Pedro Leopoldo (MG).
As alegrias ruidosas que precedem o carnaval de 1941 trazem aos olhos de minha imaginação um quadro estranho e doloroso.
Iniciavam-se os movimentos carnavalescos do ano findo. Era um crepúsculo radioso de domingo e, entre os gelados da avenida, enquanto o carioca procurava, ansioso, um lenitivo do calor sufocante, ferviam comentários, relativos ao curioso reinado de Momo.
Os morros estavam inflamados de samba. Nos bairros chiques, as meninas suburbanas ensaiavam batalhas de confete.
— Você quer ver a intensidade de nossos serviços? — perguntou-me um amigo espiritual, desejoso de instruir-se nas lições do meu mundo novo.
Interessado na sua atenção, acompanhei-o sem hesitar.
Chegamos a um casarão desabitado e silencioso.
— Espera! — disse-me o companheiro, com solicitude.
Aquietamo-nos num recanto sombrio. Daí a pouco, grande número de vultos escuros reuniam-se no vasto salão próximo. Dominou-me enorme impressão de assombro. Ainda não havia visto uma assembleia de Espíritos do mal. Alguns deles passaram por nós e não nos viram, mas como tenho visitado as assembleias propriamente humanas, sem que ninguém se aperceba de minha presença, não cheguei a experimentar maior admiração.
Confabulavam os circunstantes, entre si. Lembrei-me das histórias em que me contavam, na infância, as bravatas dos demônios ausentes do inferno. Minha comparação era justa. Aquelas entidades pareciam excessivamente perversas; os mais atrevidos expunham projetos ignominiosos. Alguns referiam-se a crimes cometidos, a vinganças efetuadas. O conjunto oferecia a impressão de uma quadrilha de malfeitores perfeitamente organizada. Havia chefes e sequazes, como se as organizações criminosas da Terra tivessem sua continuação no plano invisível.
Dentre todas as palestras ouvidas, um fato despertou particularmente minha atenção.
Uma entidade que parecia mais inexperiente, dando a ideia de um auxiliar de serviço ansioso de remuneração, aproximou-se de um superior, deu-lhe conta das incumbências recebidas e, depois de receber-lhe a aprovação reclamou em tom de grande insistência:
— Tenho cumprido meus deveres com interesse, mas espero o concurso dos companheiros para minha vingança há mais de sete meses! Aquela mulher precisa morrer! Terá de aproximar-se de nosso convívio, sofrerá tudo o que sofri, entretanto, o auxílio de nossa união está sendo retardado…
O interpelado fixou nele o olhar estranho e falou:
— Espera um pouco ainda, tua satisfação aproxima-se. Não nos foi possível atender-te, antes, porque seria difícil em tempos normais. Vai chegar a época própria.
— Mas por que tenho aguardado tanto? — perguntou o outro, impaciente.
— Como sabes, esclareceu o superior, os tempos normais são de Deus. Dentro deles, pela vigilância de uma só pessoa, cooperam as disciplinas sociais, o pensamento dos Espíritos justos, a Influência indireta dos lares respeitáveis, as preces dos templos, os santuários abertos. Os que não erraram defendem as almas caídas. Encontramos, assim, muitos obstáculos. Mas já estamos nas vésperas dos tempos anormais. Esses são do homem, e o homem é inferior como nós mesmos. Quando há guerra ou loucura, só podem manter contato com Deus os que já adquiriram passagem livre, mas os outros caem no nosso nível, então os bons serviços podem ser feitos.
A entidade inexperiente ouviu as observações e sentenciou:
— Aqui no Rio não há guerra.
— Mas haverá o carnaval, disse o outro, convicto.
— E o movimento oferece tamanhas oportunidades?
— Como não? — acentuou o outro, nesses dias, todos os núcleos ou quase todos os centros de irradiação espiritual estarão mais ou menos em repouso. Os agrupamentos espíritas, de modo geral, não funcionam, as igrejas estarão de portas cerradas. Grande número dos bons lares estarão desertos, porque muitas famílias respeitáveis temem, instintivamente, nossa ação e se retiram para o interior. Os homens mais sensatos fazem retiro espiritual e não saem à rua, perturbando-nos os desígnios. Como vês, as energias mais sérias abandonam o campo à nossa atividade. As vozes de Cristo, com raras exceções, permanecerão caladas, receosas ou distraídas. Então é justo esperar resultados de nossas tarefas vingadoras.
Confabularam, ainda, por algum tempo. Comentaram a situação da vítima e exaltaram o propósito mesquinho. A palestra expunha seu nome e sua habitação, e, intimamente, alimentei a ideia de acompanhar a questão até o fim.
Junto do companheiro, saí impressionado, enquanto sua palavra amorosa esclarecia a complexidade da tarefa de todos os bons trabalhadores de Jesus nos planos invisíveis que rodeiam a atividade do homem da Terra.
E veio o carnaval.
Admirado, segui de perto o esforço titânico das entidades consagradas ao bem, para que se atenuassem os crimes, para que o mal não deitasse mais longamente suas raízes venenosas.
Somente na quarta-feira de cinzas recordei os propósitos perversos da conversação ouvida, na assembleia empolgada por criminosos interesses.
Bastou um pensamento e me encontrei na casa humilde que a palestra iniciara.
Pequeno grupo de populares observava os funerais de uma moça pobre. Entrei. No ataúde que se fechava, sob as lágrimas pungentes de uma senhora que parecia extremamente sofredora, vi o cadáver de uma mulher jovem, aparentando trinta anos.
E enquanto voltava à rua espantado, meditando no instituto das provas, nas lutas enormes que se travam de espírito para espírito, escutei a voz da pequena multidão suburbana que discutia:
— Afinal, foi verificada a causa mortis? — perguntava um rapaz de gestos pedantes.
— Não sei, esclarecia uma senhora idosa, somente ontem à tarde, a família conseguiu descobri-la, agonizante.
— Era muito leviana — diziam outros.
Mas um velhote de semblante bonachão, parecendo um pândego em férias, tão displicente quanto a maioria dos homens deste século, punha termo ao assunto, exclamando. inconsciente:
— Ora! ora! mas para que tantas discussões?!… São cousas do carnaval.