Varando a multidão que estacionava na grande praça de Esmirna, em clara
manhã do ano 131 da nossa era, marchava um troço de escravos jovens e atléticos, conduzindo uma liteira ricamente ataviada ao gosto da época.
De espaço a espaço, ouviam-se as vozes dos carregadores, exclamando:
– Deixai passar o nobre tribuno Caio Fabricius! Lugar para o nobre representante de Augusto! Lugar!... Lugar!...
Desfaziam-se os pequenos grupos de populares, formados à pressa em torno do mercado de peixes e legumes, situado no grande logradouro, enquanto o rosto de um patrício romano surdia entre as cortinas da liteira, com ares de enfado, a observar a turba rumorosa.
Seguindo a liteira, caminhava um homem dos seus quarenta e cinco anos presumíveis, deixando ver nas linhas fisionômicas o perfil israelita, tipicamente características, e um orgulho silencioso e inconformado. A atitude humilde, todavia, evidenciava condição inferior e, conquanto não participasse do esforço dos carregadores, adivinhava-se-lhe no semblante contrafeito a situação dolorosa de escravo.
Respirava-se, à margem do golfo esplêndido, o ar embalsamado que os ventos do Egeu traziam do grande Arquipélago.
O movimento da cidade crescera de muito naqueles dias inolvidáveis, seqüentes à última guerra civil que devastara a Judéia para sempre. Milhares de peregrinos invadiam-na por todos os flancos, fugindo aos quadros terrificantes da Palestina, assolada pelos flagelos da última revolução aniquiladora dos derradeiros laços de coesão das tribos laboriosas de Israel, desterrando-as da pátria.
Remanescentes de antigas autoridades e de numerosos plutocratas de Jerusalém, de Cesaréia, de Betel e de Tiberíades, ali se acotovelam famélicos, por subtraírem-se aos tormentos do cativeiro, após as vitórias de Júlio Sexto Severo sobre os fanáticos partidários do famoso Bar-Coziba.
Vencendo os movimentos instintivos da turba, a liteira do tribuno parou à frente de soberbo edifício, no qual os estilos grego e romano se casavam harmoniosamente.
Ali estacionando, foi logo anunciado no interior, onde um patrício relativamente jovem, aparentando mais ou menos quarenta anos, o esperava com evidente interesse.
– Por Júpiter! – exclamou Fabricius, abraçando o amigo Helvídio Lucius – não supunha encontrar-te nessa plenitude de robustez e elegância, de fazer inveja aos próprios deuses!
– Ora, ora! – replicou o interpelado, em cujo sorriso se podia ler a satisfação que lhe causavam aquelas expansões carinhosas e amigas – são milagres dos nossos tempos. Aliás, se há quem mereça tais gabos, és tu, a quem Adônis sempre rendeu homenagens.
Neste ínterim, um escravo ainda moço trazia a bandeja de prata, onde se alinhavam pequenos vasos de perfume e coroas da época, adornadas de rosas.
Helvídio Lucius serviu-se cuidadosamente de uma delas, enquanto o visitante agradecia com leve sinal de cabeça.
– Mas, ouve! – continuava o anfitrião sem dissimular o contentamento que lhe causava a visita – há bastante tempo aguardamos tua chegada, de maneira a partirmos para Roma com a brevidade possível. Há dois dias que a galera está à nossa disposição, dependendo a partida tão-somente da tua vinda!...
E batendo-lhe amistosamente no ombro, rematava:
– Que demora foi essa?...
– Bem sabes – explicou Fabricius – que sumariar os estragos da última
revolução era tarefa assaz difícil para realizar em poucas semanas, razão pela qual, apesar da demora a que te referes, não levo ao Governo Imperial um relatório minucioso e completo, mas apenas alguns dados gerais.
– E a propósito da revolução da Judéia, qual a tua impressão pessoal dos acontecimentos?
Caio Fabricius esboçou um leve sorriso, acrescentando com amabilidade:
– Antes de dar a minha opinião, sei que a tua é a de quem encarou os fatos com o maior otimismo.
– Ora, meu amigo – disse Helvídio, como a justificar-se –, é verdade que a venda de toda a minha criação de cavalos da Iduméia, para as forças em operações, me consolidou as finanças, dispensando-me de maiores cuidados quanto ao futuro da família; mas isso não impede considere a penosa situação desses milhares de criaturas que se arruinaram para sempre. Aliás, se a sorte me favoreceu no plano de minhas necessidades materiais, devo-o principalmente à intervenção de meu sogro, junto do prefeito Lólio Úrbico.
– O censor Fábio Cornélio agiu assim tão decisivamente a teu favor? – perguntou Fabricius, algo admirado.
– Sim.
– Está bem – disse Caio já despreocupado –, eu nunca entendi patavina da criação de cavalos da Iduméia ou de bestas da Ligúria. Aliás, o êxito dos teus
negócios não altera a nossa velha e cordial amizade. Por Pólux!... Não há necessidade de tantas explicações nesse sentido.
E depois de sorver um trago de Falerno solicitamente servido, continuou, como que analisando as próprias reminiscências mais íntimas:
– O estado da Província é lastimável e, na minha opinião, os judeus nunca mais encontrarão na Palestina o benefício consolador de um lar e de uma pátria. Em diversos reencontros, morreram mais de cento e oitenta mil israelitas, segundo o conhecimento exato da situação. Foram destruídos quase todos os burgos. Na zona de Betel a miséria atingiu proporções inauditas. Famílias inteiras, desamparadas e indefesas, foram covardemente assassinadas. Enquanto a fome e a desolação operam a ruína geral, chega também a peste, oriunda da exalação dos cadáveres insepultos. Nunca supus rever a Judéia em tais condições...
– Mas, a quem deveremos inculpar do que ocorre? O governo de Adriano não se tem caracterizado pela retidão e pela justiça? – perguntou Helvídio Lucius com grande interesse.
– Não posso afirmá-lo com certeza – revidou Fabricius, atencioso –; todavia, considero pessoalmente que o grande culpado foi Tineio Rufus, legado pró-pretor da Província. Sua incapacidade política foi manifesta em todo o desenvolvimento dos fatos. A reedificação de Jerusalém com o nome de Elia Capitolina, obedecendo aos caprichos do Imperador, apavora os israelitas, desejosos todos de conservar as tradições da cidade santa. O momento requeria um homem de qualidades excepcionais, à frente dos negócios da Judéia. Entretanto, Tineio Rufus não fez mais que exacerbar o ânimo popular com imposições religiosas de todos os matizes, contrariando a clássica tradição de tolerância do Império nos territórios conquistados.
Helvídio Lucius ouvia o amigo, com singular interesse, mas, como se desejasse afastar de si mesmo alguma reminiscência amarga, murmurou:
– Fabricius, meu caro, tua descrição da Judéia me apavora o espírito... Os anos que passamos na Ásia Menor me devolvem a Roma com o coração apreensivo. Em toda a Palestina campeiam superstições totalmente contrárias às nossas tradições mais respeitáveis, e essas crenças estranhas invadem o próprio ambiente da família, dificultando-nos a tarefa de instituir a harmonia doméstica...
– Já sei – replicou o amigo solicitamente –, queres aludir, com certeza, ao Cristianismo, com as suas inovações e os seus asseclas.
Mas... – ajuntou Caio, evidenciando uma atenção mais íntima –, acaso Alba Lucínia teria deixado de ser a segurança vestalina de tua casa? Seria possível?
– Não – replicou Helvídio ansioso por se fazer compreendido –, não se trata de minha mulher, sentinela avançada de todos os feitos da minha vida, há longos anos, mas de uma das filhas que, contrariamente a todas previsões, imbuiu-se de semelhantes princípios, causando-nos os mais sérios desgostos.
– Ah! lembro-me de Helvídia e de Célia, que, em meninas, eram bem dois sorrisos dos deuses na tua casa. Mas tão jovens e dadas, assim, a cogitações filosóficas?
– Helvídia, a mais velha, não se impregnou de tais bruxarias; mas a nossa pobre Célia parece bastante prejudicada pelas superstições orientais, tanto que, regressando a Roma, tenciono deixá-la em companhia de meu pai, por algum tempo. Suas lições de virtude doméstica hão de renovar-lhe o coração, segundo cremos.
– É verdade – concordou Fabricius –, o venerando Cneio Lucius reformaria para as tradições romanas os sentimentos mais bárbaros de nossas Províncias.
Fizera-se ligeira pausa na conversação, enquanto Caio tamborilava com os dedos, dando a entender a sua preocupação, como se evocasse alguma dolorosa lembrança.
– Helvídio – murmurou o tribuno fraternalmente –, teu regresso a Roma é de causar apreensões aos teus verdadeiros amigos. Recordando teu pai, lembro-me instintivamente de Silano, o pequeno enjeitado que ele chegou quase a adotar oficialmente como próprio filho, desejoso de libertar-te da calúnia a ti imputada no albor da mocidade...
– Sim – disse o anfitrião, como se houvera repentinamente despertado –, ainda bem que não desconheces ser caluniosa a acusação que pesou sobre mim. Aliás, meu pai não ignora isso.
– Apesar de tudo, teu venerável genitor não hesitou em cumular a criança, a ele encaminhada, com o máximo de carinhos...
Depois de passar nervosamente a mão pela fronte, Helvídio Lucius acentuou:
– E Silano?... Sabes o que é feito dele?
– As últimas informações davam-no como incorporado às nossas falanges que mantêm o domínio das Gálias, como simples soldado do exército.
– Às vezes – ajuntou Helvídio preocupado – tenho pensado na sorte desse rapaz, pupilo da generosidade de meu pai, desde os tempos de minha juventude. Mas, que fazer? Desde que me casei, tudo fiz por trazê-lo à nossa companhia. Minha propriedade da Iduméia poderia proporcionar-lhe uma existência simples e liberta de maiores cuidados, sob as minhas vistas atentas; todavia, Alba Lucínia se opôs terminantemente aos meus projetos, não só recordando os comentários
caluniosos de que fui alvo no passado, como também alegando seus direitos exclusivos à minha afeição, pelo que, fui compelido a conformar-me, levando em conta as nobres qualidades da sua alma generosa.
Bem sabes que minha esposa deve receber as minhas atenções mais respeitosas. Não tenho remédio senão aceitar de bom grado as suas afetuosas imposições.
– Helvídio, bom amigo – exclamou Fabricius, demonstrando prudência –, não devo nem posso interferir na tua vida íntima. Problemas há, na vida, que somente os cônjuges podem solucionar, entre si, na sagrada intimidade do lar; mas, não é apenas pelo caso de Silano que me sinto apreensivo, relativamente ao teu regresso.
E fixando o amigo bem nos olhos, rematou:
– Lembraste de Cláudia Sabina?...
– Sim... – respondeu vagamente.
– Não sei se estás devidamente informado a seu respeito. Cláudia é hoje a
esposa de Lólio Úrbico, o prefeito dos pretorianos. Não deves ignorar que esse homem é a personalidade do dia, como depositário da máxima confiança do Imperador.
Helvídio Lucius passou a mão pela fronte, como se desejasse afugentar uma penosa recordação do passado, revidando, afinal, para tranqüilidade de si mesmo:
– Não desejo exumar o passado, visto ser hoje um outro homem; mas, se houver necessidade de ser prestigiado na Capital do Império, não podemos esquecer, igualmente, que meu sogro é pessoa de toda a confiança, não só do prefeito a que aludes, como de todas as autoridades administrativas.
– Bem o sei, mas não ignoro também que o coração humano tem escaninhos misteriosos... Não acredito que Cláudia, hoje elevada às esferas da mais alta aristocracia, pelos caprichos do destino, haja olvidado a humilhação do seu amor violento de plebéia, espezinhado em outros tempos.
– Sim – confirmou Helvídio Lucius com os olhos parados no abismo de suas recordações mais íntimas –, muitas vezes tenho lamentado o haver nutrido em seu coração uma afetividade tão intensa; mas, que fazer? A juventude está sujeita a caprichos numerosos e, a maior parte das vezes, não há advertência que possa romper o véu da cegueira...
– E estarás hoje menos moço para que te sintas completamente livre dos caprichos multiplicados da nossa época?
O interpelado compreendeu todo o alcance daquelas observações sábias e prudentes, e como se não lhe prouvesse o exame das circunstâncias e dos fatos,
cuja lembrança penosa o atormentaria, replicou sem perder o aparente bom humor, embora os olhos evidenciassem uma preocupação amargurosa:
– Caio, meu bom amigo, pelas barbas de Júpiter! Não me faças voltar ao pélago escuro do passado. Desde que chegaste, nada me disseste além de assuntos penosos e sombrios. De início, é a miséria da Judéia, de arrepiar os cabelos, com os seus quadros de desolação e ruína e, depois, eis-te voltado para o passado escabroso, como se não nos bastassem as atuais amarguras... Fala-me antes de algo que me consolide o repouso íntimo. Embora não saiba explicar o motivo, tenho o coração apreensivo quanto ao futuro. A máquina de intrigas da sociedade romana aborrece-me o espírito, que nunca encontrou ensejos de lhe fugir ao ambiente detestável. Meu regresso a Roma inquina-se de perspectivas dolorosas, embora não ouse confessá-lo!...
Fabricius ouviu-o, atento e compungido. As palavras do amigo denunciavam o profundo temor de retornar ao passado tão cheio de aventuras. Aquela atitude súplice atestava que a recordação dos tempos idos ainda lhe palpitava no peito, apesar de todos os esforços para esquecer.
Reprimindo os próprios receios, falou, então, afetuosamente:
– Pois bem, não falaremos mais nisso.
E acentuando a alegria que lhe causava aquele encontro, continuou
comovidamente:
– Então, poderia acaso esquecer-me de algo que me pedisses?
Sem mais delonga, encaminhou-se para o átrio onde os serviçais de
confiança lhe esperavam as ordens, regressando à sala acompanhado pelo desconhecido que lhe seguira a liteira, na atitude humilde de escravo.
Helvídio Lucius surpreendeu-se, ao ver a personagem interessante que lhe era apresentada.
Identificara, imediatamente, a sua condição de servo, mas o espanto lhe provinha da profunda simpatia que aquela figura lhe inspirava.
Seus traços de israelita eram iniludíveis, porém, no olhar havia uma vibração de orgulho nobre, temperado de singular humildade. Na fronte larga, notavam-se cãs precoces, se bem que o físico denunciasse a pletora de energias orgânicas da idade madura. O aspecto geral, contudo, era o de um homem profundamente desencantado da vida. No rosto, percebia-se o sinal de macerações e sofrimentos indefiníveis, impressões dolorosas, aliás compensadas pelo fulgor enérgico do olhar, transparente de serenidade.
– Eis a surpresa – frisou Caio Fabricius alegremente: – comprei, como lembrança, esta preciosidade, na feira de Terebinto, quando alguns de nossos companheiros liquidavam o espólio dos vencidos.
Helvídio Lucius parecia não ouvir, como que procurando mergulhar fundo naquela figura curiosa, ao alcance de seus olhos, e cuja simpatia lhe impressionava as fibras mais sensíveis e mais íntimas.
– Admiras-te? – insistiu Caio desejoso de ouvir as suas apreciações diretas e francas. – Quererias, porventura, que te trouxesse um Hércules formidando? Preferi lisonjear-te com um raro exemplar de sabedoria.
Helvídio agradeceu com um sinal expressivo, acercando-se do escravo silencioso, com um leve sorriso.
– Como te chamas? – perguntou solícito.
– Nestório.
– Onde nasceste? Na Grécia?
– Sim – respondeu o interpelado com um doloroso sorriso. – Como pudeste alcançar Terebinto?
– Senhor, sou de origem judia, apesar de nascido em Éfeso. Meus antepassados transportaram-se à Jônia, há alguns decénios, em virtude das guerras civis da Palestina. Criei-me nas margens do Egeu, onde mais tarde constituí família. A sorte, porém, não me foi favorável. Tendo perdido minha companheira, prematuramente, devido a grandes desgostos, em breve, sob o guante de perseguições implacáveis, fui escravizado por ilustres romanos, que me conduziram ao antigo país de meus ascendentes.
– E foi lá que a revolução te surpreendeu? – Sim.
– Onde te encontravas?
– Nas proximidades de Jerusalém.
– Falaste de tua família. Tinhas apenas mulher?
– Não, senhor. Tinha também um filho.
– Também morreu?
– Ignoro. Meu pobre filho, ainda criança, caiu, como seu pai, na dolorosa
noite do cativeiro. Apartado de mim, que o vi partir com o coração lacerado de dor e de saudade, foi vendido a poderosos mercadores do sul da Palestina.
Helvídio Lucius olhou para Fabricius, como a expressar a sua admiração pelas respostas desassombradas do desconhecido, continuando, porém, a interrogar:
– A quem servias em Jerusalém?
– A Calius Flavius.
– Conheci-o de nome. Qual o destino do teu senhor?...
– Foi dos primeiros a morrer nos choques havidos nos arredores da cidade,
entre os legionários de Tineio Rufus e os reforços judeus chegados de Betel.
– Também combateste?
– Senhor, não me cumpria combater senão pelo desempenho das obrigações devidas àquele que, conservando-me cativo aos olhos do mundo, há muito me havia restituído à liberdade, junto de seu magnânimo coração. Minhas armas deviam ser as da assistência necessária ao seu espírito leal e justo. Calius Flavius não era para mim o verdugo, mas o amigo e protetor de todos os momentos. Para meu consolo íntimo, pude provar-lhe a minha dedicação, quando lhe fechei os olhos no alento derradeiro.
– Por Júpiter! – exclamou Helvídio, dirigindo-se em alta voz ao amigo – é a primeira vez que ouço um escravo abençoar o senhor.
– Não é só isso – respondeu Caio Fabricius bem-humorado, enquanto o servo os observava ereto e digno –, Nestório é a personificação do bom-senso. Apesar dos seus laços de sangue com a Ásia Menor, sua cultura acerca do Império é das mais vastas e notáveis.
– Será possível? – tornou Helvídio admirado.
– Conhece a História Romana tão bem quanto um de nós.
– Mas chegou a viver na capital do mundo?
– Não. Ao que ele diz, somente a conhece por tradição.
Já convidado pelos dois patrícios, sentou-se o escravo para demonstrar os
seus conhecimentos.
Com desembaraço, falou das lendas encantadoras que envolviam o
nascimento da cidade famosa, entre os vales da Etrúria e as deliciosas paisagens da Campânia. Rômulo e Remo, a lembrança de Acca Larentia, o rapto das Sabinas, eram imagens que, na linguagem de um escravo, broslavam-se de novos e interessantes matizes. Em seguida, passou a explanar o extraordinário desenvolvimento econômico e político da cidade. A história de Roma não tinha segredos para o seu intelecto. Remontando à época de Tarquínio Prisco, falou de suas construções maravilhosas e gigantescas, detendo-se, em particular, na célebre rede de esgotos, a caminho das águas lodosas do Tibre. Lembrou a figura de Sérvio Túlio, dividindo a população romana em classes e centúrias. Numa Pompílio, Menênio Agripa, os Gracos, Sérgio Catilina, Cipião Nasica e todos os vultos famosos da República foram recordados na sua exposição, onde os conceitos cronológicos se alinhavam com admirável exatidão. Os deuses da cidade, os costumes, conquistas, generais intrépidos e valorosos, eram com detalhes indelevelmente gravados na sua memória. Seguindo o curso dos seus conhecimentos, rememorou o Império nos seus primórdios, salientando as suas realizações portentosas, desde o faustoso brilho da Corte de Augusto. As magnificências dos Césares, trabalhadas pela sua dialética fluente, apresentavam
novos coloridos históricos, em vista das considerações psicológicas, acerca de todas as situações políticas e sociais.
Por muito tempo falara Nestório dos seus conhecimentos do passado, quando Helvídio Lucius sinceramente surpreendido o interpelou:
– Onde conseguiste essa cultura, radicada em nossas mais remotas tradições?...
– Senhor, tenho manuseado todos os livros da educação romana, ao meu alcance, desde moço. Além disso, sem que me possa explicar a razão, a Capital do Império exerce sobre mim a mais singular de todas as seduções.
– Ora – ajuntou Caio Fabricius satisfeito –, Nestório tanto conhece um livro de Salústio, como uma página de Petrônio. Os autores gregos, igualmente, não têm segredos para ele. Considerada, porém, a sua predileção pelos motivos romanos, quero acreditar haja ele nascido ao pé de nossas portas.
O escravo sorriu levemente, enquanto Helvídio Lucius esclarecia:
– Semelhantes conhecimentos evidenciam um interesse injustificável da parte de um cativo.
E depois de uma pausa, como se estivesse arquitetando um projeto íntimo, continuou a falar, dirigindo-se ao amigo:
– Meu caro, louvo-te a lembrança. Minha grande preocupação, no momento, era obter um servo culto, que pudesse incumbir-se de enriquecer a educação de minhas filhas, auxiliando-me, simultaneamente, no arranjo dos processos do Estado, a que agora serei compelido pela força do cargo.
O anfitrião mal havia concluído o seu agradecimento, quando surgiram na sala a esposa e as filhas, num gracioso cromo familiar.
Alba Lucínia, que ainda não atingira os quarenta anos, conservava no rosto os mais belos traços da juventude, a iluminarem o seu perfil de madona. Junto das filhas, duas primaveras risonhas, seu aspecto de mocidade ganhava um todo de nobres expressões vestalinas, confundindo-se com as duas, como se lhes fora irmã mais velha, ao invés de mãe extremosa e afável.
Helvídia e Célia, porém, embora a semelhança profunda dos traços fisionômicos, deixavam transparecer, espontaneamente, a diversidade de temperamentos e pendores espirituais. A primeira entremostrava nos olhos uma inquietação própria da idade, indiciando os sonhos febricitantes que lhe povoavam a alma, ao passo que a segunda trazia no olhar uma reflexão serena e profunda, como se o espírito de mocidade houvera envelhecido prematuramente.
Todas as três exibiam, graciosamente, os delicados enfeites do “peplum” em sua feição doméstica, presos os cabelos em preciosas redes de ouro, ao mesmo tempo que ofereciam a Caio Fabricius um sorriso de acolhimento.
– Ainda bem – murmurou o hóspede com vivacidade própria do seu gênio expansivo, avançando para a dona da casa –, o meu grande Helvídio encontrou o altar das Três Graças, entronizando-as egoisticamente no lar. Aliás, aqui estamos nas plagas do Egeu, berço de todas as divindades!...
Suas saudações foram recebidas com geral agrado.
Não somente Alba Lucínia, mas também as filhas se regozijavam com a presença do carinhoso amigo da família, de muitos anos.
Em breve, todo o grupo se animava em palestra amena e sadia. Era o burburinho das notícias de Roma, de mistura com as impressões da Iduméia e de outras regiões da Palestina, onde Helvídio Lucius estagiara junto da família, enfileirando-se as opiniões encantadoras e íntimas, acerca dos pequeninos nadas de cada dia.
Em dado instante, o dono da casa chamou a atenção da esposa para a figura de Nestório, encolhido a um canto da sala, acrescentando entusiasticamente:
– Lucínia, eis o régio presente que Caio nos trouxe de Terebinto.
– Um escravo?!... – perguntou a senhora com entonação de piedade.
– Sim. Um escravo precioso. Sua capacidade mnemônica é um dos
fenômenos mais interessantes que tenho observado em toda a vida. Imagina que tem dentro do cérebro a longa história de Roma, sem omitir o mais ligeiro detalhe. Conhece nossas tradições e costumes familiares como se houvera nascido no Palatino. Desejo sinceramente toma-lo a meu serviço particular, utilizando-o ao mesmo tempo no apuro da instrução de nossas filhas.
Alba Lucínia fitou o desconhecido tomada de surpresa e simpatia. Por sua vez, as duas jovens o contemplavam admiradas.
Saindo, contudo, da sua estupefação, a nobre matrona ponderou refletidamente:
– Helvídio, sempre considerei a missão doméstica como das mais delicadas de nossa vida. Se esse homem deu provas dos seus conhecimentos, tê-las-ia dado também de suas virtudes para que venhamos a utilizá-lo, confiadamente, na educação de nossas filhas?
O marido sentiu-se embaraçado para responder à pergunta tão sensata e oportuna, mas, em seu auxílio veio a palavra firme de Caio, que esclareceu:
– Eu vo-la dou, minha senhora: se Helvídio pode abonar-lhe a sabedoria, posso eu testificar as suas nobres qualidades morais.
Alba Lucínia pareceu meditar por momentos, acrescentando, afinal, com um sorriso satisfeito:
– Está bem, aceitaremos a garantia da sua palavra.
Em seguida, a graciosa dama fitou Nestório com caridade e brandura, compreendendo que, se o seu doloroso aspecto era, incontestavelmente, o de um escravo, os olhos revelavam uma serenidade superior, saturada de estranha firmeza.
Depois de um minuto de observação acurada e silenciosa, voltou-se para o marido dizendo-lhe algumas palavras em voz quase imperceptível, como se pleiteasse a sua aprovação, antes de dar cumprimento a algum de seus desejos. Helvídio, por sua vez, sorriu ligeiramente, dando um sinal de aquiescência com a cabeça.
Voltando-se, então, para os demais, a nobre senhora falou comovidamente:
– Caio Fabricius, eu e meu marido resolvemos que nossas filhas venham a utilizar a cooperação intelectual de um homem livre.
E, tomando de minúscula varinha que descansava no bojo de um jarrão oriental, a um canto da sala, tocou levemente a fronte do escravo, obedecendo às cerimônias familiares, com as quais o senhor libertava os cativos na Roma Imperial, exclamando:
– Nestório, nossa casa te declara livre para sempre!...
Filhas – continuou a dizer sensibilizada, dirigindo-se às duas jovens –, nunca humilheis a liberdade deste homem, que terá toda a independência para cumprir os seus deveres!...
Caio e Helvídio entreolharam-se satisfeitos. Enquanto Helvídia cumprimentava de longe o liberto, com um leve aceno de cabeça, altiva, Célia aproximou-se do alforriado, que tinha os olhos úmidos de lágrimas e estendeu-lhe a mão aristocrática e delicada, numa saudação sincera e carinhosa. Seus olhos encontraram o olhar do ex-escravo, numa onda de afeto e atração indefiníveis. O liberto, visivelmente emocionado, inclinou-se e beijou reverentemente a mão generosa que a jovem patrícia lhe oferecia.
A cena comovedora perdurava por momentos, quando, com surpresa geral, Nestório se levantou do recanto em que se achava e, caminhando até o centro da sala, ajoelhou-se ante os seus benfeitores, osculando humildemente os pés de Alba Lucínia.