Vozes do Grande Além

Capítulo XXVI

Um caso singular



Noite de 1.° de dezembro de 1955.

Com grande reconforto para o nosso grupo, quem comparece para o serviço de instrução é o Espírito Luís Alves, que, em estado de sofrimento, se comunicara anteriormente, em nossa agremiação.

Comovendo-nos a todos, ofereceu-nos a sua história, que ele mesmo considerou como “um caso singular”.


Meus amigos:

Chamo-me Luís Alves, e, trazido ao recinto por devotados instrutores, recomendam que eu vos fale alguma coisa acerca de meu caso, que, indiscutivelmente, se partisse de outra criatura, talvez não me recebesse crédito algum, na hipótese de encontrar-me ainda encarnado entre os homens.

Tão triste quão bizarra, minha história provoca impressões diversas, desde a agonia ao riso franco, fazendo de mim um sofredor e um truão.

Muitas almas aparecem no berço, a fim de lutar. E muitas se escondem no sepulcro, para aprender.

Nasci na Terra para cumprir determinada tarefa no socorro aos doentes, sob o signo da solidão individual, para que mais eficiente se tornasse meu concurso a benefício dos outros, porém, em chegando aos trinta de idade, e vendo-me pobre e sozinho, apesar dos múltiplos trabalhos de enfermagem que me angariavam larga soma de afetos, entreguei-me, acovardado, ao desespero e, com um tiro no coração, aniquilei meu corpo.

Ah! Meus amigos, desde esse instante, começou a minha odisseia singular, porque me reconheci muito mais vivo do que antes, continuando ligado à minha carcaça inerte.

Não dispunha de parentes ou de amigos que me solicitassem os despojos. Entregue a uma escola de Medicina, chumbado ao meu corpo, passei a servir em demonstrações anatômicas.

Completamente anestesiado, ignorava as dores físicas, não obstante cortado de muitos modos; contudo, se tentava afastar-me da múmia que passara a ser minha sombra, o terrível sofrimento, a expressar-se por inigualável angústia, me constringia o peito, compelindo-me a voltar.

Dezenas de médicos jovens estudavam em minhas vísceras os problemas operatórios que lhes inquietavam a mente indecisa, alegando que meus tecidos cadavéricos eram sempre mais vivos e mais consistentes, mal sabendo que a minha presença constante lhes mantinha a coesão.

Ninguém na Terra, enquanto no corpo denso, pode calcular o martírio de um Espírito desencarnado, indefinidamente jungido aos próprios restos.

Minha aflição parecia não ter fim. Chorava, gritava, reclamava… mas, por resposta da vida, era objeto diário da atenção dos estudantes de cirurgia, que procuravam em mim o auxílio indireto para a solução de enigmas profissionais, a favor de numerosos doentes.

Ouvia a meu respeito incessantes observações que variavam do carinho ao sarcasmo e do ridículo à compaixão.

Muitos me fitavam com piedoso olhar, mas muitos outros me sacudiam de vergonha e de sofrimento, através dos pensamentos e das palavras com que me feriam e ofendiam a dolorosa nudez.

Com o transcurso do tempo, desgastou-se-me a vestimenta de carne nas atividades de cobaia, mas, ainda assim, professores e médicos afeiçoaram-se-me ao esqueleto, que diziam original e bem-posto, e prossegui em meu cárcere oculto.

Habitualmente assediado por aprendizes e estudiosos diversos, suportava, além disso, constante visitação de almas desencarnadas, viciosas e vagabundas, que me atiravam em rosto gargalhadas estridentes e frases vis.

Vinte e seis anos decorreram sobre meu inominável infortúnio, quando, certo dia, a desfazer-me em pranto, recordei velho amigo — o nosso Mitter.

Bastou isso e ele me apareceu eufórico e juvenil, como nos tempos da mocidade primeira.

Compadecido, ouviu-me a horrenda história e, aplicando as mãos sobre mim, conseguiu libertar-me dos ossos, trazendo-me a vossa casa. Respirei aliviado.

Como que a refundir-me num corpo diferente do meu, que ele designou como sendo “um instrumento mediúnico”, consegui, enfim, chorar e clamar por socorro.

Vossas palavras e vossas preces, ao influxo dos benfeitores que nos assistem, operaram em mim o inesperado milagre… Reconfortei-me, reaqueci-me..

De volta ao meu domicílio, depois de passar por algumas horas em vosso templo de caridade, vim a saber que, graças a Deus, apesar do suicídio, em meu tremendo suplício moral conseguira cumprir a tarefa de amparo aos enfermos durante o tempo previsto.

De regresso a casa, oh! grande felicidade!… Doutor Mitter e eu observamos que com a minha ausência o velho arcabouço, apesar de protegido com segurança, se arrojara ao piso da sala, partindo-se-lhe a grande coluna.

Meu coração pulsava de alegria, porque a minha insubmissão não conseguira modificar o aresto justo da Lei…

E naquela hora meu júbilo acentuara-se, porque à maneira do pássaro, agora livre, fitava feliz a gaiola desfeita.

Banhava-se a paisagem no sol de rutilante manhã. Um velho professor penetrou o recinto, sendo abraçado por nosso amigo, que lhe segredou algo, confidencialmente, aos ouvidos.

O encanecido preceptor não nos viu e nem ouviu com os sentidos corpóreos, mas registrando a palavra do benfeitor, em forma de intuição, ordenou que os meus velhos ossos fossem queimados como resíduo inútil.

Desde então, livre e calmo, consagrei-me a vida nova e, visitando-vos na noite de hoje, para exprimir-vos jubilosa gratidão, ofereço-vos meu caso, não para que venhamos a rir ou a chorar, mas simplesmente a pensar.




LUÍS ALVES — Amigo espiritual não identificado.


Nosso Mitter — Amigo espiritual que, por vezes, empresta valiosa cooperação ao nosso Grupo.