhe acompanhavam os mínimos gestos com evidente curiosidade.
Com a máxima serenidade, subiu à tribuna e começou a falar das glórias eternas que o Senhor Jesus havia trazido à Humanidade sofredora. No entanto, mal havia iniciado o sermão evangélico, quando, aos gritos furiosos dos mais exaltados, começaram a chover pedras em barda [em grande quantidade].
Paulo subitamente a figura inesquecível de Estêvão. Certo, o Mestre lhe reservara o mesmo gênero de morte, para que se redimisse do mal infligido ao mártir da igreja de Jerusalém. Os pequenos e duros granizos caíam-lhe nos pés, no peito, na fronte. Sentiu o sangue a escorrer-lhe da cabeça ferida e ajoelhou-se, sem uma queixa, rogando a Jesus que o fortalecesse no angustioso transe.
Nos primeiros momentos, Timóteo, aterrado, pôs-se a gritar, suplicando socorro; mas um homem de braços atléticos aproxima-se cauto e murmura-lhe no ouvido:
— Cala-te se queres ser útil!…
— És tu, Gaio? — exclamou o pequeno de olhos lacrimosos, experimentando certo conforto em reconhecer um rosto amigo no pandemônio em que se via.
— Sim — disse o outro baixinho —, aqui estou para socorrer o Apóstolo. Não posso esquecer que ele curou minha mãe.
E olhando o movimento da turba criminosa acrescentou:
— Não temos tempo a perder. Não tardará que o levem ao monturo. Se tal se der, procura seguir-nos com um pouco de água. Se o missionário não sucumbir, prestarás os primeiros socorros, até que eu consiga prevenir tua mãe!…
Separaram-se imediatamente. Ralado de aflição, o rapaz viu o pregador de joelhos, olhos fitos no céu, num transporte inesquecível. Filetes de sangue desciam-lhe da fronte fraturada. Em dado momento, a cabeça pendeu e o corpo tombou desamparado. A multidão parecia tomada de assombro. Prevalecendo-se da situação em que não se observavam diretrizes prévias, Gaio insinuou-se. Aproximou-se do Apóstolo inerme, fez um gesto significativo para o povo e bradou:
— O feiticeiro está morto!…
Sua figura gigantesca despertara as simpatias da turba inconsciente. Estrugiram aplausos. Os que haviam promovido o nefando atentado desapareceram. Gaio compreendeu que ninguém ousava assumir a responsabilidade individual. Em estranhas vibrações, bradavam os mais perversos:
— Fora das portas… fora das portas!… Feiticeiro ao monturo!… Feiticeiro ao montu… u… ro!…
O amigo de Paulo, disfarçando a comiseração com gestos de ironia, falou à multidão satisfeita:
— Levarei os despojos do bruxo!
A turba fez um alarido ensurdecedor e Gaio procurou arrastar o missionário com a cautela possível.
Atravessaram vielas extensas, em gritos, até que, atingindo um local deserto, um tanto distante dos muros de Listra, deixaram Paulo semimorto, na montureira do lixo.
O latagão inclinou-se, como a verificar a morte do apedrejado, e observando, cuidadosamente, que ainda vivia, gritou:
— Deixemo-lo aos cães, que se incumbirão do resto! É preciso celebrar o feito com algum vinho!…
E seguindo o líder daquela tarde, a multidão bateu em retirada, enquanto Timóteo se aproximava do local, valendo-se das sombras da noite que começava a fechar-se. Correndo a um poço, não muito distante, e que se destinava à serventia pública, o pequeno encheu o gorro impermeável, de água pura, prestando os primeiros socorros ao ferido. Banhado em lágrimas, notou que Paulo respirava com dificuldade, como se houvesse mergulhado em profundo desmaio. O jovem listrense assentou-se ao eu lado, banhou-lhe a testa ferida com extremos de carinho. Mais alguns minutos e o Apóstolo voltava a si para examinar a situação. Timóteo o informou de tudo. Muito compungido, Paulo agradeceu a Deus, pois reconhecia que somente a misericórdia do Altíssimo poderia ter operado o milagre, por sequestrá-lo aos propósitos criminosos da turba inconsciente.
Decorridas duas horas, três vultos silenciosos aproximavam-se. Muito aflito, Barnabé deixara o leito, não obstante o estado febril, para acompanhar Lóide e Eunice, que, avisadas por Gaio, acorriam com os primeiros socorros.
Todos renderam graças a Jesus, enquanto Paulo tomava pequena dose de vinho reconfortador. Organização espiritual poderosa, apesar das sevícias físicas, o tecelão de Tarso levantou-se e regressou a casa com os amigos, levemente amparado por Barnabé, que lhe oferecera o braço amigo.
O resto da noite passou-se em conversações carinhosas. Os dois emissários da Boa Nova temiam agressão do povo às generosas senhoras que os haviam hospedado e socorrido. Era preciso partir, para evitar maiores incômodos e complicações.
Em vão a palavra de Lóide se fez ouvir, procurando dissuadir os pregoeiros do Cristo; debalde Timóteo beijou as mãos de Paulo e lhe pediu que não partisse. Receosos de mais tristes consequências, depois de coordenarem as instruções necessárias à igreja nascente, transpuseram as portas da cidade ao amanhecer, em direção a Derbe, que ficava algo distante. […]
(Paulo e Estêvão, FEB Editora., pp. 326 a 329. Indicadores 112 a 119)