Prosseguindo em meus estudos sobre os fenômenos mediúnicos de variada expressão, sempre que meus serviços habituais mo permitiam, regressava à Crosta, aprendendo e cooperando no grupo em que Alexandre funcionava na qualidade de orientador.
Minha frequência, porém, em virtude das obrigações por mim assumidas em nossa colônia espiritual, não podia ser assídua, razão por que procurava aproveitar as mínimas oportunidades a fim de enriquecer as minhas experiências.
Numa das reuniões a que compareci, um dos cooperadores de nossa Esfera aproximou-se do compassivo instrutor e pediu, humilde:
— Nossos companheiros encarnados, em solicitações sucessivas, insistem pela vinda do irmão Dionísio Fernandes, atualmente recolhido, como sabeis, numa organização de socorro. Alegam que a família se encontra inconsolável, que haveria conveniência na visita dele e que seria interessante ouvir um antigo companheiro de lutas doutrinárias…
Enquanto Alexandre ouvia em silêncio, o simpático colaborador prosseguiu, depois de ligeira pausa:
— Estimaríamos receber a devida autorização para trazê-lo… Poderia incorporar-se na organização mediúnica de nossa irmã Otávia e fazer-se ouvir, de algum modo, diante dos amigos e familiares…
O mentor pensou durante alguns momentos e redarguiu:
— Não tenho qualquer objeção pessoal, em face da providência que você sugere, meu caro Euclides; entretanto, embora se constitua o nosso grupo de cooperadores encarnados de excelentes amigos, não os vejo convenientemente preparados para o integral aproveitamento da experiência. Sobra em quase todos eles, na investigação e no raciocínio, o que lhes falta em sentimento e compreensão. Colocam a pesquisa muito acima do entendimento e, como você sabe, as organizações mediúnicas não são filtros mecânicos… Além disso, Dionísio conta com reduzido tempo em nossa Esfera; ainda não pôde nem mesmo retirar-se do asilo que o acolheu em nosso Plano. Adicionemos a esses fatores a intranquilidade da família, pouco observadora da fé viva, a diferença de vibrações da nova Esfera a que o nosso amigo procura adaptar-se, presentemente, a profunda emoção dele com essa reaproximação talvez prematura, a instabilidade natural do aparelhamento mediúnico e, possivelmente, concordaremos com a inoportunidade de semelhante medida.
Euclides, o interlocutor, advogando o pedido veemente do círculo, não se desencorajou e insistiu:
— Reconheço que a vossa palavra é sempre ponderada e amiga. Concordo em que não alcançaremos o objetivo desejado; todavia, reitero-vos a solicitação. Ainda mesmo que o fato não ultrapasse a feição de simples experiência… É que existem irmãos esforçados aos quais muito devemos aqui, no trabalho do bem diário ao próximo sofredor, e sentiríamos felicidade em demonstrar-lhes o testemunho do nosso reconhecimento e estima sincera…
Alexandre sorriu com a generosidade que lhe era característica e observou:
— Só possuo razões para endossar seus pedidos, e, já que você insiste na providência para atender aos companheiros que se sentem igualmente credores de sua confiança e estima, pode avisá-los de que Dionísio virá. Eu mesmo cuidarei de trazê-lo pessoalmente.
E como Euclides agradecesse tocado de imensa alegria, Alexandre encerrou a conversação, acrescentando:
— Faça a promessa para a noite de amanhã. É sempre mais fácil dar com alegria que receber com acerto.
Afastamo-nos.
Porque o interrogasse, quanto ao processo fenomênico da incorporação, o benigno instrutor esclareceu de boa vontade:
— Mediunicamente falando, as medidas são as mesmas adotadas nos casos de psicografia comum, acrescentando-se, porém, que necessitaremos proteger, com especial carinho, o centro da linguagem na zona motora, fazendo refletir nosso auxílio magnético sobre todos os músculos da fala, localizados ao longo da boca, da garganta, laringe, tórax e abdômen.
Atendendo-me as interpelações, o instrutor relacionou diversas elucidações de ordem moral, alusivas ao assunto, comentando as dificuldades para difundir nos corações terrenos os valores da consolação legítima, em virtude das exigências descabidas da pesquisa intelectual. Admirava-lhe a sabedoria profunda e a sublime compreensão das fraquezas humanas, quando atingimos a instituição de socorro a que Dionísio se recolhera, em plena região inferior, não muito distante da Crosta Terrestre.
Entendendo-se com os Espíritos do Bem, consagrados aos serviços do amor cristão, em zonas semelhantes, conduziu-me à presença do recém-desencarnado, que se mantinha sob forte excitação.
— Dionísio, — falou-lhe Alexandre, bondoso, após a saudação usual, — lembra-se do nosso grupo de estudos espiritualistas?
— Como não? e com que saudades! — Suspirou o interlocutor.
— Nossos amigos do círculo pedem a sua presença, pelo menos por alguns minutos, — prosseguiu o mentor, gentil, — e deliberei conduzi-lo até lá, para que você fale, não somente a eles, mas também aos familiares…
— Que ventura! — Exclamou Dionísio, quase chorando de contentamento.
— Ouça, porém, meu amigo! — Tornou Alexandre, sereno e enérgico, — é indispensável que você medite sobre o acontecimento. Lembre-se de que você vai utilizar um aparelho neuro-muscular que lhe não pertence. Nossa amiga Otávia servirá de intermediária. No entanto, você não deve desconhecer as dificuldades de um médium para satisfazer a particularidades técnicas de identificação dos comunicantes, diante das exigências de nossos irmãos encarnados. Compreende bem?
— Sim, — replicou Dionísio, algo desapontado, — estou agora no mundo da verdade e não devo faltar a ela. Recordo-me de que muitas vezes recebi as comunicações do Plano invisível, através de Otávia, com muitas prevenções, e, não raro, vacilei, acreditando-a vítima de inúmeras mistificações.
Alexandre, muito calmo, observou:
— Pois bem, agora chegou a sua vez de experimentar. E se, antigamente, era tão fácil para você duvidar dos outros, desculpe a fraqueza dos nossos irmãos encarnados, caso agora duvidem de seu esforço. É possível que não alcancemos o objetivo; entretanto, nossos colaboradores insistem pela sua visita e não devemos impedir a experiência.
Antes que Dionísio se internasse em novas considerações, o interlocutor rematou:
— Concentre-se, com atenção, sobre o assunto, peça a luz divina em suas orações e espere-me. Conduzi-lo-ei em nossa companhia, deixando-o, na residência da médium, com algumas horas de antecedência, para que você encontre facilidades no serviço de harmonização.
Despedimo-nos em seguida, registrando efusivos agradecimentos do interlocutor.
O caso interessava-me. Por isso mesmo, roguei a permissão de Alexandre para acompanhá-lo de mais perto.
Autorizado a fazê-lo, segui o instrutor que se dirigiu, no dia seguinte, à instituição a que Dionísio se recolhera, amparando-o convenientemente para a visita projetada.
Com a gentileza de sempre, Alexandre guiou-nos até à moradia da médium Otávia, onde Euclides, o benevolente amigo da véspera, nos aguardava, cheio de atenções.
O prestimoso mentor despediu-se com delicadeza extrema e, deixando-me em companhia dos novos colegas, acrescentou:
— A reunião dos companheiros encarnados terá início às vinte horas; todavia, entre dezoito e dezenove horas, estarei aqui de regresso, a fim de acompanhá-los ao nosso núcleo de serviço.
E, fixando-me, concluiu bondosamente:
— Aproveite a aproximação de Euclides, meu caro André. Um bom trabalhador tem sempre proveitosas lições a ensinar.
Euclides, sorrindo, agradeceu, comovido, e conduziu-nos ao interior doméstico, enquanto Alexandre se afastava noutra direção.
Detivemo-nos em humilde aposento.
— Nesta parte da casa, — explicou-nos o guia acolhedor, — a nossa irmã Otávia costuma fazer meditações e preces. A atmosfera reinante, aqui, é, por isso, confortadora, leve e balsâmica. Estejam à vontade. Em vista de ser hoje um dos dias consagrados ao serviço mediúnico, terminará ela os trabalhos da refeição da tarde, mais cedo, a fim de orar e preparar-se.
Consultei o mostruário do grande relógio de parede, não longe de nós, que marcava precisamente dezesseis horas, e manifestei o desejo de ver a nossa irmã que atuaria, naquela noite, como intermediária entre os dois Planos.
Deixando Dionísio no aposento a que me referi, Euclides conduziu-me a pequena cozinha, onde uma senhora idosa se mantinha atenta à preparação de alguns pratos modestos. Tudo limpeza, ordem e harmonia doméstica. Notei-a, porém, algo pálida, abatida…
Ouvindo-me a inquirição discreta, o companheiro informou:
— Otávia é uma excelente colaboradora de nossos serviços espirituais, mas, pela força das provas necessárias à redenção, permanece unida a um homem ignorante e quase cruel. Enquanto o companheiro brutal está ausente, nas horas do “ganha-pão”, a casa é tranquila e feliz, porquanto a nossa amiga não oferece hospedagem às entidades perturbadoras da sombra. Todavia, quando o infeliz Leonardo penetra este pequeno domínio, a situação se modifica, porque o pobre esposo é um legítimo “canteiro espinhoso”, no jardim deste lar. Faz-se acompanhar de perigosos elementos das zonas mais baixas…
— Não conseguiu ele identificar-se com a missão espiritualizante da esposa? — Perguntei, com interesse.
— Não, de modo algum, — explicou Euclides, sem titubear. — Não é novo para a compreensão elevada; contudo, é teimoso nos erros que lhe são próprios. Permite que a consorte nos ajude, em vista da insistência de parentes consanguíneos dele, dedicados à nossa causa e que, influenciados por nós, não lhe permitem afastá-la. A tarefa, porém, não é muito fácil, porque, se Otávia é dócil aos Espíritos do Bem, o esposo é obediente aos cultivadores do mal. Basta, às vezes, traçarmos um programa construtivo com a colaboração dela, para que Leonardo, cedendo aos portadores da treva, nos perturbe a ação, criando-nos graves dificuldades.
Percebendo que o abatimento da médium não me passava despercebido, Euclides acrescentou:
— Tão logo prometi ontem, alegremente, a vinda de Dionísio, desejoso de incentivar o bom ânimo dos amigos encarnados, contando com o concurso mediúnico de nossa irmã, piorou a situação psíquica do esposo imprevidente. Leonardo amanheceu hoje mais nervoso que de costume, embebedou-se pouco antes do almoço, insultou a companheira humilde e chegou mesmo a infligir-lhe tormentos físicos. Assustada, a bondosa senhora sofreu tremendo choque nervoso que lhe atingiu o fígado, encontrando-se, no momento, sob forte perturbação gastrintestinal. Por isso, a alimentação dela foi muito deficiente durante o dia e não tem podido manter a harmonia precisa da mente para atender, com exatidão, aos nossos propósitos. Já trouxe diversos recursos de assistência, inclusive a cooperação magnética de competentes enfermeiros espirituais, para levantar-lhe o padrão das energias necessárias, e só por isto é que a pobrezinha ainda não tombou acamada, embora se encontre bastante enfraquecida, apesar de todos os socorros.
Algo desapontado, Euclides considerou, após curto silêncio:
— Como sabe, a harmonia não é realização que se improvise, e, se nós, os desencarnados devotados ao bem, estamos em luta frequente pela nossa iluminação íntima, os médiuns são criaturas humanas, suscetíveis às vicissitudes e aos desequilíbrios da Esfera carnal…
— Oh! — Exclamei, fixando a pobre mulher, — não teremos alguém que a substitua? Ela está quase cambaleante…
— Todos os serviços exigem preparo, treinamento, — observou o meu interlocutor, sensatamente, — e não poderemos trazer alguém que faça as vezes de Otávia, dum instante para outro.
— Não supõe que ela deveria ser feliz para ser mais útil? — Indaguei.
— Quem sabe? — Respondeu Euclides, com intenção. — A mediunidade ativa e missionária não é incompatível com o bem-estar e, a rigor, todas as pessoas que gozam de relativo conforto material, poderiam disputar excelentes oportunidades de serviço em seus quadros de trabalho e edificação; entretanto, as almas encarnadas, quando favorecidas pela tranquilidade natural da existência física, se mantêm na região de serviço comum que lhes é própria às necessidades individuais, e, como o cumprimento do dever com exatidão já representa grande esforço, raramente ultrapassam a fronteira das obrigações legítimas, em busca do campo divino da renunciação. A luta intensiva, porém, dilata as aspirações íntimas. O sofrimento, quando aceito à luz da fé viva, é uma fonte criadora de asas espirituais.
A essa altura dos esclarecimentos fraternos, o companheiro sorriu e observou:
— Formulando semelhantes considerações, não queremos dizer que a mediunidade construtiva deva ser apanágio dos corações algemados à dor. Isto não. As missões da Espiritualidade Superior pertencem a todas as criaturas de boa vontade. Apenas expressamos a nossa convicção de que almas existem, fervorosas no ideal do Bem e da Verdade, que se valem dos obstáculos para melhor escalarem o monte da redenção divina.
A dona da casa terminara a tarefa de aprontar o jantar humilde e, antes que o esposo voltasse ao lar, dirigiu-se ao quarto íntimo, em que, conforme a notificação de Euclides, costumava fazer as suas preces preparatórias.
Penetramos o aposento em sua companhia.
Euclides acomodou Dionísio ao lado dela, e, enquanto a médium se concentrava em oração, o dedicado amigo aplicava-lhe passes magnéticos, fortalecendo os nervos das vísceras e ministrando, ao que percebi, vigorosas cotas de força, não somente às fibras nervosas, mas também às células gliais.
Dona Otávia pedia a Jesus bastante energia para o cumprimento de sua tarefa, comovendo-nos a sua rogativa silenciosa, simples e sincera. Meditou na promessa que os amigos espirituais haviam levado a efeito, na véspera, relativamente à comunicação de Dionísio, recém-desencarnado. Procurava dispor-se ao concurso mediúnico eficiente, tentando isolar a mente das contrariedades de natureza material. Aos poucos, sob a influenciação de Euclides, formou-se um laço fluídico que ligou a médium ao próximo comunicante. O companheiro que preparava o trabalho recomendou ao amigo desencarnado falasse a Dona Otávia, com todas as suas energias mentais, organizando o ambiente favorável para o serviço da noite.
Dionísio começou a falar-lhe de suas necessidades espirituais, comentando a esperança de fazer-se sentir, junto da família terrena e dos antigos colegas de aprendizado espiritualista, notando eu que a médium lhe registrava a presença e a linguagem, em forma de figuração e lembrança, aparentemente imaginárias, na esfera do pensamento. Observei, com interesse, a extensão da fronteira vibratória que nos separa dos Espíritos encarnados, porquanto, em nos achando ali, em frente a uma organização mediúnica adestrada, precisávamos iniciar o trabalho de comunicação, como quem estivesse muitíssimo distante, vencendo, devagarinho, os círculos espessos de resistência.
Longo tempo durou o singular diálogo, reconhecendo que, ao fim da interessante conversação prévia, entre a médium e o comunicante, palestra essa que foi plenamente orientada pelo tato fraterno de Euclides, em todas as minúcias, Dona Otávia parecia mais ambientada com o assunto, aderindo com clareza ao que Dionísio pretendia fazer.
Tudo ia bem e não me cansava de admirar aquele inesperado serviço de preparação mediúnica, quando aconteceu alguma coisa muito grave. O dono da casa chegava, de volta, quebrando, de modo violento, a tranquilidade das vibrações em que nos mergulhávamos. Vociferando, logo à entrada, obrigou a esposa a levantar-se, de súbito. O infortunado senhor semelhava-se a um brutamontes, nas suas características de tirano doméstico. Algumas entidades galhofeiras e perversas constituíam-lhe o séquito.
Dona Otávia serviu o jantar, fazendo prodígios no campo da paciência evangélica.
Finda a refeição muito simples, a que compareceu o esposo junto de dois filhos maiores, a nobre senhora falou ao marido em particular:
— Leonardo, como você sabe, irei hoje à reunião, saindo antes das oito.
— Quê?! — Exclamou o interlocutor, encharcado de vinho, a cofiar os bigodes grisalhos, — a senhora hoje não pode sair! Nada de sessões! Hoje, não!
Impressionado com aquela atitude intempestiva, perguntei a Euclides, que seguia a cena, muito calmo:
— E agora?
— Já previa a ocorrência, — redarguiu-me, com manifesta tristeza no olhar, — e pedi a uma de nossas irmãs trouxesse até aqui uma tia do bulhento Leonardo, que intercederá a favor de nossos desejos. Não devem tardar. Trata-se de pessoa a que se renderá, sem esforço.
Com efeito, enquanto Dona Otávia enxugava o pranto em silêncio, recompondo a mesa de refeições, ouviram-se palmas à porta.
Leonardo foi atender e, em breves minutos, uma entidade desencarnada, muito simpática, penetrava o interior, acompanhando uma velha senhora de semblante acolhedor e risonho.
A cooperadora de Euclides veio até nós, cumprimentando-nos, sorridente. Profundamente surpreendido, em face de tantos trabalhos para a organização de pequeno serviço consolador, fiz-me atento à conversação que se desdobrou entre os encarnados:
— Ainda bem que a luta do dia terminou, — disse a respeitável matrona, dirigindo-se à médium, depois das primeiras saudações, — vim até aqui para irmos juntas.
Otávia procurou esconder sua mágoa, sorriu com esforço, e respondeu:
— Ora, minha boa Georgina, hoje não posso… Leonardo está indisposto e pretende recolher-se mais cedo.
— Já sei, já sei, — observou a visitante, com carinho nas palavras e severidade nas atitudes, fixando o chefe da casa; — você, Otávia, tem compromisso e não pode faltar!
Em seguida, levantou-se, tocou os ombros do sobrinho, que se derramara no divã, e falou-lhe com franqueza:
— Meu filho, que você se regale em prazeres e adie a sua realização espiritual, por imprevidência e má vontade, eu não posso impedir; mas advirto-o, quanto aos deveres de sua mulher em nosso núcleo de iluminação, pedindo-lhe não se interponha entre ela e os desígnios superiores. Otávia é uma esposa exemplar, tem tolerado suas impertinências a vida inteira e já entregou ao seu Espírito de pai dois filhos maiores, rigorosamente educados na inteligência e no coração. Não lhe impeça agora o serviço divino. Poderia insurgir-me contra você, induzindo-a a resistir, mas prefiro avisá-lo de que a sua atuação contra o bem não ficará impune.
Observei que as palavras da veneranda senhora eram emitidas conjuntamente com grandes jatos de energia magnética, que envolviam Leonardo, obrigando-o a melhor raciocínio. Ele meditou, por alguns momentos, e respondeu, vencido:
— Otávia poderá ir, quando quiser, desde que seja em sua companhia.
A matrona agradeceu, estimulando-o no estudo das questões da Espiritualidade, e, quando se dispunham as duas senhoras a tomar o caminho do grupo de estudos, chegou Alexandre, de volta, a fim de acompanhar-nos, por sua vez.
Reconheci que o instrutor notou, de relance, o estado de abatimento da médium, percebendo as dificuldades que se opunham à prometida comunicação de Dionísio, mas, longe de se referir às advertências da véspera, ele próprio, agora, era quem se mostrava mais otimista, estimulando, ao que notei, o entusiasmo de Euclides a serviço do bem.
Atingimos o vasto salão daquela oficina de espiritualidade, quando faltava precisamente um quarto para as vinte horas.
Como sempre, os trabalhadores de nosso Plano eram numerosíssimos, nos múltiplos trabalhos de assistência, preparação e vigilância. Enquanto alguns amigos ansiosos e a família do comunicante, constituída de esposa e filhos, aguardavam a palavra de Dionísio, muito grande era o nosso esforço para melhorar a posição receptiva de Otávia.
Alexandre, como de outras vezes, esmerava-se em ministrar o exemplo da cooperação sadia. Determinou que alguns colaboradores dos nossos auxiliassem o sistema endocrínico, de maneira geral, e proporcionassem ao fígado melhores recursos para a normalização imediata de suas funções, estabelecendo-se determinado equilíbrio para o estômago e intestinos, em virtude das necessidades do momento, para que o aparelho mediúnico funcionasse com a possível harmonia.
Às vinte horas, reunida a pequena assembleia dos irmãos encarnados, foi iniciado o serviço, com a prece comovedora do companheiro que dirigia a casa.
Valendo-se do concurso magnético que lhe fora oferecido, a médium sentia-se francamente mais forte.
Mais uma vez, contemplava, admirado, o fenômeno luminoso da epífise e acompanhava o valioso trabalho de Alexandre na técnica de preparação mediúnica, reparando que ali o incansável instrutor se detinha mais cuidadosamente na tarefa de auxílio a todas as células do córtex cerebral, aos elementos do centro da linguagem e às peças e músculos do centro da fala.
Terminada a oração e levado a efeito o equilíbrio vibratório do ambiente, com a cooperação de numerosos servidores de nosso Plano, Otávia foi cuidadosamente afastada do veículo físico, em sentido parcial, aproximando-se Dionísio, que também parcialmente começou a utilizar-se das possibilidades dela. Otávia mantinha-se a reduzida distância, mas com poderes para retomar o corpo a qualquer momento num impulso próprio, guardando relativa consciência do que estava ocorrendo, enquanto que Dionísio conseguia falar, de si mesmo, mobilizando, no entanto, potências que lhe não pertenciam e que deveria usar, cuidadosamente, sob o controle direto da proprietária legítima e com a vigilância afetuosa de amigos e benfeitores, que lhe fiscalizavam a expressão com o olhar, de modo a mantê-lo em boa posição de equilíbrio emotivo. Reconheci que o processo de incorporação comum era mais ou menos idêntico ao da enxertia da árvore frutífera. A planta estranha revela suas características e oferece seus frutos particulares, mas a árvore enxertada não perde sua personalidade e prossegue operando em sua vitalidade própria. Ali também, Dionísio era um elemento que aderia às faculdades de Otávia, utilizando-as na produção de valores espirituais que lhe eram característicos, mas naturalmente subordinado à médium, sem cujo crescimento mental, fortaleza e receptividade, não poderia o comunicante revelar os caracteres de si mesmo, perante os assistentes. Por isso mesmo, logicamente, não era possível isolar, por completo, a influenciação de Otávia, vigilante. A casa física era seu templo, que urgia defender contra qualquer expressão desequilibrante, e nenhum de nós, os desencarnados presentes, tinha o direito de exigir-lhe maior afastamento, porquanto lhe competia guardar as suas potências fisiológicas e preservá-la contra o mal, perto de nós outros, ou a distância de nossa assistência afetiva.
A nossa atmosfera de harmonia, porém, não conseguia sossegar a perturbadora expectativa dos companheiros encarnados.
Entre nós, prevaleciam o controle, a disciplina, o autodomínio; entre eles, sopravam o desequilíbrio e a inquietação. Exigiam um Dionísio-homem pela boca de Otávia, mas nosso Plano lhes impunha um Dionísio-Espírito, pelas expressões da médium. A família humana aguardava o pai emocionado e ainda submetido a paixões menos construtivas, mas auxiliávamos o irmão para que sua alma se mantivesse calma e enobrecida, em benefício dos próprios familiares terrestres.
Falava o comunicante sob forte emotividade, mas Alexandre e Euclides, ocupando-se respectivamente dele e da intermediária, fiscalizavam-lhe as atitudes e palavras, para que se manifestasse tão somente nos assuntos necessários à edificação de todos, responsabilizando-o por todas as imagens mentais nocivas que a sua palavra criasse no cérebro e no coração dos ouvintes.
Em vista disso, o comunicante portou-se, em todos os pontos da mensagem falada, com admirável dignidade espiritual, fazendo, porém, verdadeiros prodígios de disciplina interior, para calar certas situações familiares e conter as lágrimas estancadas no coração.
Depois de falar quase quarenta minutos, dirigindo-se à família e aos colegas de luta humana, Dionísio despediu-se, repetindo tocante oração de agradecimento que Alexandre lhe ditou, comovido.
Nosso concurso decorrera com absoluta harmonia. O manifestante ofereceu os possíveis elementos de identificação pessoal, mas a pequena congregação de encarnados não recebeu a dádiva como seria de desejar. Interrompida a concentração mental com o encerramento, iniciaram-se as apreciações, verificando-se que quatro quintos dos assistentes não aceitavam a veracidade da manifestação. Somente a esposa de Dionísio e alguns raros amigos sentiram-lhe, efetivamente, a palavra viva e vibrante. Os próprios filhos internaram-se pela região da dúvida e da negativa.
Interpelado por um dos companheiros, expressou-se o mais velho:
— Impossível. Não pode ser meu pai. Se fosse ele o comunicante, teria naturalmente comentado nossa difícil situação em família…
Outro dos filhos de Dionísio ajuntou, levianamente:
— Não acredito em semelhante manifestação. Se fosse o papai, teria respondido às minhas interrogações íntimas. Será que no outro mundo os pais não mais se recordam do carinho devido aos filhos?
No grupo em palestra, formado num dos recantos da sala, começou a insinuação maledicente. Apenas a viúva e mais três irmãos de ideal se mantinham juntos da médium, incentivando-lhe o espírito de serviço, através de palavras e pensamentos de compreensão e alegria.
No agrupamento, onde os filhos externavam ingratas impressões, um amigo, tocado de cientificismo, afirmava, solene:
— Não podemos aceitar a pretensa incorporação de Dionísio, Otávia conhece todos os pormenores de sua vida passada, permanece quase que diariamente em contato com a família, e o Espírito comunicante não revelou particularidade alguma, pela qual pudesse ser identificado.
E depois de lançar a cinza do cigarro em pequenino vaso próximo, acrescentava, mordaz:
— O problema da mediunidade é questão muito grave na Doutrina; o animismo é uma erva daninha em toda a parte. Nosso intercâmbio com o Plano invisível está repleto de lamentáveis enganos.
Um dos rapazes presentes arregalou os olhos e perguntou, de súbito:
— Considera, porém, o senhor que Dona Otávia seria capaz de enganar-nos?
— Não, conscientemente, — tornou o cientificista com um sorriso superior, — entretanto, inconscientemente, sim. A maioria dos médiuns é vítima dos próprios desvairamentos emotivos. As personalidades comunicantes, em sentido comum, representam criações mentais dos sensitivos. Tenho estudado pacientemente o assunto para não cair, como acontece a muita gente, em conclusões fantásticas. Há que fugir do ridículo, meus amigos.
Continuando a sorrir, sarcástico, acentuava, triunfante:
— As emersões do subconsciente nas hipnoses profundas conseguem desnortear os mais valentes indagadores.
E, como se as palavras difíceis e as referências preciosas representassem a derradeira solução do assunto, prosseguia, enfático:
— A fim de corrigir os desbordamentos da imaginação no Espiritismo, criou-se a Metapsíquica para dirigir as nossas pesquisas intelectuais e não podemos esquecer que o próprio Richet morreu duvidando. Não lhe bastaram dezenas de anos consecutivos no estudo sistemático dos fenômenos. As próprias materializações não lhe asseguraram a certeza da sobrevivência. Portanto…
A reduzida assembleia escutava-lhe a palavra importante, como se ouvisse um oráculo infalível.
Noutro recanto do salão, comentava-se o mesmo assunto, discretamente.
— Não acredito na veracidade da manifestação, — afirmava, em voz baixa, uma senhora relativamente moça, dirigindo-se ao marido e às amigas. — Afinal de contas, a comunicação primou pela banalidade… Nada de novo. Para mim, as palavras de Otávia procedem dela mesma. Não senti qualquer sinal concludente, com respeito à possível presença do nosso velho amigo. Seria muito desinteressante a Esfera dos desencarnados, se apenas proporcionasse aos que nos precedem as frivolidades que o suposto Dionísio nos trouxe.
— Talvez tenha havido alguma perturbação, — disse o esposo da mesma senhora. — Não nos achamos livres dos mistificadores do Plano invisível…
O grupo abafava o riso franco.
Nunca experimentei tanta decepção como nesses instantes em que examinava o processo de incorporação mediúnica.
Ninguém ali ponderava as dificuldades com que Euclides, o bom cooperador espiritual, fora defrontado para trazer à casa o conforto daquela noite. Ninguém ponderava sobre a luta que o acontecimento representava para a própria médium, interessada em servir com amor na causa do bem. Os companheiros encarnados sentiam-se absolutamente credores de tudo. Os benfeitores espirituais, na apreciação dos presentes, não passariam de meros servidores dos seus caprichos, a voltarem do Além-Túmulo tão somente para atender-lhes ao gosto de novidades. Com raríssimas exceções, ninguém pensou em consolo, em edificação, em aproveitamento da experiência obtida. Ao invés do agradecimento, da observação edificante, cultivava-se a desconfiança e a maledicência.
Alexandre percebeu que Euclides acompanhava a cena com justificado desapontamento, agravado pelas advertências da véspera; mas, praticando o seu culto de amor e gentileza, o instrutor recomendou-lhe o afastamento, confiando-lhe aos cuidados a entidade comunicante, que deveria regressar, sem perda de tempo, ao lugar de origem.
O instrutor acercou-se de mim, compreendeu-me o espanto e falou:
— Não se admire, André. Nossos irmãos encarnados padecem complicadas limitações.
Mostrou a fisionomia confiante e sorridente, e acentuou:
— Além disto, como você observa, a maioria tem o cérebro hipertrofiado e o coração reduzido. Nossos amigos da Crosta, comumente, criticam em demasia e sentem muito pouco; estimam a compreensão alheia; todavia, raramente se dispõem a compreender os outros… Mas o trabalho é uma concessão do Senhor e devemos confiar na Providência do Pai, trabalhando sempre para o melhor.
Em seguida, fez algumas recomendações a alguns amigos que ficariam na tenda de realização espiritual e falou:
— Vamo-nos.
Ao nos afastarmos, rente à porta um cavalheiro dizia ao diretor dos serviços:
— Todos nós temos o direito de duvidar.
Não ouvi a resposta do interlocutor encarnado, mas Alexandre considerou, com a expressão fisionômica dum pai otimista e bondoso:
— Quase todas as pessoas terrestres, que se valem de nossa cooperação, se sentem no direito de duvidar. É muito raro surgir um companheiro que se sinta com o dever de ajudar.