Paulo e Estêvão

Capítulo I

Rumo ao deserto



— Aonde iremos, senhor? — atreveu-se Jacob a perguntar, timidamente, logo que entraram nas ruas tortuosas.

O moço tarsense pareceu refletir um minuto e acentuou:

— É verdade que trago comigo algum dinheiro; entretanto, estou em situação muito difícil: sinto precisar mais de assistência moral que de repouso físico. Tenho necessidade de alguém que me ajude a compreender o que se passou. Sabes onde reside Sadoc?

— Sei — respondeu o servo compungido.

— Leva-me até lá… Depois de me avistar com algum amigo, pensarei numa estalagem.


Não se passou muito tempo e hei-los à porta de um edifício de singular e soberba aparência. Muralhas bem delineadas cercavam extenso átrio adornado de flores e arbustos. Descansando junto ao portão de entrada, Saulo recomendou ao companheiro:

— Não convém que me aproxime assim, sem aviso. Jamais visitei Sadoc nestas condições. Entra no átrio, chama-o e conta-lhe o que se passou comigo. Esperarei aqui, mesmo porque não posso dar um passo.

O servo obedeceu prontamente. O banco de repouso distava alguns passos do largo portão de acesso, mas ficando só, ansioso de ouvir um amigo que o compreendesse, Saulo identificou o muro, tateando-o. Vacilante e trêmulo, arrastou-se dificilmente e atingiu a entrada, ali permanecendo.


Acudindo ao chamado, Sadoc procurou saber o motivo da visita inesperada. Jacob explicou, com humildade, que vinha de Jerusalém, acompanhando o doutor da Lei e desfiou os mínimos incidentes da viagem e os fins colimados; mas, quando se referiu ao episódio principal, Sadoc arregalou os olhos estupidificado. Custava-lhe acreditar no que ouvia, mas não podia duvidar da sinceridade do narrador, que, por sua vez, mal encobria o próprio assombro. O homem falou, então, do mísero estado do chefe: da sua cegueira, das lágrimas copiosas que vertia. Saulo a chorar?! O amigo de Damasco recebia as estranhas notícias com imensa surpresa, sintetizando as primeiras impressões numa resposta desconcertante para Jacob:

— O que me conta é quase inverossímil; entretanto, em tais circunstâncias, torna-se impossível acolhê-los aqui. Desde anteontem tenho a casa cheia de amigos importantes, recém-chegados de Citium para uma boa reunião na sinagoga, sábado próximo. Cá por mim, suponho que Saulo se perturbou, inesperadamente, e não quero expô-lo a juízos e comentários menos dignos.

— Mas, senhor, que lhe direi? — interpôs Jacob hesitante.

— Diga que não estou em casa.

— Entretanto… encontro-me só com ele, assim perturbado e enfermo e, como vedes, a noite é tempestuosa…


Sadoc refletiu um momento e acrescentou:

— Não será difícil remediar. Na próxima esquina vocês encontrarão a chamada “rua Direita” e, depois de caminhar alguns passos, encontrarão a estalagem de Judas, que tem sempre muitos cômodos disponíveis. Mais tarde, procurarei lá chegar para saber do ocorrido.

Ouvindo palavras tais, que pareciam mais uma ordem que resposta a um apelo amigo, Jacob despediu-se surpreso e desanimado.

— Senhor — disse ao rabino, regressando ao portão de entrada —, infelizmente vosso amigo Sadoc não se encontra em casa.

— Não está? — exclamou Saulo admirado — daqui lhe ouvi a voz, embora não distinguisse o que dizia. Será possível que meus ouvidos estejam igualmente perturbados?

Diante daquela observação tão expressiva e sincera, Jacob não conseguiu dissimular a verdade e contou ao rabino o acolhimento que tivera, a atitude reservada e fria de Sadoc.


Seguindo as pisadas do guia, Saulo tudo ouviu, mudo, enxugando uma lágrima. Não contava com semelhante recepção da parte de um colega que sempre considerara digno e leal, em todas as circunstâncias da vida. A surpresa chocava-o. Era natural que Sadoc temesse pela renovação de suas ideias, mas não era justo abandonasse um amigo doente, às intempéries da noite. No entanto, no rebojar de mágoas que começavam a intumescer-lhe o coração, recordou repentinamente a visão de Jesus e refletiu que, efetivamente, possuía agora experiências que o outro não pudera conhecer, chegando à conclusão de que talvez fizesse o mesmo se os papéis estivessem invertidos.

Concluído o relato do companheiro, comentou resignado:

— Sadoc tem razão. Não ficava bem perturbá-lo com a descrição do fato, quando tem à mesa amigos de responsabilidade na vida pública. Além disso, estou cego… Seria um estafermo e não um hóspede.


Essas considerações comoveram o companheiro, que, aliás, deixara perceber ao jovem rabino os próprios receios. Nas palavras de Jacob, Saulo entrevira uma vaga expressão de temores injustificáveis. O procedimento de Sadoc talvez lhe houvesse aumentado as desconfianças. Suas advertências eram reticenciosas, hesitantes. Parecia intimidado, como se antevisse ameaças à sua tranquilidade pessoal. Nos conceitos mais simples evidenciava o medo de ser acusado como portador de alguma expressão do “”. Na sua amplitude de senso psicológico, o moço tarsense tudo compreendia. Fora verdade que ele, Saulo, representava o chefe supremo da campanha demolidora, mas, de ora em diante, consagraria a vida a Jesus, assim comprometendo a quantos dele se aproximassem direta e ostensivamente. Sua transformação provocaria muitos protestos no ambiente farisaico. Pressentiu nas indecisões do guia o receio de ser acusado de algum sortilégio ou bruxedo.

Com efeito, depois de convenientemente instalados na modesta estalagem de Judas, o companheiro falou-lhe preocupado:

— Senhor, pesa-me alegar minhas conveniências, mas, consoante os projetos feitos, preciso regressar a Jerusalém, onde me esperam dois filhos, a fim de nos fixarmos em Cesareia.

— Perfeitamente — respondeu Saulo, respeitando-lhe os escrúpulos —, poderás partir ao amanhecer.


Aquela voz, antes agressiva e autoritária, tornara-se agora compassiva e meiga, tocando o coração do servo nas suas fibras mais sensíveis.

— Entretanto, senhor, estou hesitando — disse o velho já picado de remorso —, estais cego, necessitais de auxílio para recobrar a vista e sinto sinceramente deixar-vos ao abandono.

— Não te preocupes por minha causa — exclamou o doutor da Lei resignado —; quem te disse que ficarei abandonado? Estou convicto de que meus olhos estarão curados muito em breve.

Aliás — continuou Saulo como a confortar-se a si mesmo —, Jesus mandou-me entrar na cidade, a fim de saber o que me convinha. Certo, não me deixará ignorando o que devo fazer.

Assim falando, não pôde ver a expressão de piedade com que Jacob o contemplava, desconcertado e oprimido.

Entretanto, mau grado à mágoa que lhe causava o chefe em semelhante estado, e recordando os castigos infligidos aos seguidores do Cristo, em Jerusalém, não conseguiu subtrair-se aos íntimos temores e partiu aos primeiros albores da manhã.


Saulo, agora, estava só. No véu espesso das sombras, podia entregar-se às suas meditações profundas e tristes.

A bolsa farta e franca assegurou-lhe a solicitude do estalajadeiro, que, de quando em quando, vinha saber suas necessidades, mas, em vão, o hóspede foi convidado a repastos e diversões, porque nada o demovia do seu taciturno insulamento.


Aqueles três dias de Damasco foram de rigorosa disciplina espiritual. Sua personalidade dinâmica havia estabelecido uma trégua às atividades mundanas, para examinar os erros do passado, as dificuldades do presente e as realizações do futuro. Precisava ajustar-se à inelutável reforma do seu eu. Na angústia do espírito, sentia-se, de fato, desamparado de todos os amigos. A atitude de Sadoc era típica e valeria pela de todos os correligionários, que jamais se conformariam com a sua adesão aos novos ideais. Ninguém acreditaria no ascendente da conversão inesperada; entretanto, havia que lutar contra todos os cépticos, de vez que Jesus, para falar-lhe ao coração, escolhera a hora mais clara e rutilante do dia, em local amplo e descampado e na só companhia de três homens muito menos cultos que ele, e, por isso mesmo, incapazes de algo compreenderem na sua pobreza mental. No apreciar os valores humanos, experimentava a insuportável angústia dos que se encontram em completo abandono, mas, no torvelinho das lembranças, destacava os vultos de e Abigail, que lhe proporcionavam consoladoras emoções. Agora compreendia aquele Cristo que viera ao mundo principalmente para os desventurados e tristes de coração. Antes, revoltava-se contra o Messias Nazareno, em cuja ação presumia tal ou qual incompreensível volúpia de sofrimento; todavia, chegava a examinar-se melhor, agora, haurindo na própria experiência as mais proveitosas ilações. Não obstante os títulos do Sinédrio, as responsabilidades públicas, o renome que o faziam admirado em toda parte, que era ele senão um necessitado da proteção divina? As convenções mundanas e os preconceitos religiosos proporcionavam-lhe uma tranquilidade aparente; mas, bastou a intervenção da dor imprevista para que ajuizasse de suas necessidades imensas. Abismalmente concentrado na cegueira que o envolvia, orou com fervor, recorreu a Deus para que o não deixasse sem socorro, pediu a Jesus lhe clareasse a mente atormentada pelas ideias de angústia e desamparo.


No terceiro dia de preces fervorosas, eis que o hoteleiro anuncia alguém que o procura. Seria Sadoc? Saulo tem sede de uma voz carinhosa e amiga. Manda entrar. Um velhinho de semblante calmo e afetuoso ali está, sem que o convertido possa ver-lhe as cãs respeitáveis e o sorriso generoso.

O mutismo do visitante indiciava o desconhecido.

— Quem sois? — pergunta o cego admirado.

— Irmão Saulo — replica o interpelado com doçura —, o Senhor, que te apareceu no caminho, enviou-me a esta casa para que tornes a ver e recebas a iluminação do Espírito-Santo.


Ouvindo-o, o moço de Tarso tateou ansiosamente nas sombras. Quem seria aquele homem que sabia os feitos lá da estrada! Algum conhecido de Jacob? Mas… aquela inflexão de voz enternecida e carinhosa?

— Vosso nome? — perguntou quase aterrado.

— .


A resposta era uma revelação. A ovelha perseguida vinha buscar o lobo voraz. Saulo compreendeu a lição que o Cristo lhe ministrava. A presença de Ananias revoca-lhe à memória os apelos mais sagrados. Fora ele o iniciador de Abigail na doutrina e o motivo da viagem a Damasco, onde encontrara Jesus e a verdade renovadora. Tomado de profunda veneração, quis avançar, ajoelhar-se ante o discípulo do Senhor, que lhe chamava ternamente “irmão”, oscular-lhe enternecido as mãos benfazejas, mas apenas tateou o vácuo, sem conseguir a execução do gratíssimo desejo.

— Quisera beijar vossa túnica — falou com humildade e reconhecimento —, mas, como vedes, estou cego!…

— Jesus mandou-me, justamente para que tivesses, de novo, o dom da vista.


Comovidíssimo, o velho discípulo do Senhor notou que o perseguidor cruel dos apóstolos do “Caminho” estava totalmente transformado. Ouvindo-lhe a palavra plena de fé, Saulo de Tarso deixava transparecer, no semblante, sinais de profunda alegria interior. Dos olhos ensombrados, manaram lágrimas cristalinas. O moço apaixonado e caprichoso aprendera a ser humano e humilde.

— Jesus é o Messias eterno! Depus minha alma em suas mãos!… — disse entre compungido e esperançoso. — Penitencio-me do meu caminho!…


Banhado no pranto do arrependimento sincero, sem saber manifestar o reconhecimento daquela hora, em virtude das trevas que lhe dificultavam os passos, ajoelhou-se com humildade.

O velhinho generoso quis adiantar-se, impedir aquele gesto de renúncia suprema, considerando a sua própria condição de homem falível e imperfeito; mas, desejando estimular todos os recursos daquela alma ardente, em favor da sua completa conversão ao Cristo, aproximou-se comovido e, colocando a mão calosa naquela fronte atormentada, exclamou:

— Irmão Saulo, em nome de Deus Todo-Poderoso eu te batizo para a nova fé em Cristo Jesus!…


Entre as lágrimas ardentes que corriam dos olhos, o moço tarsense acentuou, contrito:

— Digne-se o Senhor perdoar meus pecados e iluminar meus propósitos para uma vida nova.

— Agora — disse Ananias, impondo-lhe as mãos nos olhos apagados e num gesto amoroso —, em nome do Salvador, peço a Deus para que vejas novamente.

— Se é do agrado de Jesus que isso aconteça — advertiu Saulo compungido —, ofereço meus olhos aos seus santos serviços, para todo o sempre.


E como se entrassem em jogo forças poderosas e invisíveis, sentiu que das pálpebras doridas caíam substâncias pesadas como escamas, à proporção que a vista lhe voltava, embebendo-se de luz. Através da janela aberta, viu o céu claro de Damasco, experimentando indefinível ventura naquele oceano de claridades deslumbrantes. A aragem da manhã, como perfume do sol, vinha banhar-lhe a fronte, traduzindo para o seu coração a bênção de Deus.

— Vejo!… Agora vejo!… Glória ao redentor de minha alma!… — exclamava estendendo os braços num transporte de gratidão e de amor.


Ananias também não se conteve mais; em face daquela prova inaudita da misericórdia de Jesus, o velho discípulo do Evangelho abraçou-se ao jovem de Tarso, a chorar de reconhecimento a Deus pelos favores recebidos. Trêmulo de alegria, levantou-o em seus braços generosos, amparando-lhe a alma surpreendida e perturbada de júbilo.

— Irmão Saulo — disse pressuroso —, este é o nosso grande dia; abracemo-nos na memória sacrossanta do Mestre que nos irmanou em seu grande amor!…

O convertido de Damasco não disse palavra. As lágrimas de gratidão sufocavam-no. Abraçando-se ao antigo pregador, num gesto expressivo e mudo, fê-lo como se houvesse encontrado o pai dedicado e amoroso da sua nova existência. Por momentos, ficaram mudos, maravilhados com a intervenção divina, como dois irmãos muito queridos que se houvessem reconciliado sob as vistas de Deus.


Saulo sentia-se agora fortalecido e ágil. Num minuto, pareceu reaver todas as energias de sua vida. Voltando a si do contentamento divino que o felicitava, tomou a mão do velho discípulo e beijou-a com veneração. Ananias tinha os olhos rasos de pranto. Ele próprio não podia prever as alegrias infinitas que o esperavam na pensão singela da “rua Direita”.

— Ressuscitastes-me para Jesus — exclamou jubiloso —; serei dele eternamente. Sua misericórdia suprirá minhas fraquezas, compadecer-se-á de minhas feridas, enviará auxílios à miséria de minhalma pecadora, para que a lama do meu Espírito se converta em ouro do seu amor.

— Sim, somos do Cristo — ajuntou o generoso velhinho com a alegria a transbordar dos olhos.


E, como se fosse de súbito transformado num menino ávido de ensinamentos, Saulo de Tarso, sentando-se junto do benfeitor amigo, rogou-lhe todos os informes a respeito do Cristo, dos seus postulados e atos imorredouros. Ananias contou-lhe tudo quanto sabia de Jesus, por intermédio dos Apóstolos, depois da crucificação a que ele também assistira, em Jerusalém, na tarde trágica do Calvário. Esclareceu que era sapateiro em Emaús e tinha ido à cidade santa para as comemorações do Templo, tendo acompanhado o drama pungente nas ruas regurgitantes de povo. Falou da compaixão que lhe causara o Messias coroado de espinhos e apupado pela turba furiosa e inconsciente. Profunda a emoção, ao descrever a marcha penosa com a cruz, protegido por soldados impiedosos, da fúria popular, que vociferava o crime hediondo. Curioso pelo desenrolar dos acontecimentos, seguira o condenado até ao monte. Da cruz do martírio, Jesus lançara-lhe um olhar inesquecível. Para o seu Espírito, aquele olhar traduzia um chamamento sagrado, que era indispensável compreender. Profundamente impressionado, a tudo assistiu até ao fim. Daí a três dias, ainda sob o peso daquelas angustiosas impressões, eis que lhe chega a nova alvissareira de que o Cristo havia ressuscitado dos mortos para a glória eterna do Todo-Poderoso. Seus discípulos estavam ébrios de ventura. Então, procurou para conhecer melhor a personalidade do Salvador. Tão sublime a narrativa, tão elevados os ensinamentos, tão profunda a revelação que lhe aclarava o espírito, que aceitou o Evangelho sem mais hesitação. Desejoso de compartilhar o trabalho que Jesus legara aos que lhe pertenciam, regressou a Emaús, dispôs dos bens materiais que possuía e esperou os Apóstolos galileus em Jerusalém, onde se associou a Pedro nas primeiras atividades da igreja do “Caminho”. A essência dos ensinamentos do Cristo vitalizara-lhe o Espírito. Os achaques da velhice haviam desaparecido. Logo que e chegaram a Jerusalém para cooperar com o antigo pescador de Cafarnaum na edificação evangélica, combinaram sua transferência para Jope, a fim de atender a inúmeros pedidos de irmãos desejosos de conhecer a doutrina. Ali estivera até que as perseguições intensificadas com a morte de Estêvão obrigaram-no a retirar-se.


Saulo bebia-lhe as palavras com singular enlevo, como quem franqueava um mundo novo. A referência às perseguições avivava os remorsos acerbos. Em compensação, a alma estava repleta de votos sinceros, promissores de uma vida nova.

— É verdade — dizia, enquanto o narrador fazia longa pausa —, vim a Damasco com outorga do Templo para vos levar preso a Jerusalém, mas fostes vós que chegastes com outorga de Jesus e a Ele me jungistes para sempre. Se vos algemasse, na minha ignorância, levar-vos-ia ao tormento e à morte; vós, salvando-me do pecado, me transformastes em escravo voluntário e feliz!…

Ananias sorriu, sumamente satisfeito.


Saulo pediu-lhe, então, falasse de Estêvão, no que foi atendido, com solicitude. Em seguida, pediu informes da sua viagem de Jope a Jerusalém. Com muita prudência, desejava do benfeitor qualquer alusão a Abigail. Formulando o pedido, fê-lo com tal inflexão carinhosa, que o velho discípulo, adivinhando-lhe o intuito, falou com brandura:

— Não precisarás confessar teus anseios de moço. Leio em teus olhos o que principalmente desejas. Entre Jope e Jerusalém, descansei muito tempo na vizinhança de um compatrício que, apesar de fariseu, nunca privou os empregados de receberem as sagradas alegrias da Boa Nova. Esse homem, Zacarias, tinha sob seu teto um verdadeiro anjo do Céu. Era a jovem Abigail, que, depois de receber o batismo de minhas mãos, confessou que te amava muito. Falava do teu amor com ternura ardente e muitas vezes me convidou a orar pela tua conversão a Jesus-Cristo!…


Saulo ouvia emocionado e, após ligeiro intervalo em que o amoroso velhinho parecia meditar, voltou a dizer como se falasse consigo:

— Sim, se ela ainda vivesse!…

Ananias recebeu a observação sem surpresa e acentuou:

— Desde que se aproximou de mim, notei que Abigail não ficaria muito tempo na Terra. Suas cores esmaecidas, o brilho intenso dos olhos, falavam-me da sua condição de anjo exilado. Mas, devemos crer que ela viva no Plano imortal. E quem sabe? Talvez suas rogativas aos pés de Jesus hajam contribuído para que o Mestre te convocasse à luz do Evangelho, às portas de Damasco!…


O velho discípulo do “Caminho” estava comovido. Recebendo aquelas carinhosas evocações, Saulo chorava. Compreendia, sim, que Abigail não poderia estar morta. A visão de Jesus redivivo bastava para dissipar-lhe todas as dúvidas. Certamente, a escolhida de sua alma apiedara-se de suas misérias, rogara ao Salvador, com insistência, lhe socorresse o espírito mesquinho e, por venturosa coincidência, o mesmo Ananias que lhe havia preparado o coração para as bênçãos do Céu, estendera-lhe igualmente as mãos amigas, cheias de caridade e perdão. Agora, pertenceria para sempre àquele Cristo amoroso e justo, que era o Messias prometido. Nas emoções extremas que lhe caracterizavam os sentimentos, passou a considerar o poder do Evangelho, examinando seus ilimitados recursos transformadores. Queria mergulhar o espírito nas suas lições iluminadas e sublimes, banhar-se naquele rio de vida, cujas águas do amor de Jesus fecundavam os corações mais áridos e desertos. Aquela meditação profunda empolgava-lhe, agora, a alma toda.

— Ananias, meu mestre — disse o ex-rabino, com entusiasmo —, onde poderei obter o Evangelho sagrado?


O antigo discípulo sorriu com bondade, e observou:

— Antes de tudo, não me chames mestre. Este é e será sempre o Cristo. Nós outros, por acréscimo da misericórdia divina, somos discípulos, irmãos na necessidade e no trabalho redentor. Quanto à aquisição do Evangelho, somente na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia integral das anotações de Levi.

E revolvendo o interior de surrada patrona [bolsa a tiracolo], retirava alguns pergaminhos amarelentos, nos quais conseguira reunir alguns elementos da tradição apostólica. Apresentando essas notas dispersas, Ananias acrescentava:

— Verbalmente, tenho de cor quase todos os ensinamentos; mas, no que se refere à parte escrita, aqui tens tudo que possuo.


O moço convertido recebeu as anotações, assaz admirado. Debruçou-se imediatamente sobre os velhos rabiscos e devorava-os com indisfarçável interesse.

Depois de refletir alguns minutos, acentuava:

— Se possível, pedir-vos-ia deixar-me estes preciosos ensinamentos, até amanhã. Empregarei o dia em copiá-los para meu uso particular. O estalajadeiro me comprará os pergaminhos necessários.

E como que já iluminado daquele espírito missionário que lhe assinalou as menores ações, para o resto da vida, ponderava atento:

— Precisamos estudar um meio de difundir a nova revelação com a maior amplitude possível. Jesus é um socorro do Céu. Tardar na sua mensagem é delongar o desespero dos homens. Aliás, a palavra “evangelho” significa “boas notícias”. É indispensável espalhar essas notícias do Plano mais elevado da vida.


Enquanto o velho pregador do “Caminho” observava-o interessado, o convertido de Damasco chamou o hoteleiro para comprar os pergaminhos. Judas surpreendeu-se ao verificar a cura insólita. Satisfazendo-lhe a curiosidade, o jovem de Tarso falou sem rebuços:

— Jesus enviou-me um médico. Ananias veio curar-me em seu nome.

E antes que o homem se recobrasse do espanto, cumulava-o de recomendações a respeito dos pergaminhos que desejava, entregando-lhe a quantia necessária.

Dando largas ao entusiasmo que lhe ia nalma, dirigiu-se novamente a Ananias, expondo-lhe seus planos:

— Até aqui, ocupava o meu tempo no estudo e na exegese da ; agora, porém, encherei as horas com o espírito do Cristo. Trabalharei nesse mister até ao fim dos meus dias. Buscarei iniciar meu trabalho aqui mesmo em Damasco.


E, fazendo uma pausa, perguntava ao benfeitor que o ouvia em silêncio:

— Conheceis na cidade um rapaz fariseu de nome Sadoc?

— Sim, é quem tem chefiado as perseguições nesta cidade.

— Pois bem — continuava o jovem tarsense atencioso —, amanhã é sábado e haverá preleção na sinagoga. Pretendo procurar os amigos e falar-lhes publicamente do apelo que o Cristo me endereçou. Quero estudar vossas anotações ainda hoje, porque me darão assunto para a primeira prédica do Evangelho.


— Para ser sincero — disse Ananias com a sua experiência dos homens —, acho que deves ser muito prudente nesta nova fase religiosa. É possível que teus amigos da sinagoga não estejam preparados para receber a luz da verdade toda. A má-fé tem sempre caminhos para tentar a confusão do que é puro.

— Mas se eu vi Jesus, não tenho o direito de ocultar uma revelação incontestável — exclamou o neófito, como a salientar, antes de tudo, a boa intenção que o animava.

— Sim, não digo que fujas do testemunho — explicou, calmo, o velho discípulo —, mas devo encarecer a maior prudência nas atitudes, não pela doutrina do Cristo, superior e invulnerável a quaisquer ataques dos homens, mas, por ti mesmo.

— Por mim nada posso temer. Se Jesus me restituiu a luz dos olhos, não deixará de iluminar meus caminhos. Quero comunicar a Sadoc a ocorrência que deu novos rumos ao meu destino. E o ensejo não poderia ser mais oportuno, porque sei que hospeda em sua casa, ainda agora, alguns levitas de renome, recém-chegados de Chipre.

— Que o Mestre te abençoe os bons propósitos — disse o velho sorridente.


Saulo sentia-se feliz. A presença de Ananias confortava-o sobremodo. Como velhos e fiéis amigos, almoçaram juntos. Em seguida e sempre satisfeito, o generoso enviado do Cristo retirou-se, deixando o ex-rabino todo entregue à meticulosa cópia dos textos.

No dia seguinte, Saulo de Tarso levantou-se lépido e bem disposto. Sentia-se revigorado para uma vida nova. As recordações amargas lhe desertaram da memória. A influência de Jesus enchia-o de alegrias substanciosas e duradouras. Tinha a impressão de haver aberto uma porta nova em sua alma, por onde sopravam céleres as inspirações de um mundo maior.

Depois da primeira refeição, não obstante o dissabor que a atitude de Sadoc lhe causara, procurou avistar-se com o amigo, levado pela sinceridade que lhe pautava os mínimos atos da vida. Não o encontrou, contudo, na residência particular. Um servo informou que o amo saíra com alguns hóspedes em direção à sinagoga.


Saulo foi até lá. Os trabalhos do dia estavam iniciados. Fora feita a leitura dos textos de Moisés. Um dos levitas de Citium havia tomado a palavra para os respectivos comentários.

A entrada do ex-rabino provocou curiosidade geral. A maioria dos presentes tinha conhecimento da sua importância pessoal, bem como do seu verbo ardoroso e seguro. Sadoc, porém, ao vê-lo, fez-se pálido, e mais ainda quando o jovem de Tarso lhe pediu uma palavra em particular. Embora contrafeito, foi-lhe ao encontro. Cumprimentaram-se sem dissimular a nova impressão que, já agora, mantinham entre si.

Em face das primeiras observações do novel evangelista, formuladas em tom amável, o amigo de Damasco explicou, evidenciando o seu orgulho ofendido:

— De fato, sabia que estavas na cidade e cheguei mesmo a procurar-te na pensão de Judas; tais foram, porém, as informações do hoteleiro, que me abstive de ir ao teu aposento. E cheguei até a pedir-lhe segredo da minha visita. Com efeito, parece incrível que te rendesses, também tu, passivamente, aos sortilégios do “Caminho”! Não posso compreender semelhante transmutação em tua robusta mentalidade.

— Mas, Sadoc — replicou o jovem tarsense muito calmo —, eu vi Jesus ressuscitado…


O outro fez grande esforço para conter uma ruidosa gargalhada.

— Será possível — objetou com zombaria — que tua índole sentimental, tão contrária a manifestações de misticismo, tenha capitulado nesse terreno? Acreditarias mesmo em tais visões? Não poderias imaginar-te vítima de algum desfaçado adepto do carpinteiro? Tuas atitudes de agora nos causarão profunda vergonha. Que dirão os homens irresponsáveis, que nada conhecem da Lei de Moisés? E a nossa posição no partido dominante, da raça? Os colegas do farisaísmo hão de arregalar os olhos, quando souberem da tua clamorosa defecção. Quando aceitei o encargo de perseguir os companheiros do operário de Nazaret, reprimindo-lhes as atividades perigosas fi-lo pela amizade que te consagrava; e não te doerá a traição dos votos anteriores? Considera como se dificultará nosso escopo, quando se espalhar a notícia de que capitulaste perante esses homens sem cultura e sem consciência.


Saulo fitou o amigo, revelando imensa preocupação no olhar ansioso. Aquelas acusações eram as premissas do acolhimento que o aguardava no cenáculo dos velhos companheiros de lutas e edificações religiosas.

— Não — disse ele sentindo fundamente cada palavra —, não posso aceitar as tuas arguições. Repito que vi Jesus de Nazaret e devo proclamar que nele reconheço o Messias prometido pelos nossos profetas mais eminentes.

Enquanto o outro fazia largo gesto admirativo, ao observar aquela inflexão de certeza e sinceridade, Saulo continuava convicto:

— Quanto ao mais, considero que, a todo tempo, devemos e podemos reparar os erros do passado. E é com esse ardor de fé que me proponho regenerar minhas próprias estradas. Trabalharei, doravante, pela minha certeza em Cristo Jesus. Não é justo que me perca em ponderações sentimentalistas, olvidando a verdade; e assim procederei em benefício dos meus próprios amigos. Os amantes das realidades da vida sempre foram os mais detestados, ao tempo em que viveram. Que fazer? Até aqui, minhas pregações nasciam dos textos recebidos dos antepassados veneráveis, mas, hoje, minhas asserções se baseiam não somente nos repositórios da tradição, senão também na prova testemunhal.


Sadoc não conseguiu ocultar a surpresa.

— Mas… a tua posição? E os teus parentes? E o nome? E tudo que recebeste dos que rodeiam tua personalidade com fervorosos compromissos? — perguntou Sadoc revocando-o ao passado.

— Agora, estou com o Cristo e todos nós lhe pertencemos. Sua palavra divina convocou-me a esforços mais ardentes e ativos. Aos que me compreenderem devo, naturalmente, a gratidão mais sagrada; entretanto, para os que não possam entender guardarei a melhor atitude de serenidade, considerando que o próprio Messias foi levado à cruz.

— Também tu com a mania do martírio?


O interpelado guardou uma bela expressão de dignidade pessoal e concluiu:

— Não posso perder-me em opiniões levianas. Esperarei que o teu amigo de Chipre termine a preleção, para relatar minha experiência diante de todos.

— Falar nisso aqui?

— Por que não?

— Seria mais razoável descansares da viagem e da enfermidade, meditando melhor no assunto, mesmo porque tenho esperança nas tuas reconsiderações, relativamente ao acontecido.

— Sabes, porém, que não sou nenhuma criança e cumpre-me esclarecer a verdade, em qualquer circunstância.

— E se te apuparem? E se fores considerado traidor?

— A fidelidade a Deus deve ser maior que tudo isso, aos nossos olhos.

— É possível, no entanto, que não te concedam a palavra — ponderou Sadoc após esbarrar com a força daquelas profundas convicções.

— Minha condição é bastante para que ninguém se atreva a negar-me o que é de justiça.

— Então, seja. Responderás pelas consequências — concluiu Sadoc constrangido.


Naquele momento, ambos compreenderam a imensidão da linha divisória que os extremava. Saulo percebeu que a amizade que Sadoc sempre lhe testemunhara baseava-se nos interesses puramente humanos. Abandonando a falsa carreira que lhe dava prestígio e brilho, via esfumar-se a cordialidade do outro. Mas, de tal cogitação, logo lhe veio à mente que, também ele, assim procederia, provavelmente, se não tivesse Jesus no coração.

Sereno e desassombrado, evitou aproximar-se do local onde se acomodavam os visitantes ilustres, buscando aproximar-se do largo estrado em que se improvisara uma nova tribuna. Terminada a dissertação do levita de Citium, Saulo surgiu à vista de todos os presentes, que o saudaram com olhares ansiosos. Cumprimentou, afável, os diretores da reunião e pediu vênia para expor suas ideias.

Sadoc não tivera coragem de criar um ambiente antipático, para deixar que tudo corresse à feição das circunstâncias, e foi por isso que os sacerdotes apertaram a mão de Saulo com a simpatia de sempre, acolhendo com imensa alegria o seu alvitre.


Com a palavra, o ex-rabino ergueu a fronte, nobremente, como costumava fazer nos seus dias triunfais.

— Varões de Israel! começou em tom solene — em nome do Todo-Poderoso, venho anunciar-vos hoje, pela primeira vez, as verdades da nova revelação. Temos ignorado, até agora, o fato culminante da vida da Humanidade. O Messias prometido já veio, consoante o afirmaram os profetas que se glorificaram na virtude e no sofrimento. Jesus de Nazaret é o Salvador dos pecadores.

Uma bomba que estourasse no recinto, não causaria maior espanto. Todos fixavam o orador, atônitos.


A assembleia estava obstúpida. Saulo, contudo, prosseguia intrépido, depois de uma pausa:

— Não vos assombreis com o que vos digo. Conheceis minha consciência pela retidão de minha vida, pela minha fidelidade às leis divinas. Pois bem: é com este patrimônio do passado que vos falo hoje, reparando as faltas involuntárias que cometi nos impulsos sinceros de uma perseguição cruel e injusta. Em Jerusalém, fui o primeiro a condenar os apóstolos do “Caminho”; provoquei a união de romanos e israelitas para a repressão, sem tréguas, a todas as atividades que se prendessem ao Nazareno; varejei lares sagrados, encarcerei mulheres e crianças, submeti alguns à pena de morte, ocasionei um vasto êxodo das massas operárias que trabalhavam pacificamente na cidade para seu progresso; criei para todos os espíritos mais sinceros um regime de sombras e terrores. Fiz tudo isso, na falsa suposição de defender a Deus, como se o Pai Supremo necessitasse de míseros defensores!… Mas, de viagem para esta cidade, autorizado pelo Sinédrio e pela Corte Provincial, para invadir os lares alheios e perseguir criaturas inofensivas e inocentes, eis que Jesus me aparece às vossas portas e me pergunta, em pleno meio-dia, na paisagem desolada e deserta: — Saulo, Saulo, por que me persegues?


A essa evocação, a voz eloquente se enternecia e as lágrimas lhe corriam copiosas. Interrompera-se ao recordar a ocorrência decisiva do seu destino. Os ouvintes contemplavam-no assombrados.

— Que é isso? — diziam alguns.

— O doutor de Tarso graceja!… — afirmavam outros sorrindo, convictos de que o jovem tribuno estivesse buscando maior efeito oratório.

— Não, amigos — exclamou com veemência —, jamais gracejei convosco nas tribunas sagradas. O Deus justo não permitiu que minha violência criminosa fosse até ao fim, em detrimento da verdade, e consentiu, por misericórdia de acréscimo, que o mísero servo não encontrasse a morte sem vos trazer a luz da crença nova!…


Não obstante o ardor da pregação, que deixava em todos os ouvidos ressonâncias emocionais, rompeu no recinto estranho vozerio. Alguns fariseus mais exaltados interpelaram Sadoc, em voz baixa, quanto ao inesperado daquela surpresa, obtendo a confirmação de que Saulo, de fato, parecia extremamente perturbado, alegando ter visto o carpinteiro de Nazaret nas vizinhanças de Damasco. Imediatamente estabeleceu-se enorme confusão em toda a sala, porque havia quem visse no caso perigosa defecção do rabino, e quem opinasse por enfermidade súbita, que o houvesse dementado.

— Varões de minha antiga fé — trovejou a voz do moço tarsense, mais incisiva —, é inútil tentardes empanar a verdade. Não sou traidor nem estou doente. Estamos defrontando uma era nova, em face da qual todos os nossos caprichos religiosos são insignificantes.


Uma chuva de impropérios cortou-lhe repentinamente a palavra.

— Covarde! Blasfemo! Cão do “Caminho”!… Fora o traidor de Moisés!…

Os apodos partiam de todos os lados. Os mais afeiçoados ao ex-rabino, que se inclinavam a supô-lo vítima de graves perturbações mentais, entraram em conflito com os fariseus mais rudes e rigorosos. Algumas bengalas foram atiradas à tribuna com extrema violência. Os grupos, que se haviam atracado em luta, espalhavam forte celeuma na sinagoga, percebendo o orador que se encontravam na iminência de irreparáveis desastres.

Foi quando um dos levitas mais idosos assomou ao grande estrado, levantando a voz com toda a energia de que era capaz e rogando aos presentes acompanhá-lo na recitação de um dos Salmos de David. O convite foi aceito por todos. Os mais exaltados repetiram a prece, tomados de vergonha.


Saulo acompanhava a cena com profundo interesse.

Terminada a oração, disse o sacerdote, com ênfase irritante:

— Lamentemos este episódio, mas evitemos a confusão que em nada aproveita. Até ontem, Saulo de Tarso honrava as nossas fileiras como paradigma de triunfo; hoje, sua palavra é para nós um galho de espinhos. Com um passado respeitável, esta atitude de agora só nos merece condenação. Perjúrio? Demência? Não o sabemos com certeza. Outro fora o tribuno e apedrejá-lo-íamos sem pestanejar; mas, com um antigo colega os processos devem ser outros. Se está doente, só merece compaixão; se traidor, só poderá merecer absoluto desprezo. Que Jerusalém o julgue como seu embaixador. Quanto a nós, encerremos as pregações da Sinagoga e recolhemo-nos à paz dos fiéis cumpridores da Lei.


O ex-rabino suportou a increpação com grande serenidade a lhe transparecer dos olhos. Intimamente, sentia-se ferido no seu amor-próprio. Os remanescentes do “homem velho” exigiam revide e reparação imediata, ali mesmo, à vista de todos. Quis falar novamente, exigir a palavra, obrigar os companheiros a ouvi-lo, mas sentia-se presa de emoções incoercíveis, que lhe infirmavam os ímpetos explosivos. Imóvel, notou que velhos afeiçoados de Damasco abandonavam o recinto calmamente, sem lhe fazer sequer uma ligeira saudação. Observou, também, que os levitas de Citium pareciam entendê-lo, através de um olhar de simpatia, ao mesmo tempo que Sadoc fixava-o com ironia e risinhos de triunfo. Era o repúdio que chegava. Acostumado aos aplausos onde quer que aparecesse, fora vítima da própria ilusão, acreditando que, para falar com êxito, sobre Jesus, bastavam os louros efêmeros já conquistados ao mundo. Enganara-se. Seus cômpares punham-no à margem, como inútil. Nada lhe doía mais que ser assim desaproveitado, quando lhe ardia nalma a devoção sacerdotal. Preferia que o esbofeteassem, que o prendessem, que o flagelassem, mas não lhe tirassem o ensejo de discutir sem peias, a todos vencendo e convencendo com a lógica de suas definições. Aquele abandono feria-o fundo, porque, antes de qualquer consideração, reconhecia não laborar em benefício pessoal, por vaidade ou egoísmo, mas pelos próprios correligionários atidos às concepções rígidas e inflexíveis da Lei.


Aos poucos a sinagoga ficara deserta, sob o calor ardente das primeiras horas da tarde. Saulo sentou-se num banco tosco e chorou. Era a luta entre a vaidade de outros tempos e a renúncia de si mesmo, que começava. Para conforto da alma opressa, recordou a narrativa de Ananias, no capítulo em que Jesus dissera ao velho discípulo que lhe mostraria quanto importava sofrer por amor ao seu nome.

Acabrunhado, retirou-se do templo, em busca do benfeitor, a fim de reconfortar-se com a sua palavra.

Ananias não se mostrou surpreendido com a exposição das ocorrências.

— Vejo-me cercado de enormes dificuldades — dizia Saulo um tanto perturbado. — Sinto-me no dever de espalhar a nova doutrina, felicitando os nossos semelhantes; Jesus encheu-me o coração de energias inesperadas, mas a secura dos homens é de amedrontar os mais fortes.

— Sim — explicava o ancião paciente —, o Senhor conferiu-te a tarefa do semeador; tens muito boa vontade, mas, que faz um homem recebendo encargos dessa natureza? Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para que o esforço seja profícuo.


O neófito percebeu o alcance da comparação e perguntou:

— Mas, que desejais dizer com isso?

— Quero dizer que um homem de vida pura e reta, sem os erros da própria boa-intenção, está sempre pronto a plantar o bem e a justiça no roteiro que perlustra; mas aquele que já se enganou, ou que guarda alguma culpa, tem necessidade de testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar. Os que não forem integralmente puros, ou nada sofreram no caminho, jamais são bem compreendidos por quem lhes ouve simplesmente a palavra. Contra os seus ensinos estão suas próprias vidas. Além do mais, tudo que é de Deus reclama grande paz e profunda compreensão. No teu caso, deves pensar na lição de Jesus permanecendo trinta anos entre nós, preparando-se para suportar nossa presença durante apenas três. Para receber uma tarefa do Céu, conviveu com a Natureza apascentando rebanhos; para desbravar as estradas do Salvador, meditou muito tempo nos ásperos desertos da Judeia.


As ponderações carinhosas de Ananias caíam-lhe na alma opressa como bálsamo vitalizante.

— Quando hajas sofrido mais — continuava o benfeitor e amigo sincero —, terás apurado a compreensão dos homens — e das coisas. Só a dor nos ensina a ser humanos. Quando a criatura entra no período mais perigoso da existência, depois da matinal infância e antes da noite da velhice; quando a vida exubera energias, Deus lhe envia os filhos, para que, com os trabalhos, se lhe enterneça o coração. Pelo que me hás confessado, é possível não venhas a ser pai, mas terás os filhos do Calvário em toda parte. Não viste Simão Pedro, em Jerusalém, rodeado de infelizes? Naturalmente, encontrarás um lar maior na Terra, onde serás chamado a exercer a fraternidade, o amor, o perdão… É preciso morrer para o mundo, para que o Cristo viva em nós…


Aquelas observações tão sadias e tão mansas penetraram o espírito do ex-rabino como bálsamo de consolação de horizontes mais vastos. Suas palavras carinhosas fizeram-no recordar alguém que o amava muito. De cérebro cansado pelos embates do dia, Saulo esforçava-se por fixar melhor as ideias. Ah!… agora se lembrava perfeitamente. Esse alguém era . Veio-lhe de súbito o desejo de se avistar com o velho mestre. Compreendia a razão daquela lembrança. É que, também ele, pela última vez, lhe falara da necessidade que sentia dos lugares ermos, para meditar as sublimes verdades novas. Sabia-o em Palmira, na companhia de um irmão. Como não se recordara ainda do antigo mestre, que lhe fora quase um pai? Certamente, Gamaliel recebê-lo-ia de braços abertos, regozijar-se-ia com as suas conquistas recentes, dar-lhe-ia conselhos generosos quanto aos rumos a seguir.


Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com um olhar significativo, acrescentando sensibilizado:

— Tendes razão… Buscarei o deserto em vez de voltar a Jerusalém precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar a incompreensão dos meus confrades.

Tenho um velho amigo em Palmira, que me acolherá de bom grado. Ali repousarei algum tempo, até que possa internar-me pelas regiões ermas, a fim de meditar as lições recebidas.

Ananias aprovou a ideia com um sorriso. Ainda ficaram conversando longo tempo, até que a noite mergulhou a alma das coisas no seu velário de sombras espessas.


O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde reunião que se realizava nesse sábado de grandes desilusões para o ex-rabino.

Damasco não tinha propriamente uma igreja; entretanto, contava numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”. O núcleo de orações era em casa de uma lavadeira humilde, companheira de fé, que alugava a sala para poder acudir a um filho paralítico. Profundamente admirado, o moço tarsense enxergou ali a miniatura do quadro observado pela primeira vez, quando tivera a curiosidade invencível de assistir às célebres . Em torno da mesa rústica, juntavam-se míseras criaturas da plebe, que ele sempre mantivera separada da sua esfera social. Mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pedreiros rudes, lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras certas. Anciães de mãos trêmulas, amparando-se a cajados fortes, doentes misérrimos que exibiam a marca de enfermidades dolorosas. A cerimônia parecia ainda mais simples que as de Simão Pedro e seus companheiros galileus. Ananias chefiava e presidia o ato. Sentando-se à mesa, qual patriarca no seio da família rogou as bênçãos de Jesus para a boa vontade de todos. Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus, respigando algumas sentenças do Mestre Divino nos pergaminhos esparsos. Depois de comentar a página lida, ilustrando-a com a exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou da sua experiência pessoal, o velho discípulo do Evangelho deixava o lugar, percorria as filas de bancos e impunha as mãos sobre os doentes e necessitados. Comumente, segundo o hábito das primeiras células cristãs do primeiro século, ao memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto aos discípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura em nome do Senhor. Saulo serviu-se do bolo simples enternecidamente. Para sua alma, o cibo mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade universal. A água clara e fresca da bilha grosseira soube-lhe a fluido de amor que partia de Jesus, comunicando-se a todos os seres. Ao fim da reunião, Ananias orava fervorosamente. Depois de contar a visão de Saulo e a sua própria, nos comentários singelos daquela noite, pedia ao Salvador protegesse o novo servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais demoradamente na imensidão de suas misericórdias. Ouvindo-lhe a rogativa que o calor da amizade revestia de amavio singular, Saulo chorou de reconhecimento e gratidão, comparando as emoções do rabino que fora, com as do servo de Jesus que agora queria ser. Nas reuniões suntuosas do Sinédrio, jamais ouvira um companheiro exorar ao Céu com aquela sinceridade superior. Entre os mais afeiçoados só encontrara elogios vãos, prontos a se transformarem em calúnias torpes, quando lhes não podia conceder favores materiais. Em toda parte, admiração superficial, filha do jogo dos interesses inferiores. Ali, a situação era outra. Nenhuma daquelas criaturas desfavorecidas da sorte viera pedir-lhe facilidades; todos pareciam satisfeitos ao serviço de Deus, que assim os congregava a termo de trabalhos exaustivos e penosos. E, por fim, ainda rogavam a Jesus lhe concedesse paz de espírito para o seu empreendimento.


Terminada a reunião, Saulo de Tarso tinha lágrimas nos olhos. Na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, os Apóstolos galileus o trataram com especial deferência, atentos à sua posição social e política, senhor das regalias que as convenções do mundo lhe conferiam; mas os cristãos de Damasco impressionaram-no mais vivamente, arrebataram-lhe a alma, conquistando-a para uma afeição imorredoura, com aquele gesto de confiança e carinho, tratando-o como irmão.

Um a um, apertaram-lhe a mão com votos de feliz viagem. Alguns velhos mais humildes beijaram-lhe as mãos. Tais provas de afeto davam-lhe novas forças. Se os amigos do judaísmo lhe desprezavam a palavra, acintosos e hostis, começava agora a encontrar no seu caminho os filhos do Calvário. Trabalharia por eles, consagraria ao seu consolo as energias da mocidade. Pela primeira vez na vida, revelou interesse pelo sorriso das criancinhas. Como se desejasse retribuir as demonstrações de carinho recebidas, tomou nos braços um menino doente. Diante da pobre mãe sorridente e agradecida fez-lhe festas, acariciou-lhe os cabelos desajeitadamente. Entre os acúleos agressivos de sua alma apaixonada, começavam a desabrochar as flores de ternura e gratidão.


Ananias estava satisfeito. Junto dos irmãos de mais confiança, acompanhou o neófito até à pensão de Judas. Aquele modesto grupo desconhecido percorreu as ruas banhadas de luar, estreitamente unido e reconfortando-se em comentários cristãos. Saulo admirava-se de haver encontrado tão depressa aquela chave de harmonia que lhe proporcionava segura confiança em todos. Teve a impressão de que nas genuínas comunidades do Cristo a amizade era diferente de tudo que lhe dava expressão nos agrupamentos mundanos. Na diversidade das lutas sociais o traço dominante das relações cifrava-se agora, a seus olhos, nas vantagens do interesse individual; ao passo que, na unidade de esforços da tarefa do Mestre, havia um cunho divino de confiança, como se os compromissos tivessem o ascendente divino, original. Todos falavam, como nascidos no mesmo lar. Se expunham uma ideia digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e geral compreensão do dever; se versavam assuntos leves e simples, os comentários timbravam franca e confortadora alegria. Em nenhum deles notava a preocupação de parecer menos sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés, lhaneza de trato sem laivos de hipocrisia, porque, em regra, sentiam-se sob a tutela do Cristo, que, para a consciência de cada um, era o amigo invisível e presente, a quem ninguém deveria enganar.


Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na verdadeira acepção da palavra, Saulo chegou à estalagem de Judas, despedindo-se de todos profundamente comovido. Ele próprio surpreendia-se com o sabor de intimidade com que as expressões lhe afloravam aos lábios. Agora compreendia que a palavra “irmão”, largamente usada entre os adeptos do “Caminho”, não era fútil e vã. Os companheiros de Ananias conquistaram-lhe o coração. Nunca mais esqueceria os irmãos de Damasco.

No dia imediato, contratando um serviçal indicado pelo estalajadeiro, Saulo de Tarso, ao amanhecer, embora surpreendesse o dono da casa com o seu ânimo resoluto, pôs-se a caminho da cidade famosa, situada num oásis em pleno deserto.


Nas primeiras horas da manhã, saíam das portas de Damasco dois homens modestamente trajados, à frente de pequeno camelo carregado das necessárias provisões.

Saulo fizera questão de partir assim, a pé, de modo a iniciar a vida com rigores que lhe seriam sumamente benéficos mais tarde. Não viajaria mais na qualidade de doutor da Lei, rodeado de servos, sim como discípulo de Jesus, adstrito aos seus programas. Por esse motivo, considerou preferível viajar como beduíno, para aprender a contar, sempre, com as próprias forças. Sob o calor calcinante do dia, sob as bênçãos refrigeradoras do crepúsculo, seu pensamento estava fixo n’Aquele que o chamara do mundo para uma vida nova. As noites do deserto, quando o luar enche de sonho a desolação da paisagem morta, são tocadas de misteriosa beleza. Sob as frondes de alguma tamareira solitária, o convertido de Damasco aproveitava o silêncio para profundas meditações. O firmamento estrelado tinha, agora, para seu espírito, confortadoras e permanentes mensagens. Estava convicto de que sua alma havia sido arrebatada a novos horizontes, porque, através de todas as coisas da Natureza, parecia receber o pensamento do Cristo que lhe falava carinhosamente ao coração.




De Citium — Cício, cidade da ilha de Chipre. (Nota da Editora)