Verificando o meu aproveitamento no caso de Segismundo, Alexandre, sempre gentil, ao despedir-se dos Construtores, dirigiu-se ao diretor deles, asseverando:
— Agradeço a você, Apuleio, quanto fez por André nestes últimos dias. Nosso companheiro não esquecerá o seu concurso amável.
O diretor sorriu, disse-me palavras de encorajamento, e, quando se dispunha a sair, em definitivo, meu orientador lhe observou:
— Nosso amigo porém, necessita consolidar os ensinamentos recebidos. André acompanhou um caso normal de reencarnação, no qual um esposo honesto cedeu, inicialmente, aos nossos rogos para que Segismundo renascesse com a serenidade imprescindível. Viu, de perto, um coração maternal sensível e devotado, e permaneceu, em estudo, numa câmara conjugal defendida pelo poder sagrado da prece e reconfortada pela proteção do Plano superior. Entretanto, seria justo observasse algum processo diferente, dos que existem por aí às centenas, em que somos defrontados por obstáculos de toda espécie. Ficaria, desse modo, habilitado a conhecer a extensão e complexidade de nosso esforço em defender companheiros imprevidentes, que menosprezam a responsabilidade moral, fugindo aos compromissos.
E, fixando um gesto de carinho fraterno, interrogou:
— Não terá você, presentemente, um caso dessa ordem, onde André possa recolher as lições precisas?
— Temos, sim, — esclareceu Apuleio, atenciosamente, — temos o caso Volpíni.
E, porque Alexandre ignorasse o processo a que se referia, continuou:
— Logo depois de organizar as bases de Segismundo, ocupei-me de outros serviços da mesma natureza e, entre esses, foi confiada à nossa vigilância a tarefa relativa ao irmão que mencionei. Creiam que tudo movimentamos no setor de assistência para evitar o fracasso do trabalho, entretanto, tenho a experiência por absolutamente impraticável.
— Quer dizer, então, — redarguiu o meu instrutor com sabedoria, — que a futura mãe não correspondeu à expectativa do nosso plano de ação…
— Isto mesmo, — prosseguiu o interlocutor. Enquanto os desequilíbrios se localizam na esfera paternal ou procedem da influência de entidades malignas, simplesmente, há recursos a interpor; no entanto, se a desarmonia parte do campo materno, é muito difícil estabelecer proteção eficiente. A pobre criatura, por duas vezes sucessivas, provocou o aborto inconsciente pelo excesso de leviandades e, atualmente, será vítima das próprias irreflexões pela terceira vez, segundo parece. Debalde temos oferecido o socorro de que podemos dispor. A infeliz deixou-se empolgar pela ideia de gozar a vida e irmanou-se a entidades desencarnadas da pior espécie, que, para acentuar os seus planos sombrios, separaram-na do próprio companheiro, ansiosas por lhe precipitarem o coração na esfera das emoções baixas.
Enquanto Alexandre o ouvia, em silêncio, Apuleio continuou, depois de longo intervalo:
— Volpíni atingiu agora o sétimo mês de gestação da nova forma física, mas a noite próxima será decisiva para ele. Já recebi um apelo dos colaboradores que ficaram nas imediações do caso, em serviço ativo, no sentido de evitar certas extravagâncias da futura mãe, projetadas para hoje; entretanto, não creio sejamos por ela obedecidos. A organização fetal não se encontra em condições de suportar novos desequilíbrios e, se a pobrezinha não despertar para o dever, abrirá, ainda hoje, uma terceira falência. Se André puder vir conosco, dar-nos-á muito prazer.
Alexandre que me parecia muito circunspecto, naquele momento, dando a ideia de quem não desejava cultivar qualquer comentário menos edificante, considerou:
— Nosso companheiro irá com vocês. Por vezes, para preservar convenientemente a saúde, é preciso conhecer as enfermidades; para cultivar o bem, é necessário não ignorar a existência do mal.
Com efeito, à noitinha, chegávamos, Apuleio, dois companheiros dele e eu, a uma residência confortável e de aparência distinta.
O grande relógio de parede mostrava vinte horas menos cinco minutos.
Seguindo o diretor, penetramos um aposento bem mobilado, onde se encontravam três entidades desencarnadas, de horrenda figura, que, em virtude do baixo padrão vibratório, não perceberam a nossa presença. Conversavam entre si, combinando medidas detestáveis que não cabe relacionar aqui. A certa altura da palestra, porém, referiam-se ao caso da reencarnação, de maneira franca:
— Não sei, — comentou um daqueles perversos inimigos do bem, — por que arte infernal vem resistindo o intruso. Despejá-lo-emos na primeira oportunidade.
— Quando isto ocorre, — disse outro, — é que há “mãos de anjos” trabalhando por trás.
— Pois que vão para o inferno! — Exclamou o que parecia mais cruel. — Veremos quem pode mais. Cesarina já nos pertence noventa por cento. Atende perfeitamente aos nossos propósitos. Porque um filho intrujão em nossos planos? É preciso combater até ao fim.
— No entanto, — considerou o terceiro, que, até então, se mantinha em silêncio, — há mais de seis meses estamos trabalhando em vão por alijá-lo!
— Mas temos conseguido muito, — tornou o mais revoltado; — não creio que ele se possa aguentar por muito tempo. Talvez hoje façamos o resto. Um filho viria roubar-nos, talvez, a boa companheira com que contamos agora. Todas as atenções dela convergiriam para ele e o nosso prejuízo seria enorme. Mas, se existem “mãos de anjos” trabalhando, temos “mãos de demônios” para agir também. Já vencemos duas vezes; porque não vencer agora, igualmente?
— E se o filho vier, — considerou um dos interlocutores, — certamente virá o esposo de regresso. Não poderemos conservá-lo a distância, por mais tempo, caso isso se verifique.
— Isto, nunca! — Respondeu o adversário mais feroz, com inflexão sinistra.
Como era diferente aquela paisagem interior, comparativamente à câmara de Raquel, onde levara a efeito tão formosas observações, referentes à tarefa reencarnacionista! O aposento mantinha-se absolutamente desguarnecido de defesas magnéticas e não se via o movimento de visitação espiritual da Esfera superior que caracterizava a formação do novo corpo de Segismundo.
— Está observando? — falou Apuleio, gentil, — nem sempre a nossa tarefa se desdobra ao longo dos jardins afetivos. Muitas vezes, devemos operar sob verdadeiras tormentas de ódio, que desintegram nossos melhores elementos magnéticos de cooperação. Este caso é típico.
Recordei que a residência de Adelino se enchia diariamente de afeições do Plano espiritual, e perguntei:
— Mas, a futura mãe não dispõe de relações em nossa Esfera?
— De qualquer modo, — respondeu ele, — sempre temos bons amigos na zona superior àquela em que nos encontramos; todavia, em certas circunstâncias, afastamo-nos voluntariamente deles. Cesarina poderia contar com diversas amizades; no entanto, ela mesma se incumbe de obrigá-las à ausência.
Impressionado, considerei:
— Não terá ela, contudo, um pai ou mãe, em nossos Círculos espirituais, que tome a si o sacrifício de defendê-la?
— Tem um pai que a estima com extremos de afeto, — esclareceu o diretor, — no entanto, sofria imerecidamente pela filha leviana e grosseira, e tanto padeceu por ela que os seus superiores, em nossa colônia espiritual, submeteram-no a tratamento para olvido temporário da filha querida, até que ele possa se recordar e se aproximar dela sem angústias emotivas.
O assunto era novo para mim. Havia, então, recursos para aplicação do esquecimento no mundo das almas?
Apuleio sorriu, bondoso, e falou:
— Não tenha dúvida. Em nossa Esfera, a dureza e a ingratidão não podem perseguir o amor puro. Quando as almas reencarnadas se revelam impermeáveis ao reconhecimento e à compreensão, distanciamo-nos delas, naturalmente, ainda mesmo quando encerrem para nós valiosas joias do coração, até que se integrem no conhecimento das leis de Deus e se disponham a segui-las, em nossa companhia. Quando somos fracos, porém, embora muito amoráveis, e não nos sentimos com a precisa coragem para o afastamento necessário, se merecemos o auxílio de nossos Maiores, somos favorecidos com o tratamento magnético que opera em nós o esquecimento passageiro.
Nesse instante, Cesarina penetrou no quarto, seguida dos Espíritos Construtores, que velavam por Volpíni, o reencarnante.
Enquanto a senhora se sentava à frente de grande espelho, dando início a complicados arranjos de apresentação festiva, os cooperadores de Apuleio se aproximaram, saudando-nos, atenciosos.
— Infelizmente, — disse um deles ao chefe, — a situação é muito grave. É impossível prosseguir em nosso esforço de assistência, com o êxito desejável. Nossa irmã afunda-se, cada vez mais, nos desequilíbrios destruidores. Unindo-se voluntariamente, — e indicou as entidades viciosas que a cercavam, — a estes adversários infelizes, entrega-se, agora, a prazeres e abusos de toda sorte. Seus desvios sexuais, nos últimos dias, têm sido lastimáveis, e enorme é a quantidade de alcoólicos, aparentemente inofensivos, de que tem feito consumo sistemático. Aliados semelhantes distúrbios às vibrações desordenadas do plano mental, vemos que a posição de Volpíni é insustentável, não obstante nossos melhores esforços de socorro.
Apuleio ouviu as graves notificações em silêncio e observou em seguida:
— Já sei o que se projeta para esta noite.
— Sim, — considerou o interlocutor, — apelamos para a sua autoridade, porque a organização fetal não poderá resistir a uma nova investida.
O diretor convidou-me a examinar a gestante. Ao lado dela, permaneciam as entidades inferiores a que me referi, que demonstravam absoluta ignorância de nossa presença.
Cesarina, com o excessivo cuidado das mulheres demasiadamente vaidosas e inscientes da responsabilidade moral, utilizava certos recursos para disfarçar o aspecto da gravidez adiantada, deixando adivinhar que se preparava com esmero para uma noitada de fortes emoções.
Fixei minha atenção no feto, auxiliado pelo chefe dos Construtores, mas não pude esconder minha surpresa e compaixão.
O caso Volpíni era muito diferente do processo de reencarnação verificado em casa de Raquel. A forma física embrionária demonstrava manchas violáceas, revelando dilacerações. Pequeninos monstros, somente perceptíveis ao nosso olhar, nadavam no líquido amniótico, invadindo o cordão umbilical e apropriando-se da maior parte do delicado alimento reservado ao corpo em formação. Toda a placenta era assediada por eles, provocando-me terrível impressão.
Percebi, pela intensa anormalidade dos órgãos geradores, que o aborto não poderia demorar-se.
Apuleio, igualmente, endereçando-me expressivo gesto com a cabeça, acusava forte preocupação.
Abandonou subitamente o exame e falou-nos:
— Se a infeliz obcecada pelos prazeres criminosos não se detiver, nesta noite, a organização fetal será expelida até amanhã.
Depois de pensar alguns momentos, salientou:
— Tentarei o derradeiro recurso.
Apuleio dirigiu-se ao interior doméstico e voltou, seguido de uma senhora idosa.
— Esta, — disse-me ele, indicando-a, — é a dona da casa e velha amiga de Cesarina, suscetível de receber-nos a influenciação. Aproveitar-lhe-ei o concurso para que a nossa desventurada irmã, de futuro, não possa dizer que lhe faltou assistência e conselho adequado.
Num gesto de bondade, já observado por mim em diversos superiores do nosso Plano, colocou a destra sobre a fronte da recém-chegada, que se acercou de Cesarina com muita ternura, e falou:
— Minha amiga, estou receosa por você… Não vá. Desconfie de certas amizades, pouco dignas. Seu estado, Cesarina, é melindroso. Porque exceder-se? Uma festa de aniversário, em pleno bar, não pode servir às suas necessidades presentes. Abriguei você, em nossa residência, como se o fizesse a uma filha e devo estar vigilante. Nutro a esperança de vê-la reaproximar-se do esposo, que, segundo creio, deve estar ausente por simples questões de incompatibilidade de gênios, mas, se você não se defende do mal, como atender à situação?
Um dos infelizes seres da ignorância e da sombra que perseguiam Cesarina, por invigilância dela, envolveu-a nos braços, como se desejasse comunicar-lhe o seu estranho e perigoso magnetismo. Vi que as entidades inferiores presentes observavam de perto a senhora e lhe ouviam as palavras sensatas, porque todas exibiam gestos e demonstrações de revolta e desagrado, que não podemos registrar aqui.
A interpelada, deixando-se envolver pela influência neutralizante do mal, riu-se de modo franco e acrescentou:
— Tranquilize-se, minha boa Francisca. Não precisará ensinar-me virtude… Tenho meu compromisso para hoje, não posso faltar!…
— Não concordo, Cesarina, — tornou a interlocutora com energia, sob a inspiração direta de Apuleio, — nem estou fazendo pregação de virtude à sua consciência responsável. Quero despertar suas fibras de esposa e mãe. O homem, cujo convite você pretende atender, não merece confiança, não é digno de consideração. Além disso, seu organismo deve ser preservado. Não lhe dói a expectativa de prejudicar o filhinho? Não pondera o futuro?
E a respeitável amiga continuou advertindo com severidade maternal, enquanto a futura mãe de Volpíni se mantinha em franca posição de negativa e impermeabilidade.
Duas horas durou a conversação, na qual o diretor dos Construtores usou da caridade, da lógica e da paciência, nas mais altas doses; todavia, ao fim desse tempo, um automóvel fonfonou à porta.
Cerrando o pequeno estojo de perfumes, Cesarina abraçou a velha amiga desapontada e despediu-se:
— Adeus, voltarei mais tarde. Não tenho tempo a perder.
O veículo rodou a caminho das avenidas asfaltadas.
As entidades perturbadas seguiram no carro célere, mas nós, esperando a manifestação de Apuleio, ali permanecemos, aguardando-lhe a palavra.
Algo triste, o chefe de serviço dirigiu-se aos colaboradores, declarando:
— Podem regressar à nossa colônia, em descanso. Nada mais têm que fazer, por agora. O dever de todos foi bem cumprido.
E olhando para mim, significativamente, acrescentou:
— Irei, eu mesmo, em companhia de André, buscar Volpíni para recolhê-lo em lugar conveniente.
O ambiente era de consternação, porque, se os Espíritos Superiores são equilibrados, não são insensíveis.
Acompanhei Apuleio, durante longos minutos de silêncio, penetrando, em seguida, numa casa de barulho ensurdecedor.
O grande salão e departamentos reservados estavam repletos de homens e mulheres inquietos, excitados pela música bulhenta e estonteadora, mas a assembleia de desencarnados de condição grosseira era muito maior, tomada da mesma alucinação de perigoso prazer.
— Mantenha-se em defensiva, — advertiu-me o diretor; — são poucos os desencarnados, com reduzido tempo de experiência, que podem penetrar ambientes como este, para serviços de proteção.
Não nos cabe descrever as paisagens tristes, desdobradas ao nosso olhar. Cumpre-nos, tão somente, esclarecer que não tivemos dificuldade para reencontrar Cesarina em companhia de um cavalheiro menos escrupuloso, entre finas taças de alcoólicos, elegantemente disfarçados.
Apuleio aproximou-se e retirou Volpíni, que a ela se abraçava como criança semiconsciente. Em seguida, vi-o aplicar passes magnéticos em toda a região uterina, empregando infinito cuidado. Retomando Volpíni, que confiara às minhas mãos, para poder operar com eficiência, falou-me, calmo:
— Desliguei o reencarnante do santuário maternal; entretanto, não deveríamos esquecer de ministrar o devido socorro à mãe invigilante. Ela precisa continuar a luta terrestre, quanto possível, para aproveitar alguma coisa da oportunidade…
Retiramo-nos conduzindo o companheiro, prematuramente desligado, a uma organização socorrista, mas, depois de atender a todos os deveres que me competiam, desejei, na qualidade de médico, observar o que se passava com a pobre mulher, fracassada em sua missão sublime.
Nas primeiras horas da manhã, dirigi-me à residência que visitáramos na véspera.
Com grande surpresa, porém, verifiquei que Cesarina não se encontrava em casa. Não se passaram muitos minutos e uma vizinha interpelava a senhora que Apuleio influenciara, perguntando-lhe o que eu desejaria saber.
— Cesarina, — explicou a matrona, preocupada, — na manhã de hoje foi recolhida a uma casa de saúde, em estado grave.
No decorrer da rápida conversação, recolhi as informações necessárias, relativamente ao endereço, e procurei visitar, incontinenti, a infeliz criatura que deixáramos na festa elegante da véspera.
Fortemente impressionado, vim a saber que Cesarina, em gravíssimas condições, acabava de dar à luz uma criança morta.