Cinquenta Anos Depois

Capítulo II

Calúnia e sacrifício

2 • 2

Helvídio Lúcius encontrava-se entre a Tessália  e a Beócia,  quando lhe chegou a notícia do falecimento do pai. Inútil cogitar de uma visita a Roma, com o fim de confortar o coração desolado dos seus, não somente porque muitos dias já se haviam passado, como também devido aos seus labores intensos, no cargo a ele confiado pelos caprichos do Imperador.

Entre os mármores e preciosidades da antiga Fócida,  em cujas ruínas era obrigado a utilizar os seus talentos na escolha de material aproveitável às obras de Tibur,  sentiu no coração um vácuo imenso. O genitor era para ele um amparo e um símbolo. Aquela morte deixava-lhe n’alma uma saudade imorredoura.

Os longos meses de separação do ambiente doméstico decorriam pesadamente.

Debalde atirava-se ao trabalho para fugir ao desalento que, amiúde, lhe invadia o coração.

 

Embora a comitiva imperial permanecesse em Atenas, junto de Adriano,  ele nunca estava livre das convenções sociais e políticas, no ambiente de suas atividades diuturnas. Sobretudo Cláudia Sabina nunca o abandonava na faina do esforço comum, cooperando na sua tarefa com decisão e com êxito, reconquistando-lhe a simpatia e amizade de outros tempos. Helvídio Lúcius, porém, se lhe admirava a capacidade de trabalho, não poderia transigir no tocante aos sagrados deveres conjugais, guardando a imagem da esposa no santuário de suas lembranças mais queridas, com lealdade e veneração. Recebia as suas cartas afetuosas e confiantes, como um estímulo indispensável aos seus feitos e acariciava a esperança de regressar a Roma em breve tempo, como alguém que aguardasse ansioso o dia de paz e liberdade.

Desde muito, porém, o generoso patrício trazia o íntimo onusto de preocupações e de sombras.

A esposa de Lólio Úrbico,  modificando os processos de sedução, apresentava-se agora, a seus olhos, como amiga devotada e fiel, irmã dos seus ideais e de suas preocupações. No fundo, a antiga plebeia conservava a paixão desvairada de sempre, acompanhada dos mesmos propósitos de vingança para com Alba Lucínia, considerada como usurpadora da sua ventura.

 

O tribuno, entretanto, observando-lhe as dedicações reiteradas e aparentemente sinceras, começou a acreditar no seu desinteresse, verificando a confortadora transformação dos sentimentos da sua profunda capacidade de artificialismo. Cláudia Sabina, contudo, continuava a quere-lo desvairadamente. O constante adiamento de suas esperanças represava-lhe a paixão com mais violência. No íntimo, experimentava os padecimentos de uma leoa ferida, mas a verdade é que, a cada investida do seu afeto, Helvídio lhe fazia perceber o caráter sagrado das obrigações matrimoniais de ambos, indiferente ao seu olhar ansioso e às suas aspirações inconfessáveis. A mulher de Lólio Úrbico desejava ser amada, assim, com tanta fidelidade e devotamento, mas os sentimentos grosseiros do coração não lhe deixavam perceber as vibrações mais nobres do espírito. Sabia, tão somente, que amava Helvídio Lúcius com todos os impulsos do seu temperamento lascivo. Para realizar os seus propósitos inconfessáveis, não recuaria. Odiava Alba Lucínia e não trepidaria em lhe impor a vingança mais cruel, desde que conseguisse voltar às delícias do antigo amor, feito de exclusividade e violência.

 

Cláudia percebeu que o tribuno, apegado às concepções do dever, poderia ser vencido tão somente por uma dissimulação a toda prova, e por isso cercava Helvídio de atenções carinhosas e constantes dedicações. Quando, acidentalmente, se referia à esposa ausente, tinha o cuidado de elogiá-la, esforçando-se por colorir os conceitos com o melhor tom de sinceridade.

Desse modo, o filho de Cneio Lúcius se foi prendendo, novamente, na teia de encantos daquela mulher, concedendo-lhe uma atenção indevida, sensibilizado nas fibras mais íntimas do coração, embora nunca chegasse a olvidar as suas obrigações mais sagradas.

Cláudia Sabina, contudo, afagava novas esperanças. Aos seus olhos, bastaria afastar do caminho a figura incômoda de Alba Lucínia, para assegurar a sua bastarda felicidade.

 

Certo dia, a esposa do prefeito fingindo distração nas palavras, como de costume, asseverou a Helvídio em íntima palestra:

— A última carta de uma das minhas amigas, de Roma, dava-me a conhecer um pormenor curioso da vida de meu marido. Musônia avisa-me que Úrbico passa em sua casa quase todo o tempo de que dispõe nos seus labores de Estado.

— Em minha casa? — Perguntou o tribuno ruborizado, adivinhando a malícia de semelhante informação.

— Sim — respondeu Cláudia aparentando a maior indiferença — sempre notei em meu marido singular predileção por sua família. Lucínia e sua filha sempre foram alvo de suas gentilezas especiais. Aliás, isso não nos pode surpreender. Fábio Cornélio, desde muitos anos, tem sido o seu melhor amigo.

— Sim, isso é incontestável — exclamou Helvídio algo desapontado com semelhantes alusões ao seu lar.

 

Sabina percebeu que aquele instante era favorável para iniciar o tenebroso plano e, fingindo interesse pela paz doméstica de Helvídio Lúcius, acrescentou sem piedade:

— Meu amigo, aqui entre nós, devo dizer-lhe que meu marido não é um homem que justifique os mais preciosos costumes do ambiente romano. Avalie quanto me custa fazer-lhe esta confidência, mas desejo zelar pela paz do seu lar, acima de tudo. Hipócrita e impulsivo por índole, Lólio Úrbico tem feito numerosas vítimas, no campo de suas aventuras de conquistador inveterado. Temo-lhe a frequência a sua casa, por sua mulher e por sua filha.

 

Helvídio fez-se pálido, mas Cláudia, percebendo o efeito de suas palavras, prosseguia impiedosamente:

— Vivemos uma época de surpresas temerosas, na qual as mais sólidas reputações baqueiam imprevistamente… Desde que me casei com o prefeito, venho experimentando uma série de provações. Suas aventuras amorosas têm-me acarretado grandes dissabores, dado o clamor das vítimas, a me repercutirem no coração…

— Por Júpiter! — murmurou o tribuno fortemente impressionado — não posso contestar as suas apreciações, mas quero crer que Fábio Cornélio não se poderia enganar por tantos anos, elegendo no prefeito um de seus melhores amigos.

— Sim, esse argumento parece forte à primeira vista — respondeu Sabina com argúcia — mas convém lembrar que o meu amigo recomeça a sua vida na Capital do Império, depois de muitos anos acostumado à tranquilidade da Província. O tempo demonstrará que o censor e o prefeito se identificaram muito em uns tantos negócios do Estado. Ambos são compelidos a se respeitarem e a se quererem mutuamente, mas, quanto à conduta individual, sabem os deuses da realidade de minhas afirmativas.

 

Helvídio Lúcius desviou a palestra para outros assuntos, reconhecendo a delicadeza daquelas observações sobre a honorabilidade de outrem e a propósito do seu lar, mas, quando Sabina se retirou, sentiu-se envenenado de preocupações injustificáveis e profundas. Que significariam aquelas visitas reiteradas do Lólio Úrbico a sua casa? Porventura, Alba Lucínia ter-se-ia esquecido dos seus sagrados deveres? Fábio Cornélio prender-se-ia tanto aos interesses materiais, a ponto de olvidar o nome e as respeitáveis tradições da família? Na mente do tribuno, as numerosas cogitações íntimas se baralhavam em tormenta. Ainda bem que aquela ausência dolorosa estava prestes a findar. Élio Adriano já expedira as ordens para que largassem da Itália as galeras para o regresso.

 

Em Roma, porém, a situação de Alba Lucínia e da filha chegava ao auge do sofrimento moral. Várias vezes, Célia percebera os colóquios de sua mãe com o impiedoso conquistador, mas, dada a sua timidez, não podia perceber a repulsa da genitora, diante da infâmia e da cruel ousadia. Lucínia, a seu turno, algumas vezes, encontrava o prefeito dos pretorianos em visita a sua casa, quando de suas curtas ausências junto das amigas, encontrando o implacável perseguidor em conversação com a filha, que o acolhia com a tolerância dos seus bons sentimentos, de modo a não ferir o coração materno, salientando-se que a esposa de Helvídio temia, sinceramente, a presença daquele homem cruel, transformado em demônio do seu lar.

A nobre senhora, abatida e doente, pensou em expor a situação ao velho pai e, todavia, considerou que o censor já deveria ter percebido, de longa data, a sua posição angustiosa, do ponto de vista moral, supondo, portanto, que, se ele silenciava, é que lhe sobravam ponderosas razões para faze-lo.

 

Muitas vezes tentou falar à filha sobre tão delicado assunto, supondo-a também vítima das perseguições insidiosas do inimigo da sua paz; todavia, Célia com a sua natural pudicícia jamais deu ensejo às confidências maternais, desviando o curso das conversações e multiplicando os carinhos para com ela, em cujo coração adivinhava as mais angustiosas inquietações.

Afinal, quando faltavam dois meses para o regresso definitivo de Helvídio, Alba Lucínia acamou-se, extremamente abatida.

Mais de um ano fazia que o Imperador ausentara.

Foram catorze meses de angústia para a filha de Fábio Cornélio, cuja saúde não pudera resistir ao embate das provações mais penosas. Célia, igualmente, tinha as faces descoradas e tristes. Através dos seus traços, podia observar-se o enfraquecimento orgânico. As preocupações filiais se traduziam por longas noites de insônia, que acabaram por lhe arruinar a saúde, antes vigorosa. Com a sua ternura inata, ela tudo fazia por consolar a mãezinha combalida.

 

Dos portos da Itália foram enviadas quatro grandes galeras para o regresso de Adriano e sua comitiva. A primeira embarcação, chegada ao litoral da Ática,  foi disputada pelos elementos mais ávidos de retornar ao ambiente romano, entre os quais Cláudia Sabina, que pretextava a necessidade de voltar quanto antes, considerando os apelos do seu círculo doméstico.

Helvídio Lúcius estranhou aquela pressa, mas não podia adivinhar o alcance de seus planos. Ele também desejaria regressar, urgentemente, mas era obrigado a atender ao convite do Imperador, para fazer-lhe companhia na embarcação de honra, que chegaria a Óstia  oito dias depois das primeiras galeras.

Daí a alguns dias, a mulher do prefeito dos pretorianos chegava à Capital do Império, com o avanço de uma semana, de molde a cogitar da realização dos sinistros projetos de vingança que lhe trabalhavam a mente. O marido recebeu-a com a frieza habitual e os servos da casa, com a angústia que a sua presença lhes facultava.

 

Cláudia Sabina teve meios de fazer chegar à Hatéria a notícia de sua volta, encarecendo-lhe a visita com a possível urgência.

Em frente de sua cúmplice, a quem dispensava o máximo de generosidade, a antiga plebeia disse-lhe ansiosamente:

— Hatéria, chegou o momento de jogar a última cartada na minha partida. Realizarei meu projeto sem vacilar nas minhas atitudes, e, quanto a ti, receberás agora o prêmio da tua dedicação.

— Sim, senhora — retrucava a serva com o olhar cúpido, considerando a propina.

— Como vai a mulher de Helvídio?

— A patroa vai muito abatida, e doente.

— Ainda bem — murmurou Sabina satisfeita — isso favorece a execução dos meus planos.

 

E depois de fixar na companheira os olhos a ansiosos, acentuou de maneira singular:

— Hatéria, estás preparada para o que possa acontecer?

— Sem dúvida, minha senhora. Entrei em casa do patrício Helvídio Lúcius, para vos servir, exclusivamente.

— Não te arrependerás por isso — disse Sabina com decisão. — Ouve-me: estamos ao termo da missão que te retém junto de Alba Lucínia. Espero do teu esforço o último serviço de colaboração na minha tarefa de amplo desagravo do passado doloroso. Tenho sido generosa contigo, mas desejo assegurar o teu futuro pelos bons serviços que me hás prestado. Que desejas para descanso da tua velhice no seio da plebe desamparada?

 

Depois de pensar um momento, a velha serva murmurou satisfeita, como se já houvesse realizado, no íntimo, todos os cálculos imprescindíveis a uma resposta mais exata.

— Senhora, sabeis que tenho uma filha casada, cujo marido vem arcando com a maior miséria nos seus dias de tormento e de pobreza. Valério, meu genro, teve sempre grande amor à vida do campo; mas, em sua penosa condição de liberto pobre, jamais conseguiu amealhar o suficiente para adquirir um trato de terra, onde pudesse fazer a felicidade da família. Meu ideal, portanto, é possuir um sítio longe de Roma, onde me recolhesse junto dos filhos e dos netos que me estimarão, como hoje, nos dias próximos da decrepitude e da invalidez para o trabalho.

— Teus desejos serão satisfeitos — exclamou a mulher do prefeito, enquanto Hatéria a escutava, cheia de alegria — vou indagar o custo de um sítio aprazível e, no momento oportuno, dar-te-ei a quantia necessária.

— E que devo fazer agora para lograr semelhante ventura?

— Escuta — disse Cláudia com gravidade — de hoje a uma semana Helvídio Lúcius deverá estar de volta. Na tarde de sua chegada, deverás procurar-me para receber instruções. Nesse mesmo dia terás o dinheiro necessário para realizar teus desejos. Por agora, vai-te em paz e confia em mim.

 

Hatéria estava radiante com as perspectivas do futuro, sem levar em conta os meios criminosos que haveria de empregar para atingir seus fins.

No dia seguinte, pela manhã, uma liteira modesta saía da residência de Lólio Úrbico, em direção à Suburra. 

Será inútil esclarecer que se tratava de Cláudia Sabina dirigindo-se à , com quem haveria de concluir os seus projetos sinistros.

A feiticeira de Cumas recebeu-a sem surpresa, como se estivesse à sua espera.

Depois de mergulhar as mãos ávidas na aluvião de sestércios que Cláudia lhe trazia, Plotina concentrou-se diante da trípode que já conhecemos, falando em seguida:

— Senhora, o momento é único! Deveremos cuidar de todos os pormenores, quanto ao que vos cumpre fazer, afim de que se não percam os nossos melhores esforços.

 

Cláudia Sabina pôs-se a meditar num plano minucioso que a feiticeira submetia ao seu critério.

Plotina falava em voz muito baixa, como se receasse as próprias paredes, tal a ignomínia das sugestões criminosas.

Finda a longa exposição, a consulente retrucou pensativa:

— Mas não seria melhor exterminar a rival? Tenho alguém em sua casa que se poderá incumbir do último golpe. Sei que conheces os filtros mais violentos e que mos podes fornecer hoje mesmo.

— Senhora — as vossas ponderações são razoáveis, mas deveis recordar que a morte do corpo só aproveita aos assuntos de ordem material; e, em nosso caso, eles são de ordem espiritual, tornando-se indispensável um golpe infalível. Quem nos dirá que o homem amado voltará aos vossos braços se a companheira descer às cinzas de um túmulo? Os que partem para o Além costumam deixar uma saudade duradoura, alimentando sempre uma paixão inextinguível.

 

E enquanto a esposa do prefeito considerava as estranhas insinuações como certas e justas, Plotina continuava:

— É preciso instilar o ódio no coração do homem desejado, para que a vossa ventura seja efetiva. Para atingirmos esse fim, necessária se torna flagelar a alma, abatendo-a e destruindo-a.

— Sim, as tuas advertências são assaz judiciosas e não devo desprezá-las, mas, de conformidade com o teu plano, meu marido deverá desaparecer…

— E que vos importa isso, se a sua morte se faz necessária? Não forçais o destino para gozar a felicidade possível com outro homem?

— Sim, teu projeto é o melhor, porquanto chegaste a prever todas as consequências.

 

E, como se apostrofasse a figura imaginária da rival, vítima da sua insânia e do seu ódio, acentuou com os olhos perdidos no vácuo:

— Alba Lucínia deverá viver!… Relegada a uma plana inferior, com a sua vergonha, padecerá o desprezo e a execração que tenho padecido!…

Plotina levantara-se. De um armário esquisito, retirou frascos e pacotes que entregou à cliente, com observações especializadas.

Aceitando de alma aberta o plano odioso, Cláudia Sabina saiu, prometendo voltar.

Daí a dias Élio Adriano com a sua imponente comitiva entrava pela Porta Óstia,  aclamado pela onda espessa do patriciado e do povo.

O Imperador, com a sua predileção pelas relíquias da antiguidade, recomendou a Helvídio superintendesse todo o serviço de descarga das peças curiosas da Fócida,  destinadas a Roma. O tribuno, porém, delegando a incumbência a um dos seus prepostos de confiança, dirigiu-se à cidade, para abraçar a esposa e a filha.

 

Lucínia e Célia receberam-no com transportes de júbilo indizível.

O tribuno, porém, abraçou-as tomado de enorme surpresa. Ambas se encontravam desfiguradas e doentes. Nada obstante, trocaram-se impressões carinhosas, cheias do encantamento e do júbilo de se reverem. Assinalando essa comovedora alegria, o generoso patrício, amante do lar, retirou de pequena caixa um soberbo bracelete de pedras preciosas, que entregou à esposa como lembrança de Atenas e deu à filha uma formosa pérola adquirida na Acaia,  como recordação da Grécia longínqua.

Depois, foi um longo desfiar de reminiscências amigas e doces. Alba Lucínia teve de confiar ao marido todas as peripécias da enfermidade, agonia e morte de Cneio Lúcius.

Enquanto a cidade se repletava de espetáculos para ilustrar o regresso do Imperador, Helvídio Lúcius e os seus entretinham-se em palestra cariciosa, matando as saudades recalcadas.

 

Todavia, quando os derradeiros clarões do Sol preludiavam o crepúsculo, o patrício disse à esposa, com grande ternura:

— Agora, querida, regressarei à Óstia, onde sou obrigado a pernoitar ainda hoje. Amanhã estarei definitivamente reintegrado em casa, afim de organizarmos a nossa vida nova. Já me avistei com Fábio Cornélio, que acompanhou o Imperador ao lado do prefeito, mas somente amanhã poderei estar com Márcia, para ouvi-la acerca de meu pai e dos seus últimos desejos.

— Mas, as responsabilidades em Óstia são assim tão imperiosas? — perguntou Alba Lucínia preocupada — Para os serviços do Imperador não teria bastado a ausência de mais de um ano?

— Sim, querida, faz-se mister cumprirmos o dever nas suas características mais severas. Adriano incumbiu-me da verificação de todas as relíquias transportadas da Grécia e não posso confiar tão somente no trabalho dos servos, dado o valor considerável da carga em apreço. Mas, não te amofines com isso!… Lembra-te que amanhã aqui estarei para concertar os nossos planos familiares.

 

Alba Lucínia aquiesceu com um sorriso triste, como se estivesse em face do inevitável. Seu coração, porém, desejava a presença do companheiro para confiar-lhe, imediatamente, os seus íntimos dissabores.

Ao cair da tarde, a liteira de Helvídio saía de casa apressadamente.

Alba Lucínia recolhia-se ao leito, cheia de novas esperanças, enquanto a filha voltava às suas meditações.

Alguém, contudo, saía da residência do tribuno, cautelosa e apressadamente, sem despertar a curiosidade dos serviçais domésticos. Era Hatéria que se dirigia para o Capitólio. 

Cláudia Sabina recebeu-a sôfrega, fazendo-a entrar num gabinete mais discreto e falando-lhe nestes termos:

— Ainda bem que vieste mais cedo! Tenho de tomar muitas providências.

— Aguardo as vossas ordens — respondeu a criatura na sua fingida humildade.

— Hatéria — volveu Sabina com voz quase imperceptível — estou vivendo horas decisivas para o meu destino. Confio em ti como se confiasse em minha própria mãe.

E entregando-lhe pesada bolsa, com o preço da traição, acrescentava:

— Aqui está o prêmio da tua dedicação em favor da minha felicidade. São economias com que poderás adquirir um sítio, longe de Roma, conforme desejas.

 

Hatéria, cúpida, recebia a pequena fortuna, deixando transparecer estranha alegria nos olhos fulgurantes.

A mulher de Lólio Úrbico, todavia, continuava em tom discreto:

— Em troca da minha generosidade, exijo-te, contudo, segredo tumular, ouviste?

— Essa exigência me é muito grata, creia-me — dizia a cúmplice.

— Cofio na tua palavra.

E depois de uma pausa, olhos perdidos no vácuo, como a antever os seus feitos horríveis, acentuou:

— Conheces a coluna lactária, no mercado de legumes? 

— Sim, não fica longe do Pórtico de Otávia.  Há muitos anos, por ali perambulei, afim de observar as criancinhas abandonadas.

— Neste caso não me será difícil explicar-te o que pretendo.

 

Começou a falar com a velha serva em voz muito baixa, expondo-lhe os seus projetos, enquanto Hatéria a ouvia muito admirada, mas aquiescendo a todas as sugestões.

Cláudia Sabina parecia alucinada. Olhar abstrato, a expressão fisionômica tinha um quê de sinistro. Como que concentrada no só propósito de efetivar os seus planos, dirigia-se à velha serva maquinalmente:

— Hatéria — disse, entregando-lhe um pequeno frasco — este filtro dá repouso físico e sono prolongado… Ao ministrá-lo, é preciso que Alba Lucínia descanse tranquilamente…

Confiando-lhe outro frasco, afoitamente acrescentava:

— Leva também este! Terás necessidade de tudo isso!…

E, enquanto a serva guardava os elementos do crime, acentuava:

— Que os deuses da minha vingança nos protejam… Até que enfim, chegou o instante da desforra… Sim, Hatéria, amanhã Helvídio Lúcius saberá, para todos os efeitos, que a esposa lhe foi infiel, apresentando-lhe o fruto de um crime… A escolha da criança ficará ao teu critério… Poderei contar absolutamente contigo?

— Pela fé no poder de , podeis confiar em mim, senhora. Irei à coluna lactária, depois da meia noite, e levarei comigo a criança. Os recém-nascidos são ali abandonados diariamente, às dezenas…

 

Assentada a combinação sinistra, a noite já havia desdobrado sobre Roma o seu manto de sombras espessas.

Todavia, enquanto Hatéria retornava à casa dos amos, Cláudia Sabina privava-se das festas noturnas do Imperador, encaminhando-se à Porta de Óstia  apressadamente.

Encontrando-se lá com o filho de Cneio Lúcius, solicitou-lhe o favor de uma palavra em particular, no que foi imediatamente atendida.

— Helvídio — falou a perversa criatura com a sua facilidade de dissimulação — aqui estou para prevenir-te, reservadamente, de graves acontecimentos, aliás, já por mim previstos, quando na Grécia.

— Mas, que acontecimentos? — Interrogou o patrício com ansiedade.

— Deves estar preparado para ouvir-me, pois acredito que o prefeito dos pretorianos, com a bruteza dos seus sentimentos, chegou a macular a honra da tua casa.

— Impossível! — Exclamou o tribuno com veemência.

— Entretanto, deves ouvir Alba Lucínia imediatamente, verificando até que ponto conseguiu Lólio Úrbico introduzir-se no teu lar.

 

Eu não posso duvidar de minha mulher sequer um minuto — revidou com sinceridade.

— Queres ou não ouvir-me até o fim, para conheceres os pormenores do fato? — Perguntou Sabina encolerizada.

— Ouvi-la-ei com prazer, desde que o assunto não se refira à minha família e à honra da minha casa.

— É possível que tua opinião amanhã se modifique.

E, despedindo-se bruscamente do homem de suas paixões, que sabia defender as tradições do lar e da família, a antiga plebeia regressava ao Capitólio, mais que nunca interessada no desdobramento dos seus sinistros desígnios. O gênio do mal, que lhe falava no coração, preparava para aquela noite os acontecimentos mais terríveis.

 

Enquanto a vemos, pela madrugada, a examinar documentos e pergaminhos no gabinete de Lólio Úrbico, acompanhemos Hatéria até o mercado de legumes.

A sociedade romana já se havia habituado a ver junto da coluna lactária os míseros enjeitadinhos. Esse local de triste memória, onde muitas mães abnegadas acolhiam pobres crianças abandonadas, constituía como que os primórdios das famosas “rodas de expostos”,  nos estabelecimentos de caridade cristã, que floresceriam mais tarde para o mundo.

À claridade mortiça da Lua, antes do amanhecer, a velha serva verificou a presença de três míseros pequeninos. Um deles, porém, chamou-lhe a atenção pelos seus suaves vagidos de recém-nato. Era uma criancinha de traços delicados e nobres, que a cúmplice de Cláudia pôde examinar, minuciosamente, à luz de uma tocha. O enjeitadinho, com roupas muito pobres, parecia nascido de poucas horas. Hatéria tomou-o nos braços, quase com enlevo, considerando intimamente: esta criança deve ser um digno rebento de patrícios romanos!… Que penoso romance não se ocultará no seu vestidinho roto e ordinário…

 

Levou-o consigo, penetrando na sala dos amos com todo o cuidado.

Amanhecia…

À noite, a criminosa adicionara o narcótico aos remédios de sua senhora.

Entrou no quarto onde a esposa de Helvídio repousava, tranquilamente, depôs a criança ao seu lado, envolvendo-a no ambiente tépido das coberturas. Em seguida, preparou ali toda a encenação necessária, sem que a pobre vítima do filtro que a mergulhara em longo e pesado sono pudesse perceber o que se passava.

Todavia, o pequenino começou a chorar fracamente, embora a serva criminosa fizesse o possível por acalmá-lo.

No quarto contíguo ao de sua mãe, dado o ruído insólito, Célia despertava.

Acordou aturdida e sensibilizada. Acabava de sonhar que se encontrava, novamente, no cemitério triste da Porta Nomentana,  como na memorável noite em que pudera rever o bem-amado de sua alma. Figurou-se-lhe contemplar Ciro a seu lado, enquanto Nestório mantinha a mesma atitude das suas antigas prédicas perguntando: — Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos? (Mt 12:46) Tinha o cérebro ainda preso de emoções carinhosas, e as mais ternas lembranças no coração de menina e moça…

 

Nesse instante, o ruído insólito chegava-lhe aos ouvidos. Vagidos de criança? Que significaria aquilo?

Levantou-se, apressada, com o pensamento ansioso, mergulhado em dolorosas perspectivas.

Notando o movimento de alguém que se aproximava, Hatéria fez menção de retirar-se à pressa, mas a jovem já havia transposto a porta, verificando-lhe a presença.

Contemplando a criança ao lado de sua mãe adormecida e os sinais evidentes de quanto caracteriza o lugar de um parto, presumiu adivinhar o drama com as amargas suspeitas do seu coração filial.

Um turbilhão de pensamentos penosos surpreendeu-lhe o cérebro enfraquecido. Sim, aquela criancinha deveria ter nascido ali, como consequência fatal de uma tragédia inesquecível.

— Hatéria — exclamou num gemido — que significa tudo isso?

— Vossa mãe, esta noite, minha boa menina — respondeu a serva criminosa, sem se perturbar — deu à luz um pequenino…

— É incrível! — Soluçou a filha de Helvídio, com a voz estrangulada.

— Entretanto é a verdade — revidou Hatéria em voz muito baixa — não dormi, auxiliando a senhora em seus sofrimentos!

E, apontando para a infortunada consorte do tribuno, exclamava quase tranquila:

— Agora ela dorme… e precisa repousar.

 

Célia não podia definir a intensidade dolorosa dos pensamentos que a empolgava. Nunca acreditara que sua mãe pudesse prevaricar na ausência paterna. Seu coração carinhoso sempre fora, ao seu ver, um modelo de virtudes, um símbolo de honestidade. Certamente Lólio Úrbico levara a infâmia aos mais pavorosos extremos. Ela bem lhe ouvira as palavras de conquistador desalmado e cruel! Além de tudo, sua mãe há muito que andava doente. Com certeza, seu coração bondoso e honesto estava cheio de tormentos da compunção e do arrependimento. Sentia pela mãe um enternecimento infinito. Seu pai regressara na véspera, cheio de novas esperanças. Ela surpreendera lágrimas nos olhos maternos, pranto esse que deveria ser de júbilo intenso e de comovedora alegria. Quanto não haveria sofrido o coração materno naqueles longos meses de expectativas angustiosas! Alba Lucínia, porém, sua mãe e melhor amiga, tinha agora um filhinho que não era uma flor do tálamo conjugal. Helvídio Lúcius não lhe perdoaria nunca. Célia conhecia a enfibratura do pai, assaz generoso, mas demasiadamente impulsivo. Além de tudo, a sociedade romana não admitia transigências, em se tratando de tragédia como aquela, no seio do patriciado. Com as lágrimas a borbulharem-lhe dos olhos, naquelas ríspidas e singulares meditações, a jovem cristã lembrou-se do sonho daquela noite, e pareceu-lhe ainda ouvir Nestório a repetir as palavras do Evangelho — “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” — Levando as suas lembranças mais longe, recordou a exortação nas vésperas do sacrifício, quando afirmara que a melhor renúncia por Jesus não era propriamente a da morte, mas a do testemunho que o crente fornece com os exemplos da sua vida. Depois a figura do avô surgiu, espontânea em sua mente. Parecia-lhe que Cneio voltava do túmulo para recomendar-lhe, mais uma vez, a tranquilidade do pai e a ventura da mãe, nas provas asperíssimas!…

 

De olhos molhados, aproximou-se do pequenino, que abrira os olhos pela primeira vez, às primeiras claridades do dia… O enjeitadinho fez um movimento com os braços minúsculos, como se os levantasse para ela, suplicando-lhe conforto e afeto. Célia sentiu que as suas lágrimas caíam-lhe no rosto alvo e minúsculo, experimentando no coração uma ternura infinita. Retirou-o com cuidado como se o fizesse a um irmãozinho… Sentiu que o coraçãozinho batia-lhe de encontro ao seu, como o de uma ave assustada, sem direção e sem ninho… Seu espírito, como que tocado de sentimentos misteriosos e inexplicáveis, estava também povoado das mais profundas emoções maternas…

Depois de alguns minutos, em que Hatéria a contemplava surpreendida, Célia ajoelhou-se aos pés da serva, exclamando comovedoramente no seu sublime espírito de sacrifício:

— Hatéria, minha mãe é honesta e pura! Esta criança que vês nos meus braços é meu filho! Sê-lo-á, meu filhinho, agora e sempre, compreendes?

— Jamais o direi — respondeu a cúmplice de Cláudia, aterrada.

— Mas, ouve! Tu que foste a confidente da minha mãe ajuda-me a salvá-la!… Pelo amor de tuas crenças, confirma os meus propósitos!… Minha mãe precisa cuidar de meu pai no curso da vida e meu pai a adora! Se ela errou, porque não auxiliarmos a sua felicidade, devolvendo à sua alma a ventura merecida? Minha mãe nunca erraria de moto próprio!… Foi sempre boa, carinhosa e fiel… Só um homem muito perverso poderia induzi-la a uma falta dessa natureza, pelos caminhos do crime!…

 

Lacrimejante, enquanto a criada a escutava estarrecida, continuava:

— Cede aos meus desejos! Esquece o que viste esta noite, considerando que os tiranos dos nossos tempos costumam raptar nobres damas aplicando-lhes filtros de esquecimento! Minha pobre mãe deve ter sido vítima desses processos miseráveis… Quero salvá-la e conto contigo!… Dar-te-ei todas as minhas joias mais preciosas. Meu pai não costuma dar-me dinheiro em espécie, mas tenho dele e de meu avô as lembranças mais ricas… Ficarão contigo! Vende-las-ás onde quiseres… Arranjarás uma pequena fortuna…

— Mas, e a menina? — murmurou Hatéria espantada com o imprevisto dos acontecimentos — já pensou que essa ideia do sacrifício é impossível? Com quem ficaríeis no mundo? Vosso pai porventura, suportaria ver-vos assim, como mãe de uma criança infeliz?!…

— Eu… — exclamou a jovem com atitudes reticenciosas, como se desejasse lembrar alguém que a pudesse valer em tão dolorosas circunstâncias — eu… ficarei com Jesus!…

 

Em seguida, ante o silêncio de Hatéria, que lhe obedecia maquinalmente, todo o cenário foi transportado ao seu quarto, enquanto Célia conchegava o pequenino ao coração, entregando à serva ambiciosa todas as joias mais preciosas e guardando, apenas, a pérola que Helvídio lhe dera na véspera.

Alba Lucínia, contudo, saíra do seu torpor, repentinamente. Aturdida com os efeitos do narcótico, estava surpresa, ouvindo no quarto da filha os vagidos da criança.

Divisando o vulto de Hatéria através de uma cortina, chamou-a em voz alta para certificar-se do que ocorria.

A criada criminosa, porém, apareceu-lhe de frente, lívida e aterrada…

Levando as mãos à cabeça num gesto de fingido desespero, exclamava com esgares estranhos:

— Senhora!… Senhora! que grande desgraça!…

 

A esposa do tribuno, com o coração a lhe saltar do peito, pálida e aturdida, ia interrogar a serva, quando alguém transpôs a porta e penetrou no aposento.

Era Helvídio. O genro de Fábio não conseguira conciliar o sono. Depois das insinuações pérfidas de Sabina, parecia que veneno atroz lhe destruía todas as forças do coração. Trabalhou intensamente para que as horas da noite lhe fossem menos amargurosas e, todavia, ao dealbar da aurora, montara um cavalo veloz que o transportou célere, à casa, para consolidar a sua tranquilidade espiritual junto da mulher e da filhinha.

Lá chegando, ainda ouviu a velha serva exclamar desesperada:

— Uma desgraça!… uma grande desgraça!…

Enquanto Lucínia o contemplava aflita e amargurada, Helvídio Lúcius caminhava para ela e para a criada, com o semblante carregado e triste…

— Explica-te, Hatéria!… — Teve forças para murmurar à pobre senhora, aflitamente.

 

Nesse instante, porém, depois de longa prece, a jovem cristã surgiu, quase cambaleante, à porta da alcova materna.

Tinha os olhos vermelhos e tristes, a roupa mal posta, os cabelos em desalinho. Acalentado em seus braços afetuosos, o pequerrucho se acalmara, qual pássaro que houvesse reencontrado o ninho tépido.

Helvídio e sua mulher contemplaram a filha, surpresos e aterrados.

— Mas que significa tudo isso? — Explodiu o tribuno dirigindo-se à serva.

Célia quis explicar-se, mas a voz estrangulara-se-lhe na garganta, enquanto Hatéria esclarecia:

— Meu senhor, a menina, esta noite…

Contudo, ante o olhar duro do patrício, a sua voz se perdia nas reticências dos remorsos e das dúvidas, quanto às terríveis consequências da sua infâmia.

Célia, porém, cheia de fé na Providência Divina e sinceramente desejosa de sacrificar-se por sua mãe, ajoelhara-se humilde, exclamando com voz quase firme:

— Sim, me pai… minha mãe… pesa-me a confissão da minha falta, mas esta criança é meu filho!…

 

O tribuno sentiu que uma comoção desconhecida invadiu-lhe todo o ser. A cabeça andava-lhe à roda, ao mesmo tempo que lividez de mármore cobria-lhe as feições, vincadas de cólera e angústia. Os mesmos fenômenos fisiológicos passavam-se com sua mulher, cujos olhos aterrados não encontravam lágrimas para chorar. Alba Lucínia contudo ainda teve energia para murmurar, olhando o Alto:

— Deus do Céu!…

Célia, porém, genuflexa, enquanto Hatéria erguia a cabeça, fria e impassível, exclamava com o pranto da sua humildade:

— Se puderdes, perdoai a filha que não conseguiu ser feliz! Sei o crime cometido e aceito de boa vontade as consequências da minha falta!

De olhos baixos, com as lágrimas a aljofrarem a face do inocentinho, a jovem continuava dirigindo-se ao pai, que a ouvia estarrecido, como se o pavor daquela hora o houvesse petrificado:

— Na vossa ausência, andou nesta casa o espírito de um tirano!… Recebido como amigo, assediou minha mãe com todos os seus processos de infâmia… Ela, porém, como sabeis, foi sempre fiel e pura!… Reconhecendo-lhe a virtude incorruptível, o prefeito dos pretorianos abusou da minha inocência, levando-me ao que vedes!… Nunca confessei à mamãe as faltas de minh’alma, mas esta noite senti a realidade da minha desventura! No auge dos sofrimentos, busquei o auxílio de Hatéria, para salvar a vida deste inocentinho!…

E erguendo os olhos súplices para a criada impassível, a jovem acrescentava:

— Não é verdade, Hatéria?

 

Lucínia e o esposo não queriam acreditar no que viam, mas a serva criminosa confirmava com fingida amargura:

— É verdade!…

— Sei que as nossas tradições não me perdoam a falta — continuava Célia, tristemente — mas toda a minha mágoa vem do fato de haver maculado o lar paterno, aceitando uma afronta e dando margem a desonra!… Não posso ser perdoada, mas vede o meu arrependimento e tende compaixão do meu espírito abatido! Expiarei o crime como as circunstâncias exigirem, e, se for indispensável a morte para lavar a mácula, saberei morrer com humildade!…

As lágrimas embargavam-lhe a voz, não obstante sentir-se amparada por braços intangíveis do Plano espiritual, no instante penoso do sacrifício.

Helvídio Lúcius, saindo do seu pasmo, deu alguns passos em direção à esposa trêmula, perguntando com voz estranha e quase infame?

Alba Lucínia, experimentando a queda de todas as suas energias, recordava o seu calvário doméstico, em face das investidas do conquistador, cuja perseguição à filha o seu espírito adivinhara. Longe de sentir toda a realidade tenebrosa daquelas cenas que o gênio criminoso de Cláudia Sabina havia idealizado, murmurou fracamente:

— Sim, Helvídio, o prefeito, tem sido o verdugo impiedoso da nossa casa!

— Mas, meu coração não quer acreditar no que os meus olhos veem — murmurou o tribuno surdamente.

 

Célia continuava genuflexa, olhos nevoados de lágrimas, amparando o pequenino que chorava.

Alba Lucínia contemplava a filha, tomada de amargura e de assombro. Agora, presumia compreender as esquivanças da filhinha a todos os passeios, nos derradeiros tempos, para só confugir-se ao insulamento do seu quarto, engolfada em preces e meditações. Atribuía o retraimento de Célia à morte do avô, que lhes deixara a ambas as mais penosas saudades. Entretanto, sua desconfiança de mãe entendia, agora, que o conquistador covarde havia abusado da inexperiência de sua filha. Muitas vezes, receara sair deixando-a só, no lar, porquanto a intuição materna há muito lhe advertia que Lólio Úrbico buscaria vingar-se executando as suas terríveis ameaças. Agora, a realidade amarga torturava-lhe o espírito.

— Lucínia — continuou Helvídio sombriamente — explica-te!… Não terias exercido nesta casa a preciosa vigilância materna? É verdade que o prefeito dos pretorianos insultou a tua dignidade?…

— Helvídio — soluçou com voz tremente — tudo o que ocorre é absolutamente estranho e incrível, mas o fato aí está patente, atestando a realidade mais amarga! Desconfiava que a nossa pobre filha fosse também vítima do perverso amigo de meu pai, porquanto, de minha parte venho sofrendo, desde que partiste, as mais atrozes perseguições, traduzidas em contínuas ameaças, dada a minha resistência aos seus inconfessáveis desejos…

 

Ante o esboroar de suas últimas esperanças, com a palavra sincera da esposa que se mostrava amargurada e surpreendida, o orgulhoso patrício deixou-se dominar completamente pelas realidades aparentes daquela hora trágica.

De punhos cerrados, olhos duros e sombrios a revelarem disposições inflexíveis de vingança, Helvídio Lúcius exclamou com voz terrível, dominadas todas as suas expressões fisionômicas por um ricto de angústia:

— Vingar-me-ei do infame, sem piedade!…

E contemplando a filha que permanecia de joelhos e de olhos baixos, como se evitasse o olhar paterno, acentuou terrivelmente:

— Quanto a ti, deverás morrer para resgatar o crime hediondo!… Iniciando os meus desgostos, com o preferir aos escravos, acabaste arruinando o meu nome, levando esta casa a uma situação execrável! Mas, saberei lavar a mancha criminosa com as minhas decisões implacáveis!…

 

Dito isso, o orgulhoso tribuno arrancou acerado punhal, que reluziu à luminosidade do Sol matinal, mas Alba Lucínia, de um salto, prevendo-lhe a resolução inflexível, susteve-lhe o braço, exclamando angustiada:

— Helvídio, pelos deuses e por quem és… Não basta a dor imensa da nossa vergonha e da nossa desventura?!… Queres agravar nossos padecimentos com a morte e com o crime? Não! Isso não!… Acima de tudo, Célia é nossa filha!

Nesse instante, o tribuno lembrou-se repentinamente das rogativas amoráveis do genitor, na mais profunda recordação, como a pedir-lhe calma, resignação e clemência. Pareceu-lhe que Cneio Lúcius regressava das sombras do sepulcro para lhe suplicar pela neta idolatrada, cooperando nas exortações da esposa.

Então, sentindo o coração saturado de um sofrimento moral indefinível, acentuou com voz cavernosa:

— Os deuses não permitirão seja eu um miserável filicida… Mas, esmagarei o traidor como se esmaga uma víbora!

 

E, voltando-se de repente para a filha humilhada, sentenciou com energia:

— Poupo-te a vida, mas, doravante estás definitivamente morta para a nossa desdita imensurável!… Vai-te desta casa com o fruto da tua infâmia, porque tua indignidade não te permite viver mais um minuto sob o teto paterno!… És maldita para sempre!… Foge para qualquer parte, sem te lembrares de teus pais ou do teu nascimento, porque Roma assistirá ao teu funeral em breves dias! Serás estranha ao nosso afeto!… Não nos recordes, nunca, nem busques o passado, pois eu poderia exterminar-te nos meus impulsos!…

Célia continuava na sua atitude humilde, de joelhos, mas aos seus ouvidos ressoavam as palavras decisivas do pai orgulhoso e ofendido no seu amor-próprio.

— Vai-te, foge, maldita!…

Ergueu-se ela, então, cambaleante, endereçando à mãe um derradeiro olhar, no qual parecia concentrar toda a sua crença e toda a sua esperança… Alba Lucínia retribuiu-lhe o gesto afetuoso, fixando-a com a sua ternura dolorosa. Pareceu-lhe descobrir na limpidez daquele olhar toda a inocência d’alma piedosa e cristã da desventurada filha; todavia o seu coração maternal agradecia intimamente aos deuses o lhe haverem poupado a vida…

 

Compreendendo a inflexibilidade da ordem paterna, Célia deu alguns passos vacilantes e, saindo por uma porta lateral, encontrou-se em plena rua, sem direção nem destino, enquanto atrás dela fechavam-se as portas do lar paterno, para sempre.

Depois de exprobrar a conduta da esposa, culpando-a pela indiferença e falta de vigilância, e após prometer recompensar o silêncio de Hatéria, ameaçando-a também com o cárcere, caso viesse a verificar-se o contrário, mandou um servo dos mais prestimosos à residência dos sogros, chamando-os a sua casa com a maior urgência.

Dentro de uma hora, Fábio Cornélio e sua mulher encontravam-se junto do casal, inteirando-se de todo o acontecido.

Enquanto o coração de Júlia Spínter sentia-se tocado das mais dolorosas emoções, o velho e orgulhoso censor exclamava convictamente:

— Sim, Helvídio, vamos procurar o traidor quanto antes, afim de o exterminar, sejam quais forem as consequências; mas, devias ter aniquilado a filha, pois o sangue deve compensar os prejuízos da vergonha, segundo os nossos códigos de honra!… Mas, enfim, ela estará moralmente morta para sempre. Depois de exterminarmos Lólio Úrbico, faremos com que as cinzas de Célia venham de Cápua  para serem recolhidas em Roma, ao jazigo da família.

 

Ao passo que as duas senhoras, mãe e filha, ficavam no aposento, sucumbidas, consolando-se reciprocamente e rogando a proteção dos deuses para a tragédia inesperada e dolorosa, Fábio e Helvídio dirigiram-se apressadamente para o Capitólio, afim de exterminarem o inimigo, como se o fizessem a uma serpente imunda e venenosa.

Todavia, uma surpresa, tão grande quanto a primeira, os esperava.

No palácio do prefeito dos pretorianos o movimento era desusado e estranho.

Antes de atingirem o átrio, os dois patrícios foram informados de que Lólio Úrbico havia falecido minutos antes, acreditando-se que se tratava de um suicídio.

A morte do marido constava do programa sinistro de Cláudia, agora dona de opulento patrimônio financeiro, porquanto, desse modo, não ficaria voz alguma que pudesse elucidar Helvídio Lúcius, quanto à infâmia que a antiga plebeia acreditava haver atirado ao nome de sua esposa. Além disso, alta madrugada, Sabina tomara de um dos pergaminhos em branco, assinados pelo prefeito e escreveu, com perfeita imitação caligráfica um bilhete lacônico, no qual se confessava enfarado da vida, e rogava a Fábio Cornélio, amigo de todos os tempos, perdoasse o dano moral que lhe causara.

 

Penetrando, aturdidos na casa do inimigo morto, Fábio e Helvídio foram abordados por Cláudia Sabina, que lhes apareceu lacrimosa, naquela manhã trágica.

Depois de se lastimar, comentando a tétrica resolução do esposo em desertar da vida, Sabina entregava ao censor o último bilhete de Úrbico, que dizia grafado pelo marido à última hora, deixando transparecer curiosidade a respeito daquele pedido de perdão, injustificável e estranho. Desejava, assim, conhecer os primeiros resultados do trabalho tenebroso de Hatéria, esperando ansiosamente, dos lábios de Helvídio ou de alguma alusão de Fábio, as informações indiretas que o seu espírito vingativo ansiosamente aguardava.

O censor e o genro, entretanto, receberam o suposto bilhete de Úrbico com secura e indiferença. E como era preciso dizer alguma coisa em face daquele imprevisto, Fábio Cornélio acrescentou:

— Guardarei este bilhete como prova do seu desequilíbrio mental nos últimos momentos, pois só assim se justifica este pedido. E agora, minha senhora — acentuou enigmaticamente para Cláudia, que o ouvia com atenção — há-de perdoar a nossa ausência, porquanto cada qual tem os seus infortúnios…

 

O velho patrício estendia-lhe as mãos em despedida, mas, sentindo a sua curiosidade fundamente aguçada por aquelas expressões, a antiga plebeia interrogou com interesse, como a provocar algum esclarecimento de Helvídio Lúcius, que se fechara em mutismo enigmático.

— Infortúnios? mas que desejais dizer com isso? Pretendeis abandonar-me nesta situação? Qual a razão de sairdes assim, desta casa, quando o cadáver de um amigo e chefe exige testemunhos de veneração e amizade? Porventura aconteceu algo de grave à Alba Lucínia?…

Notava-se que a última pergunta transpirava um sentido misterioso. Ela esperava que Helvídio lhe falasse da sua tragédia doméstica, dos seus profundos desgostos conjugais, da infidelidade da esposa, conforme previa e decorria dos seus planos. Seu coração bastardo aguardava que o homem amado, naquele instante, iria dispensar-lhe as atenções amorosas tão ardentemente aneladas naqueles últimos meses, em que os seus sentimentos mesquinhos haviam acariciado tão grandes esperanças. O tribuno, porém, mantinha-se impassível, como se tivesse os lábios petrificados.

 

Fábio Cornélio, todavia, sem trair a fibra orgulhosa, esclarecia Sabina nestes termos:

— Minha filha vai bem, graças aos deuses, mas também nós acabamos de ser feridos no mais íntimo do coração! Um emissário da Campânia  nos trouxe, esta manhã, a dolorosa notícia da morte repentina de minha neta solteira, que se encontrava junto da irmã, numa estação de repouso. Esta a razão que nos impede prestar ao prefeito as derradeiras homenagens, porquanto, vínhamos justamente comunicar-lhe a imediata partida para Cápua, afim de promover o transporte das cinzas!…

Dito isso, os dois homens despediram-se secamente, saindo a passo firme, no burburinho dos amigos e dos servos apressados, que emulavam no patentear a Lólio Úrbico a bajulação derradeira.

Ante a cena enigmática, Sabina deixava vagar o pensamento em conjeturas. Hatéria ter-se-ia esquecido de cumprir cegamente as suas ordens? Que ocorrera com a rival, cujas notícias a deixavam perplexa, quando tudo premeditara com tanta segurança? Os preconceitos sociais, contudo, as obrigações daquela hora extrema, que a sua própria maldade havia provocado, não lhe permitiam correr como louca no encalço da cúmplice, fosse onde fosse, para matar a curiosidade!

 

Enquanto o seu espírito se perdia em divagações ansiosas, Fábio Cornélio e o genro dirigiam-se ao Imperador, obtendo a necessária licença para a precisa viagem a Campânia, cedendo-se-lhes incontinente, uma galera confortável que os receberia em Óstia,  de modo a abreviar a viagem o mais possível.

Naquela mesma tarde, a embarcação saía do porto mencionado, conduzindo a família ao seu destino, salientando-se que Helvídio Lúcius não se esquecera de levar Hatéria com os outros serviçais de sua confiança.

Enquanto o patriciado romano rende homenagens ao prefeito dos pretorianos e a galera de Helvídio se afasta conduzindo em seu bojo quatro corações angustiados, sigamos a jovem cristã nas suas primeiras horas de amargura e sacrifício.

 

Saindo da casa paterna, Célia atravessou ruas e praças, receosa de encontrar alguém que a reconhecesse no seu doloroso caminho…

Conchegava o pequenino de encontro ao coração, como se ele fora seu próprio filho, tal o enternecimento que a sua figura lhe inspirava.

Depois de errar longamente, presa de acerbas meditações, sentiu que o Sol ia muito alto e precisava cuidar da nutrição do inocentinho. Atravessara os bairros aristocráticos, encontrava-se agora junto à ponte Fabrícius,  cheia de cansaço, extenuada. Além do Tibre, surgiam as modestas edificações dos judeus e dos libertos pobres; ali estava a famosa Ilha do Tibre,  onde outrora se ergueram os templos de Licaônio e o de … A seu lado passavam os filhos da plebe, inquietos e apressados. De vez em quando, surgiam soldados da marinha, da frota de Ravena,  aquartelados no Trastevere  e que lhe deitavam olhares libidinosos. Cansada dirigiu-se a uma casa de judeus, onde uma mulher do povo deu-lhe de comer, provendo-a de tudo quanto necessitava o pequenino. Mais confortada, levando uma pequena provisão de leite de jumenta, a filha de Helvídio continuou a dolorosa peregrinação pelas vias públicas, como se aguardasse uma inspiração feliz para o seu penoso destino.

 

À tarde, porém, voltou ao mesmo ponto, nas proximidades do qual fora socorrida pelos mais humildes.

Triste e só, descansou num dos ângulos da ponte Fabrícius,  ora contemplando os transeuntes mal vestidos, ora fixando as águas do Tibre, com o coração envolto em dolorosas cismas.

Aos poucos, o sol se escondia lentamente, dourando ao longe as derradeiras nuvens do horizonte.

Um vento frio, cortante, começava a soprar em todas as direções.

Contemplando os operários pobres que se recolhiam aos lares, a jovem cristã aconchegou mais fortemente ao peito a mísera criancinha. Sentindo-se desalentada, começou a orar e lembrou-se que Jesus também andara no mundo, ao desamparo, experimentando um suave consolo nessa reminiscência evangélica. Contudo, pungente saudade do lar feria-lhe o coração sensível e carinhoso. Mulheres do povo, depois das fainas penosas do dia, regressavam à casa com uma auréola de júbilo tranquilo a lhes transparecer no rosto, enquanto que ela, filha de patrícios, sentia-se acabrunhada ante as incertezas da sorte e exposta ao frio cortante do crepúsculo…

Entretanto sempre o pequenino, como se quisesse furtá-lo ao ar glacial da tarde, mau grado à sua fé e resignação, não pôde conter o pranto, refletindo amargamente no seu penoso destino!…

As grandes nuvens, batidas de sol, esmaeciam-se pouco a pouco, dando lugar às primeiras estrelas.




de Emmanuel — A Coluna Lactaria no Mercado de Legumes, ou Forum Olitorium, era o local onde se expunham, diariamente, os recém-nascidos enjeitados.

 

de Emmanuel — A Ponte Fabrícius  foi depois denominada Ponte di Quatri Capi, em vista de uma estátua de Jânus Quadrifons,  posta à entrada da praça. Foi construída de pedra, depois da conjuração de Catilina.