Vozes do Grande Além

Capítulo XXXVII

Consciência culpada



Na noite de 23 de fevereiro de 1956, nossos benfeitores espirituais ofertaram-nos à consideração valioso estudo.

Trouxeram ao recinto o Espírito que se deu a conhecer por F. Cunha, cuja mente eclipsada pelo remorso se mostrava inteiramente encarcerada nas teias do crime por ele cometido.

O comunicante, através do médium que lhe retratava a angústia na fisionomia congesta, falou-nos comovedoramente do seu drama íntimo.

Explicaram-nos os Mentores de nosso templo que assim procediam para examinarmos as dolorosas condições da alma, como que cristalizada nos meandros da culpa, cerrada sobre si mesma, a reviver, indefinidamente a lembrança do delito praticado, em lastimável e constante recapitulação.


Trovejante voz determina que eu fale. Estranho poder rearticula-me a garganta.

Falar, entretanto, para quê? Para quem?

Quantas vezes já reconstituí minha história, para acabar no mesmo tormento infernal?…

Onde estou? Que vozes imperativas são essas que ordenam a exteriorização de minha palavra?

Falar para quem? Para os duendes que povoam as minhas trevas e gargalham diante da minha dor?

Para a ventania que me açoita e que me trouxe até aqui onde experimento a sensação do mendigo vagueante, a refugiar-se na carne morna de um animal?

Falar para quê? Sinto-me extremamente cansado…

Não tenho ideia de rumo. Perdi a noção do caminho.

Sequei a fonte de minhas lágrimas. Estou cego. Tateio na escuridão…

Esgotei todas as blasfêmias que podiam assomar aos meus lábios.

Clamo debalde por socorro… Bati à porta da oração, inutilmente…

Sou o judeu errante da lenda, mais infeliz que ele mesmo, porque não apenas caminho… Sofro! Sofro terrivelmente.

Perdi a minha visão externa, mas guardo a minha visão do mundo íntimo para recomeçar sempre e interminavelmente o meu crime!

Confessar-me para que ouvidos? Para que juízes?

Falar simplesmente para a minha consciência culpada?

Entretanto, essa voz é dominadora e determina que eu conte minha história de novo…

Não precisarei, porém, gastar muita energia. Basta lembrar o recomeço…

Vejo a sala de nossa casa. Tudo iluminado dentro da noite…

Desejava desfazer-me de minha irmã solteira. Herdáramos ambos grande fortuna.

Devia ela associar-se-me ao destino… Desejava, contudo, senhorear a sós o patrimônio financeiro que nos favorecia o mundo familiar.

Angelina era meu obstáculo. Arquitetava planos de modo a eliminar-lhe a presença, até que uma noite minha irmã veio confessar-me um amor infeliz.

Amava e não era amada. Pretendia comungar a sorte de um homem que lhe retribuía a afetividade com profunda aversão. Estava doente, abatida.

Maquinando meu crime, roguei-lhe renunciasse àquela afeição mal-nascida. Ofereci-lhe ponderações.

Preparei deliberadamente o fratricídio. Conduzi-a para a nossa pequena sala de leitura e de música.

Pedi-lhe, em nome de nossa grande amizade escrevesse uma carta de despedida ao ingrato que lhe não acolhera a ternura…

Como valorizar um homem que lhe menoscabava o coração?

Convenci-a. Angelina, em pranto, grafou a missiva de adeus. Leu-a, comovidamente, para mim.

Aprovei-lhe os termos… Em seguida, roguei-lhe tocasse ao piano velha música triste de nosso ambiente doméstico. Desejava preparar meu delito.

Angelina tangeu suavemente o teclado. Era uma valsa de despedida, predileta de meu pai que nos deixara, a caminho do sepulcro, seguindo os passos de nossa mãe.

Logo após, aconselhei-lhe o recolhimento. Sentia dores, repetiu…

Prometi-lhe uma fricção de óleo balsâmico no tórax, tão logo se visse recolhida ao leito. Angelina obedeceu sem tergiversar.

Na penumbra, preparei meu revólver. Envolvi minhas mãos em dois lenços para evitar qualquer vestígio que me denunciasse à autoridade policial.

Na sombra do quarto, procurei no peito o local dolorido e desfechei-lhe um tiro certeiro no coração…

Ela morreu como uma ovelha imbele no matadouro. O sangue borbotou em torrentes. Com cautela, prendi-lhe a arma à mão flácida…

Preparei o ambiente e, depois de algum tempo, clamei por socorro.

A tese do suicídio que eu apresentara foi amplamente aprovada.

Depois dos funerais, a visão do ouro superou o remorso. Eu era, enfim, o dono de enorme fortuna. Podia dispor dela à vontade.

E assim fiz. Governei largos haveres. Sufoquei a consciência.

Gozei a vida como melhor me pareceu. Despendi largas somas.

Viajei… Dominei… Fiz o que meus caprichos reclamavam…

Até que, um dia, num desastre, não sei que gênios perversos me situaram o carro à frente de um abismo no qual me despenhei…

Meu corpo também foi aniquilado entre ferros torcidos…

Mas, desde então, sou como que uma esfera sombria. Uma grande bola de chumbo aeriforme, porque tudo é treva por fora… mas tudo é claridade por dentro, obrigando-me a recomeçar o processo de minha falta…

Tenho sede, tenho fome, contudo, tão somente encontro cornucópias rubras a despejarem moedas e cédulas ensanguentadas sobre minha cabeça.

Pergunto às trevas a que me recolho, onde está o poder do tempo, para fazer que minhas horas recuem a fim de que meus braços se imobilizem antes da fatal deliberação…

Pergunto onde vive a morte, para que ela, com seu ancinho infernal, me decepe a consciência… Ninguém me responde.

Ouço gargalhadas. Ouço gênios infernais que talvez estejam associados ao meu crime, mas que eu não posso divisar em sua feição exterior, porque, se tudo ouço, nada vejo…

Estou mergulhado nas trevas. Minhalma sente-se jungida ao remorso, assim como a lenha está presa ao fogo que a consome.

Onde está o repouso prometido aos penitentes?

Já gritei minha desdita aos quatro cantos da Terra. Suplico um amparo que nunca chega. Trago comigo o inferno no coração.

Para quem estou falando nas sombras? Será dia, no campo exterior em que minha voz se faz ouvida?

Quem me escuta? Que vento me trouxe até aqui?

O remorso persegue-me, inalterável!…

Quem me ouve? Os demônios e as fúrias da tempestade?

Infelizmente, sou eu mesmo a testemunha da minha própria confissão.

Revejo o crime praticado… Dinheiro!… Ah! o dinheiro… A fortuna de meus pais!…

Sangue… Sangue nas minhas mãos… Sangue na minha vida… Sangue no meu coração…

Para quem repetirei esta história? Para quem?

Eis que o vento me retira de novo!… Aonde irei? Para quem repetirei minha terrível história? Sou um fantasma no cárcere do remorso tardio!…

Que poder é este, a impelir-me para diante? o crime!… O crime não compensa, o dinheiro não compensa… A culpa é o meu grilhão!…




F. CUNHA — Amigo espiritual não identificado.


Carne morna de um animal — Refere-se à organização física do médium.