Voltei

Capítulo II

À frente da morte



Todos nós que estudamos o Espiritismo consagrando-lhe as forças do coração, somos comumente assediados pela ideia da morte.

Como se opera a desencarnação? Que forças atuam no grande momento? De vez em quando, abordamos a experiência de pessoas respeitáveis e concluímos pela expectativa indagadora.

Por minha vez lera descrições e teses preciosas relativamente ao assunto, inclusive Bozzano e André Luiz. Desse último, recolhera informações que me sensibilizaram profundamente. Pouco antes de abrigar-me no leito de morte meditara-lhe as narrativas acerca da desencarnação de alguns companheiros e, perante os sintomas que me assaltavam não tive qualquer dúvida. Aproximava-se o fim do corpo.



Não obstante o valor com que passei a encarar a situação e apesar do velho hábito de convidar os amigos para o meu enterramento, em observações chistosas dos dias de bom humor, descansei o organismo extenuado na posição horizontal, mesmo porque me era totalmente impossível agir de outro modo.

O Irmão Andrade, Espírito benemérito dedicado à Medicina, com quem tive a alegria de colaborar alguns anos, recomendara absoluto repouso e tão insistente se fizera o conselho que fui obrigado a abandonar as últimas atividades doutrinárias.

O repouso físico, porém, agravava-me as preocupações mentais. O impedimento das mãos impunha-me verdadeira revolução íntima. No silêncio do quarto os pensamentos como que se me evadiam do cérebro, postando-se ao meu lado a argumentarem comigo. Alguns em posição simpática, outros em atitude adversa.

— “Velho Jacob — proclamavam no fundo, — você agora deixará as ilusões da carne. Viajará de regresso à realidade. Prepare-se. Que possui na bagagem? Não se esqueça de que a justiça tudo vê, tudo ouve, tudo sabe.”

Por vezes, interpunha recursos. A consciência compelia-me a retroceder aos problemas nos quais funcionara com desacerto. Todavia, buscava atenuantes às próprias faltas. Alegava incertezas e imperativos da vida.

Confesso, no entanto, que as incursões dentro de mim mesmo angustiavam-me o ser. Se a vigília se tornara menos agradável, o sono fizera-se-me doloroso. Não chegava a penetrar a região dos sonhos. Dispondo-me a dormir, supunha ingressar num modo inabitual de ser em que a verdade se me patenteava com mais clareza.

Via-me noutra paisagem, noutro clima, ante conhecidos e desconhecidos, qual se estivera perante enorme multidão de pessoas desejosas de se fazerem compreendidas por mim.

De outras ocasiões, minha memória recuava no tempo. Revia situações alegres e tristes, confortadoras e embaraçosas, de há muito extintas. Novamente no corpo exausto, sentia extremas dificuldades para reter as imagens e descrevê-las. O cérebro acusava vida intensa mas, no serviço de comunicação com o exterior sentia-me esgotado, tal qual um limão espremido.

A fé preparava-me o espírito, ante a grande transição; todavia, os receios avultavam, as preocupações cresciam sempre.



O desvanecimento da força física determinava fenômeno singular em minha alma.

Surpreendia-me enternecido e sentimentalista. Acostumara-me a tratar com o mundo dentro do maior senso prático. Estimava a pregação da caridade, convicto, porém, de que a energia seca era indispensável nas relações humanas.

Muita vez, na intimidade de companheiros encarnados e entidades desencarnadas, sentira-me ríspido, contundente.

Fazia frequentemente o possível por não desmerecer a confiança dos que me estimavam, entretanto, nem sempre sabia ser doce na extensão da personalidade. Semelhante traço individual, que as lutas ásperas da experiência humana me impuseram, representava motivo de não poucos dissabores para mim, porque, no íntimo, aspirava a servir à fraternidade legítima, em nome do Cordeiro de Deus.

Prostrado agora, inesperada sensibilidade passou a dirigir-me.

A renovação de caminhos obrigava-me a esquecer negócios e interesses terrenos.

Não me era mais possível governar o leme do barco material e esse impositivo, ao que me pareceu, proporcionava-me acesso a mim mesmo.

Afetava-me a necessidade de ternura e compreensão, como se naquelas horas estivesse ingressando na idade juvenil.

O homem da ativa humana, obrigado a defender-se e a preservar o bem dos que lhe eram caros, através de mil modos diferentes, estava passando…

Quanto a isto, a morte gradual era uma realidade.

Redescobria-me, afinal.

Não era eu mais que um homem comum, reclamando socorro e carinho. Trazia o coração opresso por aflições indizíveis. Se a dispneia me roubava a tranquilidade, os temores povoavam-me o espírito de tristezas e sombras. Jamais experimentara antes tamanha sensação de exílio e deslocamento.

Na Terra estava cercado de benditas dedicações por parte das filhas queridas e dos amigos abnegados e, a rigor, não me seduzia o regresso à juventude do corpo. Seriam saudades do Além o fator determinante da inquietude que me martirizava? Também não. Reconhecia os meus títulos de homem imperfeito que de modo algum deveria sonhar com o paraíso. Esperava-me, naturalmente, laborioso futuro em qualquer parte.

No entanto, ansiedades dolorosas pesavam-me na alma abatida. Eu, que fazia guerra às lágrimas, reconhecia-lhes, agora, o sumo poder; represavam-se-me nos olhos, com frequência, quando, a sós, me entregava às longas meditações. Orava, fervoroso, mas, ao correr da prece solitária sentimentalizava-me qual criança.

Entrara nas vésperas da total exoneração, quanto aos deveres terrestres. Via-me prestes a deixar o ninho planetário que me abrigara por dilatados anos…

A que porto demandaria?!…



Recordando as experiências do investigador De Rochas, identificava-me em singulares processos de desdobramento.

Recluso, na impossibilidade de receber os amigos para conversações e entendimentos mais demorados, em várias ocasiões me vi fora do corpo exausto buscando aproximar-me deles.

Nas últimas trinta horas, reconheci-me em posição mais estranha. Tive a ideia de que dois corações me batiam no peito. Um deles, o de carne, em ritmo descompassado, quase a parar, como relógio sob indefinível perturbação, e o outro pulsava, mais equilibrado, mais profundo…

A visão comum alterava-se. Em determinados instantes a luz invadia-me em clarões subitâneos mas, por minutos de prolongada duração, cercava-me densa neblina.

O conforto da câmara de oxigênio não me subtraía as sensações de estranheza.

Observei que frio intenso veio ferir-me as extremidades. Não seria a integral extinção da vida corpórea?

Procurei acalmar-me, orar intimamente e esperar. Após sincera rogativa a Jesus para que me não desamparasse, comecei a divisar à esquerda a formação de um depósito de substância prateada, semelhante a gaze tenuíssima…

Não poderia dizer se era dia ou se era noite em torno de mim, tal o nevoeiro em que me sentia mergulhado, quando notei que duas mãos caridosas me submetiam a passes de grande corrente. À medida que se desdobravam de alto a baixo, detendo-se com particularidade no tórax, diminuíam-se-me as impressões de angústia. Lembrei com força o Irmão Andrade, atribuindo-lhe o benefício e implorei-lhe mentalmente se fizesse ouvir, ajudando-me.

Qual se estivesse sofrendo melindrosa intervenção cirúrgica, sob máscara pesada, ouvi alguém a confortar-me: “Não se mexa! Silêncio! Silêncio!…”

Concluí que o término da resistência orgânica era questão de minutos.

Não se estendeu o alívio por muito tempo. Passei a registrar sensações de esmagamento no peito.

As mãos do passista espiritual concentravam-se-me agora no cérebro. Demoraram-se, quase duas horas, sobre os contornos da cabeça. Suave sensação de bem-estar voltou a dominar-me, quando experimentei abalo indescritível na parte posterior do crânio. Não era uma pancada. Semelhava-se a um choque elétrico de vastas proporções, no íntimo da substância cerebral. Aquelas mãos amorosas, por certo, haviam desfeito algum laço forte que me retinha ao corpo de carne…

Senti-me, no mesmo instante, subjugado por energias devastadoras.

A que comparar o fenômeno?

A imagem mais aproximada é a de uma represa, cujas comportas fossem arrancadas repentinamente.

Vi-me diante de tudo o que eu havia sonhado, arquitetado e realizado na vida. Insignificantes ideias que emitira, tanto quanto meus atos mínimos, desfilavam, absolutamente precisos, ante meus olhos aflitos, como se me fossem revelados de roldão por estranho poder, numa câmara ultra-rápida instalada dentro de mim. Transformara-se-me o pensamento num filme cinematográfico misteriosa e inopinadamente desenrolado, a desdobrar-se com espantosa elasticidade para seu criador assombrado, que era eu mesmo.

No trabalho comparativo a que era constrangido pelas circunstâncias tive a ideia de que até aquele momento havia sido o construtor de um lago cujas águas crescentes se constituíam de meus pensamentos, palavras e atos e a cuja tona minha alma conduzia a seu talante o barco do desejo; agora, que as águas se transportavam comigo de uma região para outra, via-me no fundo, cercado de minhas próprias criações.

Não tenho, por enquanto, outro recurso verbal para definir a situação. Recordei o livro de Bozzano, em que ele analisa o comportamento dos moribundos; entretanto, sou forçado a asseverar que todas as narrações que possuímos nesse sentido, comentam palidamente a realidade.


!


Observando-me relegado às próprias obras (por que não confessar?), senti-me sozinho e amedrontei-me. Esforcei-me por gritar, implorando socorro, porém os músculos não mais me obedeceram.

Busquei abrigar-me na prece, mas o poder de coordenação escapava-me.

Não conseguiria precisar se eu era um homem a morrer ou um náufrago a debater-se em substância desconhecida, sob extenso nevoeiro.

Naquele intraduzível conflito, lembrei mais insistentemente o dever de orar nas circunstâncias mais duras… Rememorei a passagem evangélica em que Jesus acalma a tempestade, (Mc 4:35) perante os companheiros espavoridos, rogando ao Céu salvação e piedade…

Forças de auxílio dos nossos protetores espirituais, irmanadas à minha confiança, sustaram as perturbações. Braços vigorosos, não obstante invisíveis para mim, como que me reajustavam no leito. Aflição asfixiante, contudo, oprimia-me o íntimo. Ansiava por libertar-me. Chorava conturbado, jungido ao corpo desfalecente, quando tênue luz se fez perceptível ao meu olhar. Em meio do suor copioso lobriguei minha filha Marta a estender-me os braços. Estava linda como nunca. Intensa alegria transbordava-lhe do semblante calmo. Avançou, carinhosa, enlaçou-me o busto e falou-me, terna, aos ouvidos:

— “Agora, paizinho, é necessário descansar.”

Tentei movimentar os braços de modo a retribuir-lhe o gesto de amor, mas não pude erguê-los. Pareciam guardados sob uma tonelada de chumbo.

O pranto de júbilo e reconhecimento, porém, correu-me abundante dos olhos. Quem era Marta, naquela hora, para mim? Minha filha ou minha mãe? Difícil responder. Sabia apenas que a presença dela representava o mundo diferente, em nova revelação. E entreguei-me, confiado, aos seus carinhos, experimentando felicidade impossível de descrever.




Obreiros da Vida Eterna — Nota do autor espiritual.


A Crise da Morte — Nota do autor espiritual.