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Capítulo XI

A luta prossegue



A velha ideia de que os desencarnados dormem narcotizados de prazer barato, entre sonhos de incenso contemplativo, perde-se completamente para o Espírito de boa vontade que atravessa as fronteiras do sepulcro.

Se há juízes e administradores na Terra que alvejam os cabelos e se cobrem de rugas, na atividade difícil em favor do bem e da paz dos semelhantes; se há homens e mulheres que já experimentam no mundo a coragem serena de abandonar as flores do sangue, colocando-se ao encontro da Humanidade, através dos espinhos do sacrifício e da renúncia, como aceitar um Céu, onde os escolhidos sorriem e gozam, ante o infortúnio alheio? Como entender um éden delicioso em que ninguém cogite de melhorar o purgatório infernal, se um simples político se preocupa em drenar o pântano que lhe prejudica a cidade?



O que eu via, no parque ditoso, não era somente a expressão encantadora e pacífica da Natureza.

O interesse nos serviços do progresso geral mostrava-se inequívoco em todos os rostos.

A instituição a que minha filha presta concurso ativo impressionou-me pela grandeza. Trata-se de uma universidade que ultrapassa em programa e organização qualquer dos 1nstitutos europeus ou americanos destinados à formação e ao burilamento do caráter infanto-juvenil.

Os edifícios centrais congregam-se inteligentemente sob velhas árvores, rodeadas de fontes translúcidas.

As crianças não encontrariam paraíso mais doce. Alguns irmãos e numerosas irmãs as orientam e educam com singular devotamento, preparando-as para a reencarnação na Crosta Planetária.

Penetrei o instituto em companhia de Marta e do amigo Andrade, quando centenas de meninos brincavam felizes, em bando, nos extensos jardins.

Grande parte correu ao nosso encontro. Abraçaram minha filha efusivamente e alguns me beijaram as mãos, chamando-me vovô.

Aquelas manifestações de alegria pura fizeram-me infinito bem.

Diversos pequeninos traziam consigo formosos halos brilhantes.

Marta explicou-me que a instituição asila irmãozinhos desencarnados, entre sete a doze anos de idade e, porque eu indagasse pelas crianças tenras, esclareceu Andrade que para essas, quando se não trata de entidades excepcionalmente evoluídas, inacessíveis ao choque biológico da reencarnação, há lugares adequados onde o tempo e o repouso lhes favorecem o despertar, a fim de que lhes não sobrevenham abalos nocivos.

Informou-me a filha de que as criancinhas, não obstante viverem ali em comunidade, dividem-se no esforço educativo por turmas afins. Caracterizam-se os grupos por variados graus de elevação espiritual e as classes se subdividem pelas aptidões e tendências, examinados os precedentes de cada uma. Quando perguntei se na vida espiritual pode a criança desenvolver-se e optar pelo mau caminho, replicou Andrade que isso é perfeitamente cabível, considerando-se que, com o desenvolvimento na nova Esfera, a alma recapitula as emoções do passado, com apelos íntimos de variadas espécies, acrescentando, todavia, que, de modo geral, as crianças estacionadas nos parques de reajustamento sempre se encaminham à reencarnação. Se o Espírito de ordem sublimada se desenfaixa dos laços da carne, quite com a lei que nos governa o destino, em período infantil, readquire de pronto as mais altas expressões da própria individualidade e ergue-se a mais elevados Planos.

Marta me apresentou lindos grupos, inclusive algumas dezenas de pequenos indígenas libertos do corpo, em fase primária de cultura e inteligência.

Experimentei, porém, a maior surpresa quando me deu a conhecer a assembleia dos meninos-orientadores. São meninos e meninas de passado mais respeitável e por isso mesmo mais acessíveis aos ensinamentos edificantes da instituição. Demoram-se no parque, às vezes muito tempo, aguardando circunstâncias favoráveis à execução dos projetos de ordem superior e, enquanto permanecem aí, desempenham valiosas missões junto a crianças e adultos, entre as duas Esferas, além das tarefas usuais de que se incumbem na própria organização em que se mantêm estacionados. Constituem, assim, vasta coletividade de escoteiros do heroísmo espiritual, junto dos quais encontramos inapreciável estímulo e santo exemplo.



Edificado com o que observara, seguimos na direção do casario central da cidade que me hospedava.

Inútil tentar a descrição do carinho e da dedicação dos habitantes para com a paisagem. Flores e arvoredo, evidentemente conduzidos para o trabalho de espiritualização, surgiam lindos e enternecedores a cada passo. Em certos jardins as flores luminosas chegavam a formar frases inteiras de glorificação à Divindade.

Os domicílios não se torturavam uns aos outros como nas grandes cidades terrestres; ofereciam espaços regulares entre si, como a indicar que naquele abençoado reduto de fraternidade e auxílio cristão há lugar para todos.

Não vi estabelecimentos comerciais, mas, em compensação, identifiquei grande número de instituições consagradas ao bem coletivo.

Recordando a leitura das narrativas de André Luiz e Vale Owen, () perguntei ao Irmão Andrade quanto às características do novo ambiente, informando-me, então, que nos achávamos numa colônia espiritual de emergência, situada em Planos menos elevados.

Diversas comissões de socorro em múltiplos trabalhos salvacionistas aí funcionam a benefício não só de criaturas encarnadas, mas também de extensas multidões de desencarnados em sombra e desespero.

As vias públicas mostravam-se cheias de transeuntes.

Muitos se agrupavam, seguindo em conversação ativa, enquanto outros passavam, isoladamente; todavia, em nenhum rosto surpreendi expressões de rancor, aflição ou desânimo.A irritação parecia não ter acesso, ali, naquele domínio de tranquilidade construtiva. Alguns me fixavam com simpatia e bondade, naturalmente percebendo a minha condição de neófito e, dando a conhecer ao Irmão Andrade a estranheza com que reparava a serenidade das pessoas, salientou o estimado amigo que os habitantes da colônia, ainda mesmo quando detenham motivos fortes de preocupação, fazem quanto lhes é possível para guardar a paz com sinceridade, atentos aos desígnios de ordem divina.



Após atravessar graciosas avenidas onde a Natureza educada oferece sublimes espetáculos à vista, parei admirado diante de formoso e magnificente edifício no qual adivinhei um templo importante. Sete torres maravilhosas, de algum modo semelhantes às da famosa Catedral de Colônia, invadem as alturas. Em tudo o que meu olhar podia abranger, eu observava primorosas manifestações de ourivesaria, admirável pela finura e beleza.

Elucidou Marta que nos achávamos perante o grande santuário da cidade, onde se processam os mais destacados serviços espirituais da vida coletiva.

Até ali somente chegam, vindas da Esfera carnal, pessoas libertas do estreito dogmatismo religioso.

Discípulos de qualquer doutrina, aferrolhados na cadeia do fanatismo cruel são obrigados a períodos mais ou menos longos de reparação da vida mental em Círculos mais baixos.

Naquele templo, portanto, explicou a filha, comungam no amor e na veneração a Deus todos os Espíritos liberais, com moradia nesse domicílio espiritual ou de passagem por ele; ainda mesmo ligados às escolas de crença que os identificavam na Crosta do Planeta, aqui confraternizam, em torno do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, não encontrando motivos para dissensões e descontentamentos.

Há serviço diário na casa divina que me retinha extático e deslumbrado. Alvas portas coroadas de luz ligavam-na à cidade, em todas as direções e, através delas entravam e saíam longas fileiras de criaturas bem-aventuradas de semblante plácido.

Ponderou Andrade que ali eram recebidas ordens e inspirações, programas de serviço e bênçãos de estímulo da Vida Mais Alta. Grandes servos do Altíssimo ali se materializam, procedentes de Esferas sublimadas e distantes, distribuindo amor e sabedoria e, justamente das torres soberanas e veneráveis é que parte cada noite o facho de luz, guiando viajores no mar das trevas, do qual havia tomado conhecimento na travessia da extensa ponte sobre os despenhadeiros.

Quando intentei penetrar o santuário, por um dos ângulos próximos, ambos os companheiros de excursão me sustaram o gesto. Não convinha, disseram. Eu era ainda um simples recém-chegado, com característicos indiscutíveis do corpo terrestre mas, feliz e confortado, registrei-lhe a informação de que na noite do trigésimo dia sobre a data de minha libertação, seria recebido por muitos amigos no templo consagrado ao serviço divino.

Até lá, cabia-me a necessária preparação, através das fontes do pensamento.



O dia correu célere, multiplicando surpresas confortadoras ao redor de meus passos e, à noite, findo o culto doméstico das Palavras Divinas, Marta me convidou ao recolhimento, afirmando que a cidade permanecia cheia de atrativos e estudos para a noite, contudo, aconselhava-me o repouso de modo a evitar excessos de impressões nas primeiras horas de meu contato com a paisagem.

Surpreendendo-me, o amigo Andrade declarou que se demoraria junto de mim naquela noite. Salientou que minhas forças jaziam quase refeitas, que começava a viver a experiência normal na Esfera nova e, por isso, provavelmente eu necessitaria de instruções fraternas.

Não obstante intrigado, aceitei, satisfeito, o oferecimento gentil.

Passamos à extensa câmara destinada ao descanso, mas bastou que me entregasse à quietação para que certo fenômeno auditivo e visual me perturbasse as fibras mais íntimas.

Vi perfeitamente, qual se estivessem dentro de mim, as filhas queridas, então na Terra, e alguns poucos amigos, que deixara no mundo, dirigindo-me palavras de saudade e carinho.

— Pai querido! diga-me se você ainda vive! desfaça minhas dúvidas, ensine-me o caminho, venha até mim!

Era a voz de uma delas a interpelar-me. O amoroso chamamento ameaçava-me o equilíbrio. Minha razão periclitou por segundos. Onde me encontrava? Contemplava-a ao meu lado, queria beijar-lhe as mãos, expressando-lhe reconhecimento pela imensa ternura, mas debalde a buscava.

Ainda me não desembaraçara do inolvidável momento de estranheza, quando um médium de minhas relações apareceu igualmente no quadro.

— Meu amigo! Fale-nos, conforte-nos!… — rogou, comovidamente.

Meu coração pulsou apressado. Como atender aos apelos?

Ia gritar, suplicando socorro. Todavia, o Irmão Andrade, mais prestativo e prudente que eu poderia supor, abeirou-se de mim e cientificou-me de que aquele era o fenômeno da sintonia espiritual, comum a todos os recém-desencarnados que deixam laços do coração na retaguarda. Esclareceu que através de semelhante processo era mesmo possível comunicar-se com o Círculo físico, quando o intermediário terreno possa conservar a mente na onda de ligação mental durante o tempo indispensável. Informou que a entidade desencarnada é suscetível de manter intenso intercâmbio pelos recursos do pensamento e que por intermédio dessa comunhão íntima encarcera-se o criminoso nas sombras das próprias obras, tanto quanto o apóstolo do bem vive com os resultados felizes de sua sementeira sublime de renúncia e salvação.

Insuflou-me forças vigorosas, utilizando passes de longo curso e recomendando-me calma, asseverou que aos poucos saberia controlar o fenômeno das solicitações terrestres, canalizando-lhes as possibilidades para o trabalho de elevação.