Voltei

Capítulo VI

A passagem



Quantas vezes julguei que morrer constituísse mera libertação, que a alma, ao se desvencilhar dos laços carnais, voejaria em plena atmosfera, usando as faculdades volitivas. Entretanto, se é fácil alijar o veículo físico, é muito difícil abandonar a velha morada do mundo.

Posso hoje dizer que os elos morais são muito mais fortes que os liames da carne e, se o homem não se preparou, convenientemente, para a renúncia aos hábitos antigos e comodidades dos sentidos corporais, demorar-se-á preso ao mesmo campo de luta em que a veste de carne se decompõe e desaparece. E se esse homem complicou o destino, assumindo graves compromissos à frente dos semelhantes, através de ações criminosas, debater-se-á, chorará e reclamará embalde, porque as leis que mantêm coesos os astros do céu e as células da Terra lhe determinam o encarceramento nas próprias criações inferiores.

Se o bem salva e ilumina, o mal perde e obscurece.

Livremo-nos do débito, para que não venhamos a mergulhar no resgate laborioso, e corrijamos o erro, enquanto a hora é favorável, evitando a retificação muita vez dolorosa.



Agora que me desembaraçara do corpo grosseiro, então restituído à terra, mãe comum das formas mortais, intrigava-me o próprio destino.

Abandonamos o cemitério e, preocupado, reparei que Marta sorria afavelmente para mim.

Bezerra e o Irmão Andrade despediram-se com afetuoso abraço, declarando que nos esperariam, dentro de duas horas, em determinado sítio fronteiro ao mar.

Minha filha respondeu por mim, afirmando que não faltaríamos. Sozinhos, agora, perguntou-me se não pretendia dizer adeus ao antigo ninho doméstico.

Aquiesci, contente.

Com que ansiedade tornei ao ambiente familiar! Contemplei, enternecido, tudo o que fora amontoado pela ternura das filhas em derredor das minhas necessidades de velho e, de permeio com o pranto que me assomou abundante aos olhos, aí espalhei os meus pensamentos e votos de paz e reconhecimento.

Visitei o núcleo de trabalho em que tantas vezes fora beneficiado pela graça divina, abracei espiritualmente alguns amigos e pus-me a caminho, na direção da praia.

A que destino me conduzia?

Desencarnado como me achava, por que motivo não me vinha à lembrança, de súbito, toda a trama de reminiscências do passado? Por que razões não me recordava da anterior libertação espiritual? Onde se localizaria minha nova habitação? Na região europeia em que eu reencarnara ou na zona americana em que fora servido pelas benditas oportunidades do serviço e da experiência?

Marta assinalou-me a inquietude e recomendou-me paciência.

Teria os problemas solucionados, pouco a pouco.

Em rápidos minutos, alcançamos a praia.

Para onde me dirigiria?



Em meia hora congregava-se ao nosso lado reduzida assembleia. Espíritos protetores traziam outras criaturas tão necessitadas de assistência quanto eu mesmo.

Esclareceu-me Marta que outros desencarnados, carecentes de amparo, se reuniam aí, esperando também oportunidade de se ausentarem dos Círculos terrenos.

Admirado, notei-lhes o abatimento, o cansaço.

Exceção de dois dos quinze “convalescentes da morte” que se aglomeravam junto de mim sob o patrocínio de amigos abnegados, mostravam eles o olhar vitrificado e se movimentavam maquinalmente, orientados pelos benfeitores.

Acredito que, por minha vez, não revelava aspecto exterior mais atraente; todavia, não perdera a faculdade de analisar a situação.

Podia conversar à vontade e mesmo confortar um deles, dos de melhor posição psíquica, que simpatizou comigo à primeira vista.

O Irmão Andrade, novamente conosco, notificou-me, delicado, que nem todos os socorridos se haviam desencarnado na véspera. Alguns permaneciam liberados desde alguns dias, mas não se apresentavam em condições de seguir adiante, senão naquela noite formosa e pacífica. Asseverou que não era tão fácil abandonar, sozinho, sem maior experiência na espiritualidade superior, o domicílio dos homens. Inumeráveis entidades inferiores cercam os recém-libertos, tentando realgemá-los às sensações do Plano físico. Não seria justo expor amigos bem-intencionados a semelhantes ataques e, por isso, se formavam extensos cordões de vigilância. Disse-me que os pensamentos desordenados de milhões de pessoas encarnadas e desencarnadas do ambiente humano criam verdadeiros campos de imantação aos quais não se subtrai a alma facilmente. Acentuou que a nossa retirada, em perigosa circunstância qual aquela em que a expedição conduzia alguns irmãos quase inconscientes, se realizaria, com mais êxito, sobre o campo ou sobre as águas. A atmosfera, ao redor desses elementos, é mais simples, mais natural.

Tive a impressão de que Bezerra era o supervisor da viagem. Organizou os grupos, distribuiu instruções e estimulava-nos, vigoroso e otimista, um a um.

Aproximou-se de mim e informou que a primeira jornada dos que se desenfaixam da carne exige providências que lhes garantam a tranquilidade, fazendo-me sentir que ainda nos demoraríamos um tanto, aguardando uma professora de bairro distante.

Escoaram-se alguns minutos e respeitável senhora, ladeada por dois benfeitores, acercou-se de nós.

Reconheci-lhe a elevação pela invejável serenidade. Formosa alegria pairava-lhe no semblante calmo. Saudou-nos a todos, simpática e feliz. De todos nós, os recém-desencarnados que ali nos reuníamos, era a única de cujo peito irradiava luz. Identifiquei-lhe a humildade cristã. A evidente superioridade que a distanciava de nós parecia afligi-la, tal a modéstia que lhe transparecia das atitudes.

Bezerra cumprimentou-a, bondoso, e confesso que, reparando aquela mulher de maneiras simples e afáveis emitindo luminosidade sublime, inopinado sentimento de inveja me assaltou o coração.

Marta, todavia, lançou-me olhar de branda reprimenda.

Aquietei-me, de pronto, ponderando os sacrifícios a que fora por certo conduzida a bem-aventurada criatura, que me impressionava tão fortemente, para conquistar o precioso atributo.

Dono de enorme cabedal de informações sobre os maléficos efeitos da emissão mental menos digna, busquei a recuperação própria, reconciliando-me, apressado, comigo mesmo, em face da veneranda educadora cuja superioridade quase me feriu. Rearticulei as ideias do bem, dando-lhes curso intenso na atividade interior.

Minha filha sorriu, aprovando-me em silêncio.



Tão preparados quanto possível para a marcha, Bezerra tomou a palavra conselheiral, dando-nos a conhecer os percalços do caminho.

Não posso reproduzir-lhe as observações ao pé da letra, mas o grande benfeitor anunciou que nos aguardariam surpresas dolorosas, na hipótese de não sabermos manter serenidade e desapego. À exceção da irmã que a nós se reunira por último, não detínhamos o poder da “irradiação luminosa”, condição de garantia ao êxito na defensiva contra qualquer assédio das trevas. Estávamos quase todos, os recém-libertos do corpo, desprevenidos quanto a semelhante recurso e distraídos da preparação interior, não obstante a amplitude de nossa confiança em Deus. Poderíamos, assim, cair em sintonia com as forças da ignorância, inimigas do bem. Conservávamo-nos sob a custódia de elevados benfeitores que se interessavam por nós e por nossos destinos; todavia, se manifestáramos certo esforço no serviço da crença religiosa, fôramos mais apaixonados pela ideia elevada que propriamente realizadores dela no mundo. Achávamo-nos agora num campo diferente de matéria, onde só os conquistadores de si mesmos, no supremo bem ao próximo, guardavam posição de realce e domínio. Enquanto no Plano carnal, poderíamos gastar a sagrada força da vida, lisonjeando os prazeres da plenitude física, esquecidos de exercitar as energias internas. Aqui, porém, éramos obrigados a reajustar apressadamente o cabedal de nossos recursos íntimos, centralizando-os na sublimação da vida, em face do porvir, se não quiséssemos dilatar a permanência nos Círculos inferiores, acentuando qualidades menos dignas. A jornada, pois, representava a primeira experiência importante para nós, reclamando a nossa determinação de prosseguir para o Alto, com o máximo desprendimento da velha estrada de lutas que abandonávamos. De outro modo, provavelmente seríamos colhidos por emoções negativas, inclinando-nos para o retorno.

A advertência de Bezerra calou fundamente em todos nós que o ouvíamos, guardando noção daquela hora grave.

Reparando que era grande o número dos que ali se mantinham como que narcotizados, indaguei de Marta, em tom discreto, como se comportariam eles ante o severo aviso, informando-me a filha de que diversos dos irmãos em “traumatismo psíquico” despertariam em breves instantes, tanto quanto lhes fosse possível, e que, no fundo, cada qual registrava a advertência a seu modo, segundo lhes permitia a capacidade de entendimento, ainda mesmo considerando a posição de semi-inconsciência em que se achavam.

Pretendia formular ligeiro inquérito, com respeito à “irradiação luminosa” a que Bezerra se referira, mas Marta me pediu, bondosa, deixasse as perguntas para depois.



Em breves minutos, encontrávamo-nos prontos.

O Irmão Andrade e Marta sustentavam-me com os braços, lado a lado.

Outros grupos se formaram.

Os recém-desencarnados, qual me ocorria, mostravam-se amparados, um a um, por amigos espirituais, acreditando eu que estes constituíam dois terços de nossa expedição.

A capacidade de volitar está intimamente associada à força mental, porque, após sentida oração do supervisor, começamos a flutuar, acima do solo, guardando comigo a nítida impressão de que o vigoroso pensamento de Bezerra nos comandava.

O poder da individualidade evoluída e aperfeiçoada nos cometimentos espirituais, deve assemelhar-se, de alguma sorte, ao do dínamo gerador, em eletricidade, porque assinalava em mim, de modo inequívoco, o impulso determinante do orientador que ia à frente.

Não seguíamos em cordão contínuo, mas em grupos de dois, três e quatro, unidos uns aos outros. Apesar do abatimento, não quis perder o novo espetáculo.

Em breves minutos, tínhamos as águas sob os pés, elevando-nos vagarosamente, à maneira de peixes humanos no mar aéreo.

Observação estranha: Julguei que pudesse continuar vendo edifícios e arvoredo, rios e oceano, embora o véu noturno, como se contemplasse o solo planetário da janela de um avião comum; todavia, a sombra em baixo se fazia assustadoramente mais espessa.

Indaguei do Irmão Andrade sobre a origem do fenômeno, afirmando-me ele que a Esfera carnal permanece cercada por vasta condensação das energias inferiores diariamente libertadas pela maioria das inteligências encarnadas, assim como a aranha vive enredada na própria teia, e que, de mais alto, com a visão de que já dispunha, poderia ver o material escuro a rodear a moradia dos homens.

Quando perguntei se aconteceria o mesmo, caso partíssemos durante o dia, informou:

— Não. Qual acontece entre os homens, animais e árvores, há também “um movimento de respiração para o mundo”. Durante o dia, o hemisfério iluminado absorve as energias positivas e fecundantes do Sol que bombardeia pacificamente as criações da Natureza e do homem, afeiçoando-as ao abençoado trabalho evolutivo, mas, à noite, o hemisfério sombrio, magnetizado pelo influxo absorvente da Lua, expele as vibrações psíquicas retidas no trabalho diurno, envolvendo principalmente os círculos de manifestação da atividade humana. O quadro de emissão dessa substância é, portanto, diferente sobre a cidade, sobre o campo ou sobre o mar. Nos pólos do planeta permanece o gelo, simbolizando a negação desse movimento. Mais tarde, observará você que as mesmas leis que controlam o fluxo e o refluxo do oceano influenciam igualmente o psiquismo das criaturas.

Recordei as páginas de André Luiz, narrando a vida além-túmulo, e tentei alongar a curiosidade sadia que chegava a vencer minhas impressões de abatimento, mas o delicado amigo aconselhou-me silêncio e oração, à face da expectativa inquietante naquela hora difícil de nosso retorno à vida espiritual.