No horário das instruções, em nossas tarefas da noite de 20 de outubro de 1955, o Espírito M. Silva trazido por benfeitores espirituais, veio até nós, ofertando-nos o relato de sua dolorosa experiência, que nos serviu de material a valiosas meditações e que passamos ao estudo de nossos leitores.
Enterrado vivo!
Enquanto no corpo carnal, respirando o ar livre e puro, não mentalizareis o sofrimento encerrado nestas duas palavras.
O despertar no sepulcro, o estreito espaço do esquife, a treva subterrânea, o ruído estranho e indefinível dos vermes a se movimentarem no grande silêncio, a asfixia irremediável e a agonia do pavor, ultrapassando a agonia da morte!…
Além de tudo, comigo, o estrangulamento terminava para, em seguida, reaparecer.
A cada espasmo de angústia, sucedia-me nova crise de sufocação.
E, de permeio aos estertores que pareciam intermináveis, acusadoras vozes gritavam-me aos ouvidos:
— Maldito!
— Não te erguerás do túmulo…
— Morre de novo!
— Morre sempre!
— O inferno é insuficiente para a extensão de minha vingança!
As horas eram séculos de tortura mental.
Pouco a pouco, no entanto, adelgaçaram-se as trevas em derredor e pude ver, enfim, o duende que me atormentava.
Ah! lembrei-me, então, de tudo… Era um padre como eu mesmo. O padre José Maria.
E a tragédia de quarenta anos antes reconstituiu-se-me na memória.
Eu era um sacerdote, assaz moço, quando fui designado para substituí-lo numa paróquia do interior. Doente e envelhecido, morava ele em companhia de uma sobrinha-neta, a jovem Paulina, cujos dotes de mulher me seduziram, desde logo, a atenção.
Com as facilidades da convivência e suportando embora os escrúpulos da minha condição, ela e eu, depois de algum tempo, compartilhávamos o mesmo afeto, com graves compromissos.
Transcorridos alguns meses de felicidade mesclada de preocupação, certa noite, achando-nos a sós, o enfermo chamou-me a contas.
Não seria mais justo arrepiar caminho? Como adotara semelhante procedimento sob o teto que me acolhera?
Diante das inflexíveis e duras palavras dele, entreguei-me à ira, e agredi-o sem consideração. Contudo, à primeira bofetada de minha covardia, o doente tombou, cadaverizado.
Entorpecido de espanto, deixei que a versão do colapso cardíaco crescesse no ânimo de nossos domésticos. E, ocultando cuidadosamente a altercação havida, recebi do médico as anotações do óbito, presidindo aos funerais com eficiência.
Findos os primeiros sete dias de estupor e desolação, quando eu rezava a missa em memória do morto, eis que Paulina, asseverando enxergar o tio, enlouqueceu de inesperado, acabando a sua curta e infortunada existência no hospício.
Desde essa época até a estação do sepulcro, meus dias rolaram tristes e vazios como sói acontecer com todos os padres que usam a fé religiosa nos lábios, sem vivê-la no coração.
Ah! somente naquele minuto terrível de reencontro, compreendi que o velho companheiro havia atravessado os tormentos do enterrado vivo, que eu também experimentava naquelas circunstâncias para ressarcir meu torvo débito.
O choque, porém, deslocou-me dos panos repelentes do túmulo.
Senti-me inexplicavelmente libertado dos ossos que ainda me apresavam e, trazido ao solo comum, respirei, por fim, o ar doce e leve da noite.
Ajoelhei-me contrito aos pés de meu credor e debalde supliquei piedade e perdão.
O antigo sacerdote, indignado, desafiou-me ao revide.
Não pude fugir à reação e engalfinhamo-nos em franco pugilato, mas nas mãos do padre José Maria, talvez alentados pela vingança, os dedos estavam convertidos em garras dilacerantes…
Humilhado e vencido, confiei-me às lágrimas… Em preces de arrependimento e compunção, roguei socorro…
Fui então recolhido por nossos benfeitores e, junto deles, minha odisseia desceu da culminância…
Internado num hospital e admitido a uma escola, tenho hoje a segurança que me conforta e a lição que me reergue; no entanto, quando retorno ao campo humano, seguindo, de perto, a equipe dos missionários do bem e da luz que nos amparam, sou novamente surpreendido pelo adversário que me procura e persegue sem repouso.
Ainda agora, em vos dirigindo a palavra, ei-lo fora do círculo magnético em que a oração nos protege, exclamando, desesperado: — Maldito sejas! Teu crime é tua sombra!…
Como vedes, sou um companheiro que vos fala da retaguarda. Um homem desencarnado, entre os raios da esperança e os tormentos da culpa…
Tenho a cabeça buscando as auras do Céu e os pés chumbados ao inferno que estabeleci para mim mesmo…
Para ser exato em minhas assertivas, não tenho ainda qualquer plano para o futuro, nem sei como apagar o incêndio de minhas velhas dívidas…
Sou apenas um náufrago no oceano imenso das provas, recolhido, por mercê da Divina Providência, na embarcação da caridade, suspirando pela bênção da volta à vida física.
Enamorado da reencarnação que hoje vos enriquece e obedecendo aos instrutores amigos que nos inspiram, por agora, posso dizer-vos tão somente:
— Amigos, atendamos ao Evangelho do Cristo, valorizai vossa luta e abstende-vos do mal.
M. SILVA — Amigo espiritual não identificado.