Relatos da Vida [FEB]

Capítulo XII

De atalaia



Não, meu amigo. Não diga que nós, os companheiros desencarnados, ressurgimos da morte convertidos em feitores intolerantes, na construção da fé.

Quando você examina o zelo natural com que pretendemos defender os princípios de Allan Kardec, para que a Doutrina Espírita avance, pura, na hora presente de profundas transições, parece surpreender em nós a valentia de Torquemada, mentalizando fogueiras e remoendo perseguições.

Entretanto, não é assim.

Se você estivesse fora do carro fantasioso da carne, a modo de cavaleiro desmontado, com a obrigação de varar, passo a passo, o próprio caminho, decerto pensaria de outra forma.

Ignoro se você já terá penetrado num grande hospício; contudo, é possível saiba você que quase todos os internados no manicômio são criaturas absolutamente fora da realidade.

Temos aí supostos reis, empertigando a cabeça escaveirada; fidalgos imaginários, ostentando calhaus à guisa de brilhante; caprichosos proprietários, sobraçando papel inútil por documento valioso, e até mesmo pobres irmãos de olhar fusco, acreditando-se animais em posturas excêntricas.

O psiquiatra chega, inquieto, a semelhante submundo da mente enfermiça, coça a cabeça, examina a clientela e aplica, discriminadamente, o barbitúrico e a insulina, o eletrochoque e a lobotomia; no entanto, raramente consegue rearticular, de todo, o raciocínio dos alienados que o desequilíbrio ensandece.

Essa, meu caro, é a única imagem de que me lembro para exprimir o quadro que nos toma, de assalto, após a desencarnação. Guarda-se a ideia de que a paisagem social da Terra, quase toda ela, está cercada de Espíritos dementados, em cujos cérebros o discernimento sofre eclipse doloroso. Milhões dos que já se desamarraram da carne prosseguem, aqui, psiquicamente jungidos à cristalizada reminiscência daquilo que foram entre os homens, afazendo-se à teimosia recalcitrante, quais se fossem donos de pessoas e honrarias, terras e fazendas, casas e posses, objetos e coisas. Há quem se julgue comandante do povo, gritando, debalde, nas trevas de si mesmo; quem se arroga na posição do senhor da retaguarda, reclamando situações que não voltam; quem se presume santo, carregando paixões subalternas; e há exércitos de infelizes, aprisionados em pavorosas ilusões, alimentadas pelas inteligências bestializadas no vampirismo ou na delinquência.

Isso tudo, porque os tabus de todas as procedências ainda dominam a vida mental da maioria dos espíritos encarnados, obstruindo-lhes a visão mais ampla na direção da imortalidade. E convenhamos que, na Terra de agora, o Espiritismo simples e sereno é a maior escola de libertação da mente, o abrigo seguro para o entendimento religioso da vida, no qual aprendemos que todos estamos entregues a nós mesmos, em matéria de responsabilidade perante as Leis Divinas, e que todos receberemos, na Terra ou alhures, segundo as nossas obras.

É por observar de perto as consequências terríveis das mentiras e dos preconceitos humanos, nas rotas do Espírito, que prosseguiremos trabalhando pela preservação da Doutrina Espírita, indene de dogmas e superstições, artificialismos e rituais.

Libertemo-nos, por dentro, para que a liberdade maior venha ao nosso encontro.

Finalizando, creio não seja cabível recorrermos, nesse aspecto do nosso estudo, aos exemplos de tolerância por parte do Cristo. Indubitavelmente, Jesus revelou-se por amigo e irmão de todos: entretanto, em nome da caridade e da solidariedade não se permitiu entrelaçar as mãos, politicamente, com Anás e Caifás, tanto quanto com outros distintos sacerdotes do seu tempo, a fim de que lhe injetassem convenções e escapes nas hígidas lições de que se fazia portador. Tentado ao ajuste, preferiu silenciar e morrer.

O Mestre Divino, certo, quis patentear-nos que o amor não vai sem a verdade e que a verdade, para ser defendida, precisará resistência, ainda mesmo que essa resistência reserve para si mesma apenas o clima do sarcasmo e a morte na cruz.


(.Humberto de Campos)