Somente Amor

Capítulo XXX

Drama no mundo



O cavalheiro de renome e brilho,

Quarenta e dois dezembros de existência,

Tinha consigo um filho,

Irrequieto rapaz de vinte primaveras…


Viúvo, ele encontrara uma jovem bonita,

De maneiras sinceras,

Com quem se reuniria em casamento…

Mas conduzindo o filho de visita

Ao lar da noiva, em doce entendimento,

Eis que o rapaz por ela se apaixona

E, moço inteligente,

Ante a afeição que lhe transborda à tona

Do coração ardente,

Dá-se, de todo, à treva que o invade…

E, tão astuto quanto desumano,

Friamente executa um lamentável plano

De indescritível crueldade…


Notando, em certo dia, o pai acometido

Por resfriado leve,

Ministra-lhe o rapaz um forte entorpecente,

O genitor caído,

Em tremendo torpor, delira estranhamente,

E, de dose a outra dose, parecia

Mais doente e cansado, a cada novo dia.


O rapaz busca a jovem para vê-lo

E a moça foge amedrontada,

Fitando o descontrole e o desmazelo

Daquele que não mais conseguiria

Conceder-lhe migalha de alegria

Da ventura sonhada…


O resto da ocorrência

Qualquer pessoa pode imaginar:

O fazendeiro se afastou do lar,

Quase que inconsciente,

E, recolhido a um pensionato

Para enfermos da mente,

Muito longe de casa,

Eis que todo o equilíbrio se lhe arrasa,

Ante um texto legal que o destitui

Da regência de tudo o que possui.


O filho conseguira ilhá-lo em supremo desgosto,

O pai tanto reclama e tanto se tortura,

Que apresenta, rebelde e descomposto,

Um quadro indiscutível de loucura.

Não se descuida o moço… Mês a mês,

Envia ao pensionato o justo numerário

Para o custeio necessário

Das despesas do pai

Que deixara de vez..


Tempo vem, tempo vai

E, ao termo de dois anos,

De pesados e rudes desenganos,

Certa noite, o doente

Abandona a pensão e foge sem destino…


O jovem na cidade interiorana

Finalmente conquista

A ex-noiva do pai que acredita, inocente,

Na morte imaginária

Do homem bom que adorara, ternamente,

Através de uma carta simulada

Que o moço sedutor lhe expõe à vista.


O casal prosperou, vivendo agora

Na metrópole grande, em formosa mansão,

Um filho se lhe fez a base da união

E marido e mulher viviam, de hora à hora,

Em constante alegria…

De lembranças do pai nenhum sinal

Que lhes turvasse a vida

No azul do céu mental…

Festas, viagens, luxo, fantasia…

O menino — seis anos de ternura

Vive ligado à ama que o não solta,

Ambos sob a atenção de um guarda que os escolta,

Era o garoto um gênio de doçura…


Quase todos os dias,

Quando descia ao pátio ajardinado,

Via a criança um velho embriagado

A sorrir-lhe, por trás das grades de um portão.

— “Uma esmola, meu filho” — ele pedia,

Mostrando o rosto magro em desconsolo.

Ia o menino à ama e, em breve, aparecia,

Trazendo-lhe, feliz, grande porção de bolo.

— “Deus te abençoe, meu anjo!…” — O velho abençoava.

Curioso, o pequeno perguntava:

— “Onde é que você mora?”

O pedinte dizia: — “Aqui por fora,

Moro no Sítio da Calçada…”

A ama, compreendendo a alusão do mendigo,

Endereçava aos dois um olhar piedoso e amigo,

Sabendo com bondade e simpatia

Que a cena, no outro dia,

Seria renovada.


Certa noite em que os pais se afastaram mais cedo

Para uma longa festa em chácara distante,

Dois ágeis salteadores

Prendem o guarda num recanto escuro,

Depois, transpondo o muro,

Penetram na mansão… A dupla alcança

O aposento onde jaz a tranquila criança…

A ama é silenciada com mordaça,

O pequeno a gritar, segue sob a ameaça

Das mãos armadas dos sequestradores;

A dupla arrasta, a esmo, o menino que chora,

Mas, atingindo os três o portão de saída,

Alguém surge com fúria desmedida,

Um homem que se agarra ao pequeno indefeso

E clama em alta voz: “Sou da polícia!…

Sereis mortos, ladrões!… Meu carro aceso

Chegará neste instante…”


Ouvindo aquela voz tonitroante,

Um deles grita ao outro: — “Apague o velho tonto…

Depois, é dar no pé, nosso carro está pronto!…”

Enquanto o homem semi-embriagado

Guarda o pequeno ao lado,

Ouve-se um tiro e o pobre tomba e geme…


Despertam servidores,

Distanciam-se os dois sequestradores.


No piso do jardim, faz-se enorme alarido.

A governanta chega… O velho é conhecido,

É o mendigo que ali espera esmola,

O mesmo que a criança alivia e consola…


Nisso, o casal regressa à casa.

Um empregado descreve o acontecido

Enquanto a jovem mãe abraça o filho amado,

O dono da mansão busca ver o ferido,

Depois, grita ao mordomo:

“Temos aqui um herói, um amigo leal,

Ele salvou meu filho, o anjo que conheço…

Quero agora salvar-lhe a vida, a qualquer preço,

No melhor hospital…”

Mas o homem caído

Nele pousou o olhar profundo

E vendo-se a morrer, de segundo a segundo,

Disse, calmo e sereno:

“Meu filho, agora é tarde…

Se algo posso pedir, guarde o nosso pequeno…”

Depois, como quem vê nas Telas do Invisível

Acrescentou com a voz a elevar-se de nível:

— “Maria Clara veio… É a despedida…

Devo hoje segui-la em outra vida…


Ouvindo ali o nome

Da mãezinha que, há muito, falecera,

O dono da mansão, mais pálido que a cera,

Bradou, atormentado:

— “Quem é você? Alguém do meu passado?”


O velho sente o fim,

Estirado a gemer, no piso do jardim…

E, no esforço supremo a que se atira,

Na tremenda exaustão, em que ele expira,

Diz, ainda, no pranto que lhe cai:

— “Graças aos Céus, cumpri o meu desejo,

Ver você junto a mim é a luz maior que eu vejo…

Deus o abençoe, meu filho!… Eu sou seu pai!…”