Cinquenta Anos Depois

Capítulo III

Estrada de amargura

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Desembarcando num porto da Campânia,  nas proximidades de Cápua,  Helvídio Lúcius adiantou-se a todos os familiares, afim de preparar os filhos para a consecução dos seus desejos.

Caio Fabrícius e sua mulher sofreram rude golpe com as revelações inesperadas a respeito da irmã, e, obedecendo às determinações do tribuno, criaram o ambiente necessário para que os círculos aristocráticos da cidade recebessem a notícia da casa, enquanto os sacerdotes do tempo, sem desprezarem as largas compensações financeiras que Helvídio oferecia, facilitavam a solução do assunto e, guardando-se assim, sempre, todas as recordações da jovem num punhado de cinzas.

Após receberem as homenagens da sociedade patrícia de Cápua, que não deixou de estranhar o misterioso acontecimento, Fábio Cornélio e todos da família retornaram prestes a Roma, onde promoveram o funeral com a maior simplicidade, embora ao gosto da época e consoante as exigências da tradição familiar.

Todavia, enquanto as supostas cinzas de Célia baixavam ao sarcófago, nova dor assaltava o círculo doméstico das nossas personagens.

 

Profundamente ferida nas fibras mais sensíveis do coração materno, Júlia Spínter não conseguiu suportar tão fundo desgosto, acrescido aos muitos que lhe minavam a existência, abandonara a Terra inopinadamente, sem que os íntimos pudessem ao menos prever-lhe a aproximação da morte, que se verificou dentro de uma noite, em consequência de um colapso cardíaco.

Novo luto envolveu a casa de Helvídio, experimentando Alba Lucínia os mais atrozes padecimentos íntimos. A esse tempo, Fábio Cornélio, dado o desaparecimento de Lólio Úrbico, havia recebido novos encargos do Imperador, encargos que lhe deferiram grandes poderes e graves responsabilidades na solução de todos os problemas financeiros.

A morte da esposa encheu-lhe o coração de estranho pesar. Buscou, contudo, reagir às forças que lhe deprimiam o ânimo, prosseguindo na sua tarefa de domínio, com o mesmo orgulho que lhe temperava o caráter.

Sentindo-se muito a sós, Helvídio Lúcius e a esposa planejaram voltar à tranquilidade provinciana da Palestina,  mas o falecimento imprevisto da nobre matrona impedia-lhes, de novo a execução dos projetos há muito acarinhados, atento o insulamento em que ficaria o velho censor, cujo coração orgulhoso e frio lhes dera sempre as mais inequívocas provas de amor e dedicação.

 

Elucidando a situação de todas as personagens, resta-nos lembrar Cláudia Sabina, após o desfecho singular dos acontecimentos dolorosos que ela mesma sinistramente engendrara. Morto o marido e sabendo frustrados todos os seus planos, procurou em vão ouvir Hatéria, que, elevada a uma posição de redobrada confiança no lar de Helvídio Lúcius, dispusera-se a não abandonar jamais a casa, receosa das suas represálias. De posse da grande soma que lhe dera o tribuno em troca do seu silêncio, a velha serviçal chamara o genro e a filha à residência dos patrões, onde lhes entregou parte da pequena fortuna, com a qual adquiriu, em seu nome, um belo sítio em Benevento,  lá arrumando os filhos, até que ela se dispusesse a partir para a vida rural.

Cláudia Sabina, apesar dos esforços despendidos, nunca mais pôde ouvir-lhe a palavra, porquanto, se Hatéria jamais se ausentava de casa, também Fábio Cornélio detinha poderes cada vez mais fortes, na cidade imperial, obrigando-a, indiretamente, a manter-se em silêncio e a distância. Foi assim que a antiga plebeia se retirou de Roma para Tibur,  acompanhando as futilidades da Corte de Adriano,  cujos últimos tempos de reinado se caracterizaram por uma indiferença cruel.

Rodeada de servos, mas em pleno ostracismo social, a viúva do prefeito dos pretorianos adquirira uma chácara tranquila, onde devia passar largos anos, requintando o seu ódio em detestáveis meditações.

 

Depois destas notícias breves, retomemos o caminho de Célia para acompanhar-lhe a dolorosa peregrinação.

Deixando a Ponte Fabrícius,  ela caminhou ao léu, procurando alcançar a Ilha do Tibre,  onde se acotovelava a multidão dos pobres.

Aos derradeiros clarões da tarde, buscou atravessar a Ponte Céstius,  encontrando num trecho do caminho uma mulher do povo, de semblante alegre e humilde. Célia assentara-se, por instantes, ajeitando o pequenino. Sentiu, porém, que o olhar da desconhecida lhe penetrava brandamente o coração.

Nesse comenos, experimentando a secreta confiança que lhe inspirava aquela mulher simples, traçou com a destra, na poeira do solo, um pequeno sinal da cruz, mediante o qual todos os cristãos da cidade se reconheciam.

 

Ambas trocaram, então, um olhar expressivo de simpatia, enquanto a desconhecida se aproximava, exclamando bondosamente:

— És cristã?

— Sim — sussurrou Célia em surdina.

— Estás desamparada? — Perguntou a desconhecida, discretamente, revelando nas palavras breves a máxima cautela, de modo a não serem surpreendidas como adeptas do Cristianismo.

— Sim, minha senhora — revidou Célia algo confortada com aquele interesse espontâneo — estou só no mundo com este filhinho.

— Então, venha comigo, é possível que te seja útil em alguma coisa.

 

A neta de Cneio Lúcius seguiu-a, sôfrega de proteção, no pélago de incertezas em que se achava. Atravessaram a Ponte Céstius, calmamente, como velhas amigas que se houvessem encontrado, dirigindo-se para um quarteirão de casas pobres.

Distanciadas da multidão, a mulher do povo, sempre carinhosa, começou a falar:

— Minha boa menina, chamo-me Orfília e sou tua irmã na fé! Logo que te avistei, compreendi que estavas só e desamparada no mundo, precisando do auxílio de teus irmãos! Estás moça e Jesus é poderoso… Surpreendi lágrimas nos teus olhos, mas não deves chorar quando tantos irmãos nossos têm padecido atrozes sacrifícios nos tempos amargos que atravessamos…

Célia ouvia-a consolada, mas, intimamente, não sabia como proceder em tão difíceis circunstâncias, nas quais uma companheira de crença se lhe revelava com toda a sinceridade.

 

Enquanto Orfília calava um instante, a filha de Helvídio agradecia-lhe em breves palavras:

— Sim, minha senhora, estou comovida e não sei como agradecer-lhe.

— Sou lavadeira — continuou a plebeia, com a sua simplicidade de coração — mas tenho a ventura de possuir um marido piedoso e cristão, que não se cansa de me proporcionar no trabalho e no conchego do lar os mais sagrados testemunhos de nossa fé! Vais conhece-lo!… Chama-se Horácio e terá prazer quando souber que te podemos ser útil de algum modo… Tenho, também, um filho de nome Júnio, que constitui a nossa esperança para o futuro, quando em nossa pobreza material estivermos imprestáveis para o trabalho!…

 

E, aproximando-se cada vez mais da casinha pobre, acrescentava:

— E tu, minha irmã, que te aconteceu para trazeres um semblante tão triste e amargurado assim?… Tão jovem e com um filhinho nos braços, tão formosa e tão desventurada?…

— Fiquei viúva e abandonada — exclamou Célia de olhos molhados — mas espero em Jesus alcançar o necessário a mim e a meu filho…

Ainda não havia terminado as explicações timidamente formuladas, quando transpuseram o umbral de uma sala muito pobre e quase desguarnecida.

Dois homens conversavam à claridade frouxa de uma tocha e logo se ergueram para recebe-las.

Devidamente apresentada ao pai e ao filho, Célia notou que Horácio tinha, de fato, um aspecto conselheiral e bondoso, observando, porém, no filho, algo que a desagradou de pronto, um olhar de moço leviano e frívolo, cheio de fantasia e de loquacidade.

— Sabes, mãe — exclamou o rapaz como se guardasse todas as qualidades de um porta-novas — o grande acontecimento que abalou toda a cidade?

 

Enquanto Orfília fazia um gesto de estranheza, Júnio continuava:

— A primeira notícia que abalou hoje as proximidades do Fórum, pela manhã, foi a da morte do prefeito Lólio Úrbico, que se suicidou escandalosamente, obrigando o governo a numerosas homenagens!…

— É estranho — exclamou a interpelada — muitas vezes vi em público esse homem fidalgo, de porte orgulhoso e varonil. Ainda ontem vi-o nos carros de triunfo, nas festas do Imperador. Seu rosto transbordava alegria e no entanto…

— Ora — interpôs o chefe da casa — atravessamos uma fase dolorosa de terríveis surpresas para todas as classes sociais. Quem nos poderá afiançar, com certeza, que o prefeito dos pretorianos se tenha suicidado realmente? No mês findo, a cidade assistiu a dois acontecimentos como esse e, no entanto, soube-se depois que os dois patrícios suicidas foram assassinados cruelmente por sicários da sua própria grei.

 

Célia, encostada a um canto, como se fora uma jovem mendiga, ouvia aquelas notícias, amargamente impressionada. A estranha morte de Lólio Úrbico aterrava-a. Embora inquieta, fazia o possível para não trair as mais vivas emoções.

— Mas o dia não se caracterizou somente por isso — continuava Júnio, loquaz — disseram-me no Fórum que alguns cristãos foram presos quando reunidos próximo do Esquilino,  bem como que o censor Fábio Cornélio e família partiram para Cápua, afim de trazerem para aqui as cinzas de uma filha do tribuno Helvídio Lúcius, lá falecida recentemente…

 

A jovem cristã recolheu a notícia com espanto, compreendendo a gravidade da sua condição perante os parentes orgulhosos e inexoráveis. Seu espírito chocava-se tristemente, em face de notícias tão amargurosas… À mente lhe veio a ideia de regressar a casa e repousar o corpo alquebrado… Nunca se afastara do lar, a não ser quando descansava junto do avô enfermo, no palácio do Aventino.  Lembrou os servos amigos e dedicados, invocou todos os recantos do ninho paterno com os seus aspectos peculiares. Uma saudade imensa de sua mãe invadia-lhe o íntimo e, contudo, o coração lhe afirmava por secreta intuição, que seus olhos nunca mais voltariam a refletir a placidez do lar paterno, a não ser quando abandonasse o ergástulo do mundo. Consoante as informações de Júnio, compreendeu que as portas da casa paterna lhe estavam fechadas para sempre… Simbolicamente morta, não poderia voltar aos seus senão como sombra…

 

Observando-a de olhos úmidos e reconhecendo-lhe o enorme cansaço, Orfília procurou quebrar a frivolidade dos assuntos, dirigindo-lhe a palavra bondosamente:

— E tu, minha querida menina, por pouco não continuávamos a nossa história. Afirmas-te viúva? Mas, que lástima… Assim tão nova?!

Tomando-a pela mão, para conduzi-la ao interior sob o olhar surpreso dos dois homens que reparavam a nobreza de traços da desconhecida, continuava:

— Entremos, filha!… Está muito frio e pareces fatigada. Além disso, precisamos cuidar da alimentação do pequeno. Vem!

Enquanto Célia exorava a Jesus que a inspirasse em tão difíceis circunstâncias, compreendendo, após as notícias de Júnio, que não poderia expor àquela amiga ocasional a realidade da sua situação, Orfília prosseguia com interesse:

— Mas, como te chamas, minha irmã? Enviuvaste há muito tempo? E não tens outra amizade por ti?…

 

A filha de Helvídio, medindo a delicadeza do momento, deu um nome suposto, exclamando:

— Enviuvei há quatro meses apenas e estou inteiramente desamparada, com este filhinho de poucos dias. Tenho experimentado todos os sofrimentos de uma infortunada filha da plebe, mas tenho guardado a fé em Jesus, como único refúgio. Ainda agora, a sua caridade fraterna, recolhendo-me a essa casa, foi para mim o testemunho vivo da proteção do Mestre Divino, a cuja misericórdia tenho endereçado todas as minhas súplicas!…

Não somente Orfília? mas o marido e o filho a ouviram penalizados.

— E quais os teus projetos, minha filha? Perguntou a dona da casa, compungida.

 

A tal pergunta, Célia lembrou-se de Cneio Lúcius, que lhe havia prometido amparo em todos os momentos difíceis, se o Senhor o permitisse, e, implorando-lhe um alvitre valioso, com as vibrações silenciosas do seu pensamento, retrucou com certa firmeza:

— Tenho necessidade de sair de Roma na primeira oportunidade. Infelizmente, faltam-me os recursos necessários, mas espero que Jesus me ajudará… Tenho alguns parentes nos arredores de Nápoles e nos confins da Campânia. Quero recorrer a todos eles, porquanto não poderia aqui viver sem elementos para me sustentar e ao meu pobre filhinho.

— Isso é justo — respondeu Orfília brandamente — eu e Horácio poderemos ajudar-te nas primeiras providências.

— Aliás — replicou o chefe da família, com um gesto paternal — Júnio terá de viajar ainda este mês, como empregado do Fórum, levando documentos de pouca importância até Gaeta!  Munida dos pequenos recursos que poderemos arranjar, estarás habilitada a encetar nova diligência para te reunires aos teus parentes.

 

Célia ouvia-lhe à palavra, confortada e agradecida, enquanto Orfília tomava a criança para nutri-la convenientemente, obrigando a jovem a tomar, por sua vez, um prato de caldo.

— Essa ideia é bem lembrada — disse Orfília dirigindo-se ao marido — os nobres poderão dirigir-se a Nápoles no bojo de luxuosas galeras, mas nós, os humildes, temos de nos valer dos mais pobres recursos.

— Tudo, porém, está na pauta da misericórdia divina — glosou Horácio convicto.

E dirigindo-se ao filho, enquanto a mulher silenciava, perguntou:

— Quando partes?

— Acredito que dentro de duas semanas.

— Pois bem, Orfília, até lá, buscaremos prover nossa irmã do indispensável à sua viagem.

 

Célia esboçou um sorriso de agradecimento, sentindo-se bem, ao lado daqueles corações simples e generosos.

Daí a pouco repousava com o pequenito, numa cama humilde, mas muito limpa, que a dona da casa lhe preparou, junto do seu próprio quarto.

A filha de Helvídio Lúcius ajeitando carinhosamente a criancinha entre as coberturas pobres, começou a orar, meditando nas dolorosas peripécias daquele dia inolvidável. Quando se sofre, a vida é qual turbilhão de pesadelos intensos. Ao seu espírito combalido, pareceu-lhe estar apartada dos seus há muitos anos, tal a angústia martirizante das horas intermináveis em que vagara pelas vias públicas, sem destino e sem nenhuma esperança… Sem perder de vista a criancinha, sentiu que aos poucos o organismo exausto cedia ao sono reparador. Adormeceu, então, tranquila, como se nas asas da noite o espírito fugisse temporariamente do ergástulo, livre da realidade dolorosa.

 

Durante duas semanas, valendo-se da proteção de Orfília e seu esposo, a jovem cristã preparou o vestuário seu e do pequeno. Com os elementos que os amigos lhe proporcionaram, talhou fatos pobres e singelos, com os quais empreenderia o seu roteiro de humildade.

Aonde iria? Não poderia sabe-lo ao certo.

Não conhecia Nápoles senão através das descrições do velho avô, quando fazia viagens imaginárias no intuito de ilustrar a neta estremecida.

Possivelmente, não chegaria até Nápoles, nem mesmo à Campânia, onde guardava a recordação da irmã e de Caio Fabrícius, domiciliados em Cápua. Inútil presumir qualquer auxílio da irmã, porquanto, certamente, Helvídia e o esposo, cientes do que ocorrera em Roma, não lhe poderiam perdoar, em hipótese alguma.

Entretanto, predispunha-se a partir, cheia de confiança em Deus. No instante oportuno Jesus haveria de abençoar-lhe os passos, guiando-os a um destino certo. No complexo de suas meditações recordava-se, incessantemente, da palavra do avô no dia do sacrifício de Ciro e Nestório, esperando que os mensageiros do Senhor ou as almas dos entes queridos regressassem do túmulo para lhe orientar o coração no dédalo das ansiedades angustiosas.

 

Receosa de complicações, a jovem nunca saiu do humilde quarteirão trasteverino, onde fora acolhida, até que um dia, ao dealbar da aurora, despediu-se da amiga com lágrimas nos olhos.

O carro de Júnio fora preparado de véspera, de modo que a partida se efetuasse ao amanhecer. Orfília e Horácio estavam igualmente comovidos, mas, obedecendo ao imperativo das provações terrenas, Célia aboletava-se no interior da viatura, construída à guisa de diligência dos tempos medievais, onde acomodou o saco de roupas e a larga provisão de alimentos para o inocentinho, que Orfília não se esquecera de preparar carinhosamente.

Abraços carinhosos, votos de ventura e, daí a instantes, sob o frio intenso da manhã, Júnio estalava o pequeno chicote no dorso dos animais, através das vias públicas.

Célia rogava a Jesus que lhe fortalecesse o espírito angustiado, dando-lhe coragem para enfrentar as sendas procelosas da vida… Ao despedir-se de Roma, olhos nevoados de pranto, pareceu-lhe mais intenso o martírio íntimo, sentindo o coração azorragado pelas saudades impiedosas. Contemplando, porém, o pequenino meio adormecido em seus braços, experimentava uma força incoercível que a sustentaria em todos os sacrifícios.

 

Os primeiros raios do sol começavam a invadir o céu escampo, quando o carro transpôs a Porta Cœlimontana,  entrando os cavalos, logo após, a largo trote, na 5ia Ápia…  Defrontando as campinas romanas no trecho em que se erguia o admirável aqueduto de Cláudio,  a filha de Helvídio embevecia-se na contemplação da Natureza, com o espírito mergulhado em preces carinhosas e profundas meditações.

Passava pouco de dez horas quando defrontaram Alba Longa,  com o seu casario simples e confortável.

Júnio, com reflexos enigmáticos no olhar, fez que a companheira de viagem e o pequenito tomassem ligeira refeição, antes de iniciarem a ascensão dos montes do Lácio. 

Prosseguindo pelos caminhos orlados de árvores e flores silvestres, atingiram Arícia,  cercada de oliveiras viçosas e de hortos imensos. Mais tarde alcançavam Genciano,  vila graciosa e afortunada, ao pé do lago Nemi,  em cujas bordas floriam intérminos roseirais.

 

Célia trazia o espírito engolfado em meditações cariciosas, em face do encanto maravilhoso da paisagem, cuja beleza ultrapassava todos os quadros da Palestina,  guardados na sua retentiva para sempre. Por toda parte, oliveiras amigas, laranjeiras em flor, hortos imensos e bem cuidados, roseiras perfumadas e detalhes preciosos que o homem do campo organizara.

Fosse pela influência cariciosa do ar embalsamado de aromas, ou pelo cansaço da longa excursão, a criança adormecera no colo da jovem mãezinha que o Céu lhe dera, enquanto ela lhe acariciava o rosto minúsculo com os mais temos desvelos.

Enquanto a sombra do arvoredo atenuava os raios quentes do sol vespertino, Júnio, que nunca estava silencioso, chamando a atenção da companheira de viagem para esse ou aquele pormenor do caminho, começou a falar-lhe de assunto estranho. A jovem corou, pediu-lhe recordasse a tradição cristã dos pais, que a haviam tratado generosamente, suplicando-lhe que a deixasse em paz na sua dolorosa viuvez, ao léu da sorte. Notou, porém, que o rapaz estava saturado dos vícios da época, figurando-se-lhe que o filho dos seus protetores era insensível às suas rogativas mais ardentes. Repelido nas suas propostas indecorosas o filho de Horácio exclamava para a sua vítima, deixando transparecer no semblante uma repugnante expressão de abutre ferido:

— Estamos próximos de Velitræ,  onde pernoitaremos, e como terás de prosseguir comigo até Gaeta,  espero convencer-te amanhã. Do contrário…

 

Célia engoliu o insulto, lembrando-se dos seus deveres de orar e vigiar e conservando o pensamento em preces fervorosas, afim de que o Divino Mestre, por seus mensageiros, lhe inspirasse o melhor caminho.

Daí a instantes, entravam na bela cidade, edificada em tempos remotos pelos 5olscos  e berço do grande . Velitræ, mais tarde Velétri, assenta num grande outeiro, oferecendo as mais formosas perspectivas topográficas ao viajante. Seus crepúsculos são tocados de suave e maravilhosa beleza… Contemplando o Oriente, veem-se os montes da Sabina unidos aos barrancos profundos da cidade e, à tarde, quando o Sol desaparece, a neve das montanhas mistura-se à neblina da noite, proporcionando prismas visuais, do mais deslumbrante efeito.

Júnio colheu as rédeas à frente de uma hospedaria do mais humilde aspecto. Recebido com demonstrações de alegria por seus antigos conhecidos, providenciava imediatamente a hospedagem de Célia com a criança, recolhendo os animais à estrebaria.

 

A jovem cristã, após a refeição da tarde, buscou o silêncio do quarto para refletir e orar. Júnio marcara o prosseguimento da viagem, ao alvorecer. Todavia, ela estava tomada de angústia e de incerteza. O filho de seus benfeitores não parecia dotado dos elevados sentimentos paternos… Aquele olhar arisco parecia indicar a peçonha de um ofídio. Seus gestos eram atrevidos, as ideias indiferentes às noções do dever e da responsabilidade.

Noite alta, uma serva da casa veio saber se a hóspede reclamava alguma coisa, encontrando-a inquieta e aflita, pensando no que pudesse acontecer ao seu amanhã doloroso e cheio de ameaças.

Depois de amargas reflexões, deliberou, inspirada pelos amigos do Invisível, retirar-se da estalagem nas primeiras horas da madrugada, por fugir a qualquer perversidade do inimigo de sua paz íntima.

 

Assim, antes do alvorecer, afastou-se a medo do casarão desconhecido. Apertando o pequenino de encontro ao peito, experimentava o coração a lhe bater aceleradamente. Jamais enfrentara situações tão difíceis e, todavia, confiava que Jesus a socorreria com os alvitres necessários.

Deixando Velétri à esquerda, tomou corajosamente um largo caminho sobraçando o pequenino e o seu saco de bagagens pobres, caminhando até o completo alvorecer e encontrando-se na antiga vila de Cora,  famosa pelo seu templo  de Cástor e Pólux.  Ali, uma mulher do povo recolheu-a por minutos, munindo-a de novas provisões, considerando a sua penosa jornada, com o inocentinho ao colo.

Continuando a caminhar, possuída de estranha força, como se alguém lhe guiasse os passos, apesar do rumo incerto, achou-se em breve à margem do rio Astura,  atravessando aldeias pequeninas, onde havia sempre um bom coração a lhe prodigalizar uma gentileza fraterna.

 

Antes do meio dia, defrontou humildes carreteiros, assalariados pelos ricos senhores da região nos trabalhos de transporte, salientando-se que um deles, de aspecto patriarcal, ofereceu-lhe um lugar a seu lado, mitigando-lhe a dor dos pés.

Em breve, assim instalada num veículo bastante ligeiro para a época, a jovem cristã divisava, à frente, as famosas Lagoas Pontinas,  vasto terreno sem inclinação, para onde convergem as pesadas massas d’água de alguns rios.

Célia atravessava numerosos grupos de casas, aldeias nascentes ou antigas cidades em ruínas, detendo os olhos tristes, com mais insistência, nas humildes edificações de Forápio (Forum Appii),  onde as tradições cristãs de Roma asseveravam que se dera o encontro de Paulo de Tarso com os seus irmãos da cidade de César. (At 28:15)

Dentro de suas meditações, a viajante defrontava Anxur, mais tarde Terracina,  de onde saía por escarpada encosta da montanha, passando pelas ruínas bem conservadas de castelos antigos, dos mais remotos dominadores. Da culminância, seus olhos abrangiam toda a região das Lagoas célebres, bem como vasta extensão do mar Tirreno. 

 

Ai, porém, sentiu o coração gelado e dolorido. Era dali, daquela estrada hostil e montanhosa, que o velho benfeitor, o cocheiro amigo, deveria retroceder em obediência às ordens recebidas.

Entardecia. O velho lidador da gleba despediu-se da companheira, com os olhos umedecidos. Por todo o caminho, Célia se conservara triste e silenciosa, mas, percebendo que o seu benfeitor estava receoso e sensibilizado por ter de abandoná-la em sítio tão ingrato, e a tais horas, disse-lhe corajosamente:

— Adeus, meu bom amigo! Que o Céu lhe recompense a bondade. Seu oferecimento generoso evitou-me grande cansaço pelo caminho!…

— Ides a Fondi?  — Perguntou o bom do velho com carinhoso interesse.

— Não precisarei chegar até lá! — respondeu a jovem com inaudita coragem — a propriedade de meus parentes está muito próxima.

— Ainda bem — replicou ele mais confortado — temia que precisásseis caminhar ainda muito pois estas regiões são infestadas de feras e bandidos.

— Fique descansado — disse Célia ocultando a própria angústia — estas estradas não me são desconhecidas. Além do mais, estou certa de que o Céu me protegerá, amparando o meu filhinho…

 

O generoso carreiro ao ouvir a invocação do Céu, descobriu-se respeitoso na sua simplicidade de alma devotada a Deus e, depois de estender a destra à jovem desconhecida, preparou-se para descer a montanha, onde fora tão somente para atender a solicitação da sua graciosa passageira, descendo pelas mesmas sendas escarpadas, afim de cumprir em Anxur a incumbência que levava.

Célia viu-o desaparecer nas curvas íngremes, acompanhando-lhe o veículo com o olhar triste e ansioso. Desejava também retroceder, mas um receio imenso dos homens impiedosos, que não saberiam respeitar-lhe a castidade, a impelia a buscar o desconhecido, entre as sombras espessas das florestas do Lácio. 

Com o pensamento em prece, caminhou quase mecanicamente, observando, angustiada que se avizinhavam as sombras do crepúsculo…

 

A estrada corria por um vale apertado, vendo-se-lhe de um lado o oceano, e do outro a cadeia das montanhas. Os derradeiros raios do Sol douravam a cúpula imensa, quando seus olhos divisaram, à esquerda, uma gruta providencial, formada pelos elementos da Natureza. Era, porém, uma edificação natural tão imponente, que bastou um exame mais acurado para que se recordasse das lições do avô, em outros tempos, identificando o local com as suas reminiscências dos estudos com o avozinho. Aquela gruta  era o local famoso onde Sejano  havia salvado a vida de Tibério,  quando o antigo Imperador, ainda príncipe, se dirigia com alguns amigos para as cidades da Campânia. Sentindo-se rodeada pelos clarões mortiços da tarde, dirigiu-se para o interior, onde uma cavidade natural parecia bem disposta para o descanso de uma noite. Agradecendo a Jesus o encontro de um pouso como aquele, ajeitou as roupas pobres que trazia para acomodar o pequenino, colhendo, em seguida, grandes braçadas de musgo selvagem, que caíam das árvores idosas e forrando o leito de pedras com o maior carinho. Quando procurava interceptar a passagem para a cavidade em que repousaria, com pedras e ramos verdes, encarando a possibilidade do aparecimento de algum animal bravio, eis que lhe chega aos ouvidos o tropel de cavalos trotando, aceleradamente, ao longo do caminho…

 

Guardando o pequerrucho nos braços, correu para a frente, desejosa de se comunicar com alguém, para afastar do espírito aquela triste impressão de soledade, esperançosa de que a Providência Divina, por intermédio de um coração bondoso, lhe evitasse a amargura daquela noite que se prefigurava angustiosa e dolorida…

Seria um carro, ou seriam cavaleiros generosos que lhe estenderiam mãos fraternas? Também poderiam ser ladrões a cavalo, perdidos na floresta em busca de aventuras… Considerando esta última hipótese, tentou retroceder, mas três vultos destacaram-se ao seu lado, na sombra da noite, impedindo-lhe a retirada, porquanto sofreados com força, os garbosos cavalos interromperam o trote acelerado e ruidoso.

Criando novo alento, ao influxo das energias poderosas que fluíam do Invisível para o seu espírito, a filha de Helvídio perguntou:

— Ides a Fondi, cavalheiros?

Ao ouvir-lhe a voz, alguém, que parecia o chefe dos dois outros, exclamou com voz aterrada:

— Urbano! Lucrécio! acendam as lanternas.

Célia reconheceu aquela voz dentro da noite, com uma nota de terrível espanto.

Tratava-se de Caio Fabrícius, que regressava de Roma, deixando a esposa em companhia dos pais, compelido por suas obrigações imperiosas em Cápua, depois do suposto funeral de Célia, conforme as combinações da família.

Reconhecendo-o pela voz, a jovem cristã experimentou os mais angustiosos receios, entremeados de esperanças. Quem sabe a sua situação poderia modificar-se, em face daquele encontro imprevisto?

 

Antes que as suas cogitações tomassem longo curso, duas lanternas brilharam no ambiente.

O esposo de Helvídia contemplou-a aterrado. A visão de Célia, sozinha e abandonada, sustendo nos braços a criança que ele supunha seu filho, comoveu-lhe o coração; todavia, compreendendo a gravidade dos acontecimentos de Roma, de conformidade com as informações dolorosas do sogro, tratou de disfarçar a emoção, imprimindo no rosto a mais fria indiferença.

— Caio!… — Implorou a jovem com uma inflexão de voz intraduzível, enquanto a luz lhe banhava o semblante abatido.

— Conheceis-me? — Perguntou o orgulhoso patrício.

— Porventura me desconheces, tu?

— Quem sois?

— Pois será preciso abrir-te os olhos?

— Não vos reconheço.

— Estarei, acaso, com a fisionomia transformada a tal ponto? Não te recordas da irmã de tua mulher? — Perguntou súplice.

— Minha esposa — concluiu o viajante, enquanto os dois servos o contemplavam altamente surpreendidos — possuía apenas uma irmã, que morreu há dezoito dias. Estais evidentemente equivocada, porquanto, ainda agora, venho de Roma, onde assisti ao seu funeral.

 

Aquelas palavras foram pronunciadas com frieza indefinível.

A filha de Helvídio Lúcius fixou nele os olhos mareados de lágrimas e o semblante transfigurado de infinita amargura. Compreendeu que era inútil afagar qualquer esperança de voltar ao seio da família. Para todos os afetos estava morta, e para sempre. Figurou-se-lhe acordar, mais intensamente, para a sua realidade dolorosa, mas, sentindo que alguém lhe amparava o espírito em tão angustioso transe, exclamou:

— Compreendo!…

O esposo de Helvídia, contudo, aparentando máxima frieza, de modo a não trair seus sentimentos diante dos servos, replicou:

— Senhora, se vos valeis desse expediente para obter o dinheiro preciso às vossas necessidades, eu vo-lo dou de bom grado.

Mas, quando o orgulhoso romano revolvia bolsa para cumprir esse desígnio, ela lhe respondeu com nobreza e dignidade:

— Caio, segue em paz o teu caminho!… Guarda o teu dinheiro, pois uma bênção de Jesus vale mais que um milhão de sestércios!…

Extremamente confundido, o marido de Helvídia recolheu a bolsa, dirigindo-se contrariado aos servidores, nestes termos:

— Apaguem as lanternas e prossigamos a viagem!

 

E observando a consternação de ambos os escravos, eminentemente impressionados com aquela cena, acrescentou com altanaria:

— Que esperam mais para cumprir minhas ordens? Não nos impressionemos com os incidentes do caminho. Nunca passei pelas estradas de Anxur sem encontrar uma louca como esta!

Como se fossem repentinamente despertados por ordens mais severas, Urbano e Lucrécio obedeceram às exigências do senhor, apagando as luzes que bruxuleavam na escuridão da noite e, daí a instantes, os três cavaleiros recomeçavam a marcha, como se coisa alguma houvesse acontecido.

Caio Fabrícius era generoso, mas a falta de Célia, aos olhos da família, era assaz grave para que pudesse ser perdoada. A ninguém revelaria aquele encontro, ainda porque, entre ele e sua mulher, havia o compromisso de absoluto sigilo a tal respeito. Resolveu, assim, sufocar todos os estos de compaixão pela infeliz cunhada.

Quanto a esta, com os olhos mareados de lágrimas, ficou como petrificada, a ouvir o compassado trote dos animais que se afastavam, até que um silêncio profundo e misterioso se fez sentir por toda parte, dentro da floresta sombria.

Vendo que Caio se afastava, teve ímpetos, na sua fragilidade feminina, de suplicar o seu auxílio, rogando-lhe a caridade de conduzi-la até ao povoado de Fondi, onde, por certo, encontraria alguém que a abrigasse por uma noite. Todavia, permaneceu muda, como se a sensibilidade do cunhado lhe houvesse enregelado a própria alma.

 

Chorou longamente, misturando em orações as lágrimas amargas, de olhos fitos no céu, onde apenas lucilavam raras estrelas…

A passos vacilantes, voltou à gruta selvagem que a Natureza havia edificado.

Lá dentro, acomodou a criança da melhor maneira, e entrou a meditar amargamente.

Os ventos do Lácio começaram a sussurrar uma sinfonia triste, estranha, e, de longe em longe; até aos seus ouvidos chegavam os ecos dos lobos selvagens, ululando na floresta…

Célia sentiu-se abandonada mais que nunca. Profundo desânimo se lhe apoderou do espírito, sentindo que, apesar da fé, a fortaleza moral desfalecia em face de tão penosos padecimentos… Lembrou uma a uma, todas as suas alegrias domésticas, recordando cada familiar, com as particularidades encantadoras do seu extremoso afeto. Nunca o sofrimento moral lhe atingira tão fundo o coração sensível!… Enquanto as lágrimas silenciosas lhe rolavam dos olhos, lembrou-se, mais que nunca, das exortações de Nestório nas vésperas do sacrifício, rogando a Jesus lhe concedesse forças para as renúncias purificadoras…

Mergulhada em profunda escuridão, acarinhava o rosto do pequenino, receosa de um ataque de répteis, enxugando as lágrimas, para melhor pensar no futuro, sem perder a sua confiança na misericórdia de Jesus.

Foi então que, com surpresa e pasmo dos seus olhos aflitos, emergiu da sombra um ponto luminoso, avultando com rapidez prodigiosa, sem que ela atinasse, de pronto, com o que se passava… Aturdida e surpresa, acabou por divisar a seu lado a figura do avô, que lhe enviava ao coração atormentado o mais terno dos sorrisos…

 

Tamanha era a sua amargura, tanto o fel do seu coração angustiado, que não chegou a manifestar a menor estranheza. Dentro das claridades da sua fé, recordou, imediatamente, a lição evangélica das aparições do Divino Mestre  à Maria Madalena e aos Discípulos, estendendo para o avô os braços ansiosos. Para o seu espírito dolorido, a visão de Cneio Lúcius era uma benção do Senhor aos seus inenarráveis martírios íntimos. Quis falar, mas, ante a figura radiosa do velhinho bom, a voz morria-lhe na garganta sem conseguir articular uma palavra. Todavia tinha os olhos aljofrados de pranto e havia em seu rosto uma tal expressão de sublimidade, que dir-se-ia mergulhada em profundo êxtase.

— Célia — sussurrou o Espírito carinhoso e benfazejo — Deus te abençoe nas tormentas aspérrimas da vida material!… Feliz de ti, que elegeste o sacrifício, como se houvesses recebido uma determinação grata do Mestre!… Não desfaleças nas horas mais amargas, pois, entre as flores do Céu há quem te acompanhe os sofrimentos, fortalecendo as fibras do teu espírito desterrado! Jamais te suponhas abandonada, porquanto, do Além, nós te estendemos mãos fraternas. Todas as dores, filhinha, passam como a vertigem dos relâmpagos ou como os véus da neblina desfeitos ao Sol… Só a alegria é perene só a alegria alcança a eternidade. Realizando-nos interiormente para Deus, nós compreendemos que todos os sofrimentos são vésperas divinas do júbilo espiritual nos Planos da verdadeira vida! Conhecemos a intensidade dos teus padecimentos, mas, coerente com a tua fé, conserva o pensamento sempre puro! Crendo sacrificar-te por tua mãe, estás cumprindo uma das mais formosas missões de caridade e de amor, aos olhos do Cordeiro… Jamais agasalhes a ideia de que o sentimento materno se houvesse desviado algum dia do código da lealdade e da virtude doméstica, mas recebe todos os sofrimentos como elementos sagrados da tua própria redenção espiritual! Tua mãe nunca faltou à fidelidade conjugal e, todavia, o teu espírito de abnegação e renúncia receberá de Jesus a mais farta messe de bênçãos.

 

Ouvindo aquelas palavras que lhe caíam como bálsamo divino no coração desalentado, a filha de Helvídio deixava que as lágrimas de conforto íntimo lhe rolassem das faces, como se o pranto, somente, lhe pudesse lavar todas as amarguras. Ela identificava o avô carinhoso e amigo, ali, a seu lado, como nos dias mais venturosos da sua existência. Nimbado de uma luz suave e doce, Cneio Lúcius sorria-lhe com a benevolência de coração que sempre lhe demonstrara. Escutando-lhe a revelação da integridade moral da genitora, Célia reconsiderou as ocorrências dolorosas do lar. Bastou que esboçasse tais pensamentos, sem exprimi-los verbalmente, para que a respeitável entidade espiritual a esclarecesse nestes termos:

— Filha, não cogites senão de bem cumprir os desígnios do Senhor a teu respeito… Não permitas que os teus pensamentos voltem ao passado para se eivarem de aflições e amaritudes da vida terrestre! Não queiras estabelecer a culpa de alguém ou apontar o desvio de quem quer que seja, porque há um tribunal de justiça incorruptível, que legisla acima das nossas frontes!… Para ele não há processos obscuros, nem informações inexatas! Se essa justiça sublime determinou a tua marcha pelos carreiros da calúnia e do sacrifício, é que essa estrada conviria mais ao teu aperfeiçoamento e às fórmulas de trabalho que te compete. Nunca mais voltarás ao conchego do lar paterno, ao qual te sentirás ligada pelos elos inquebrantáveis da saudade e do amor, através de todos os caminhos, mas essa separação de tua alma dos nossos afetos mais queridos será como um ponto de luz imorredoura, assinalando a transformação dos nossos destinos! Teu sacrifício, filhinha, há de ser para todo o sempre um marco renovador de nossas energias espirituais no grande movimento das reencarnações sucessivas, em busca do amor e da sabedoria! Ampliando os meus recursos para regressar às lutas terrestres, abençoo a tua dor, porque a tua renúncia é grande e meritória aos olhos de Jesus.

 

Foi aí que ela, conseguindo romper as emoções que a asfixiavam, exclamou com voz amargurada e dolorida:

— Mais do que as palavras, meu coração, que o vosso espírito pode perscrutar, pode dizer-vos da minha alegria e reconhecimento!… Protetor e amigo, guia desvelado de minh’alma, já que vindes das sombras do túmulo para trazer-me as mais consoladoras verdades, ajuda-me a vencer nos embates dolorosos da vida!… Animai-me! Inspirai-me com a vossa sabedoria e o vosso amor compassivo! Não me deixeis desorientada, nestas penhas escabrosas!… Avô, meu coração tem andado triste como esta noite, e o desalento e a amargura clamam no meu íntimo como os lobos ferozes que uivam nestas selvas!… Doravante, porém, saberei que vos tenho junto a mim!… Caminharei consciente de que me seguireis os passos em busca da felicidade real!… Rogai a Jesus que eu desempenhe austeramente todos os meus deveres! E, sobretudo, amparai também o inocentinho, cuja vida buscarei proteger em todas as circunstâncias!…

 

A voz de Célia, todavia, experimentava um estacato. Ouvindo-lhe as súplicas, com a mesma expressão de serenidade e de carinho no olhar, Cneio Lúcius avançou vagarosamente até o leito improvisado do pequenino, iluminando-lhe o rostinho alvo com um gesto da sua destra radiosa e exclamando num sorriso:

— Eis, filhinha — disse apontando a criancinha — que Ciro cumpriu a promessa, regressando prestes ao mundo para estar mais perto do teu coração, sob as bênçãos do Cordeiro!…

— Como não mo revelastes antes? Monologou a jovem intimamente possuída de sublime alvoroço.

— É que Deus — exclamou a entidade generosa adivinhando-lhe os pensamentos — quer que todos espiritualizemos o amor, buscando-lhe as expressões mais puras e mais sublimes. Recebendo um enjeitadinho como teu irmão, sem te deixares conduzir por qualquer disposição particular, soubeste santificar, ainda mais, tua afeição por Ciro, no laço indissolúvel das almas gêmeas, a caminho das mais lúcidas conquistas espirituais na redenção suprema!…

 

— Sim — falou a jovem patrícia dentro do seu júbilo espiritual — agora compreendo melhor o meu enternecimento e já que me trouxestes ao coração uma alegria tão doce, ensinai-me como devo agir, dai-me uma orientação adequada, para que eu possa cumprir irrepreensivelmente todos os meus deveres!…

— Filha, a orientação de todos os homens está delineada nos exemplos de Jesus-Cristo! Não temos o direito de tolher a iniciativa e a liberdade dos entes que nos são mais caros, porque, no caminho da vida, o esforço próprio é indispensável! Luta com energia, com fé e perseverança, para que o reino do Senhor floresça em luz e paz na tua própria vida… Mantém a tua consciência sempre pura e, se algum dia a dúvida vier perturbar teu coração, pergunta a ti mesma o que faria o Mestre em teu lugar, em idênticas circunstâncias… Assim aprenderás a proceder com firmeza, iluminando as  tuas resoluções com a luz do Evangelho!…

 

Depois de uma pausa em que Célia não sabia se fixava a personalidade sobrevivente do avô, ou se despertava o enjeitadinho para rever nos seus olhos, mais uma vez, as recordações do bem-amado, Cneio Lúcius acentuou:

— Depois de tantas surpresas empolgantes e de tanta fadiga, precisas descansar! Repousa o corpo dolorido que ainda terá de sustentar muitas lutas… Continua com a mesma oração e vigilância de sempre, pois Jesus não te abandonará no mar proceloso da vida!…

Então, como se um poder invencível lhe anulasse as possibilidades de resistência, Célia sentiu-se envolvida num magnetismo doce e suave. Aos poucos, deixou de ver a figura radiosa do avô, que se prostrara a seu lado qual sentinela afetuosa contra a incursão de todos os perigos… Um sono brando cerrou-lhe as pálpebras cansadas e, abraçada ao pequenito, dormiu tranquilamente até que os primeiros raios do Sol penetrassem na gruta anunciando o dia.




de Emmanuel — A Porta Cœlimontana  foi chamada, mais tarde, Porta de São João.

 



Sombras Domésticas

1 • 1

A vida das nossas personagens, em Roma, reiniciou-se sem grandes acontecimentos nem surpresas.

Helvídio Lucius, apesar do amor à Província, experimentava a agradável sensação de haver voltado ao antigo ambiente, a ocupar um cargo mais elevado, no qual haveria de enriquecer, sobremaneira, os valores de sua vocação política ao serviço do Estado.

Concedendo liberdade a Nestório, fizera questão de admiti-lo nos trabalhos do seu cargo e da sua casa, como cidadão culto e independente, que era.

Foi assim que o antigo escravo, alugando um cômodo de habitação coletiva nas imediações da Porta Salária, tornou-se professor de suas filhas e auxiliar de trabalho, durante oito horas diárias, com vencimentos regulares.

Fora disso, o liberto ficava inteiramente livre para cuidar dos seus interesses particulares.

E soube aproveitar essas folgas, valendo-se da oportunidade para consolidar a melhoria de situação. Assim é que, à noite, ensinava primeiras letras a discípulos humildes, que lhe contratavam os serviços, facultando-se um vasto campo de relações e dando expansão aos seus pendores afetivos, em reuniões carinhosas que lhe propiciavam novas energias ao coração.

Bastou um mês para que ficasse conhecendo os centros mais importantes da cidade, seus homens ilustres, monumentos, classes sociais, fazendo amizades sólidas na esfera humilde em que vivia.

Apaixonado pelo Cristianismo, circunstância que Helvídio Lucius desconhecia, não se furtou à satisfação de conhecer os companheiros de ideal, de modo a cooperar com o seu contingente na tarefa abençoada de edificar as almas para Jesus, naqueles sombrios tempos que o pensamento cristão atravessava, entre ondas largas de incompreensão e de sangue.

A palavra fácil de Nestório, aliada à circunstância de suas relações pessoais com o Presbítero Johanes, discípulo dileto de João Evangelista na igreja de Éfeso, circunstância que lhe facultava o mais amplo conhecimento das tradições de Jesus, proporcionou-lhe, imediatamente, um lugar destacado entre os companheiros de fé, que, duas vezes na semana, se reuniam à noite, no interior das catacumbas da Via Nomentana, para estudar as passagens do Evangelho e implorar a assistência do Divino Mestre.

O reinado de Adriano, embora liberal e justo, de início, caracterizou-se pela perseguição e pela crueldade, depois dos terríveis acontecimentos da guerra civil

da Judéia.
Posteriormente a 131, todos os cristãos se viram compelidos a buscar

novamente o refúgio das catacumbas, para as suas preces. Perseguição tenaz e implacável era movida pela autoridade imperial a todos os núcleos de idéias ou de personalidades israelitas. Os adeptos de Jesus apenas se reconheciam, entre si, na cidade, por um vago sinal da cruz, que os identificava fraternalmente onde quer que se encontrassem.

Nestório não desconhecia o perigoso ambiente, buscando adaptar-se à situação, quanto possível, de maneira a continuar servindo o Cristo na sua fé íntima, sem trair o cumprimento dos seus deveres, em consciência.

Votava a Helvídio Lucius e à sua família extremado respeito e sincera estima. Jamais poderia esquecer que recebera de suas mãos generosas a liberdade plena. Era assim que se desobrigava de suas responsabilidades, com satisfação e devotamento.

Em pouco tempo, chegava à conclusão de que ambas as jovens estavam devidamente preparadas para a vida, dado o seu grande cabedal de conhecimentos, através da leitura; mas, Helvídio Lucius, cultivando a sua simpatia da primeira hora, conservara-o no seu gabinete de trabalho, onde o liberto teve ocasião de lhe testemunhar o seu reconhecimento e admiração, fortalecendo-se, cada vez mais, os laços de amizade recíproca.

Fazia já um mês que os nossos amigos tinham regressado a Roma, quando o censor Fábio Cornélio fez questão de abrir o seu palácio para apresentação dos filhos a todas as figuras destacadas do patriciado.

A essa festa de larga projeção social, compareceu o próprio Adriano, com o prefeito e Cláudia Sabina, enaltecendo o esplendor do acontecimento.

Nessa noite memorável para os destinos das nossas personagens, tudo era um deslumbramento de luz e flores, na suntuosa residência do antigo bairro das Carinas.

Nos jardins luxuosos brilhavam tochas artisticamente dispostas, enquanto no lago improvisado graciosas embarcações se pejavam de músicos e cantores. Às melodias das harpas misturavam-se os sons das flautas, dos alaúdes e atabales, junto dos quais, escravos esbeltos e jovens erguiam vozes cariciosas e cristalinas.

Mas não era só.

Fábio Cornélio e Júlia Spinter, movimentando todos os recursos materiais, apresentaram uma festividade a rigor, de cujas características a aristocracia romana haveria de guardar indelével lembrança.

Luzes em profusão, mesas lautas, flores preciosas, extravagantes adornos do Oriente, cantores e bailarinos famosos, apresentação de antílopes gigantescos que

lutariam com escravos atléticos, na arena preparada a capricho, para os fins a que se destinava. Gladiadores e artistas mesclavam-se com a legião de convivas, em soberbo painel de maravilhosa alacridade.

Cláudia Sabina, depois de algum esforço, conseguiu atrair a atenção de Helvídio Lucius, que se lhe mostrava arredio, interessando a palavra direta do Imperador por sua figura e feitos. De vez em quando, uma referência carinhosa e vaga, que o patrício recebia alarmado, receoso de voltar à recordação dos tempos inquietos da juventude.

Enquanto isso, Lólio Úrbico, oferecendo o braço a Alba Lucínia, conduzia, de leve, às alamedas extensas e floridas em derredor do lago artificial, que brilhava à luz da noite, num como deslumbramento.

Retido propositadamente por Cláudia, junto do Imperador, Helvídio ouvia a palavra generosa de César, a demonstrar evidente interesse pela sua pessoa:

– Helvídio Lucius – exclamava Adriano com sorriso afável e atencioso –, folgo muito de revê-lo em nosso ambiente.

E designando Cláudia Sabina, de pé, a seu lado, acrescentava:

– Nossa amiga falou-me de sua preciosa capacidade de trabalho e eu o felicito. Tenho, agora, numerosas obras de importância, em Tibur, onde necessito do concurso de um homem operoso e inteligente, que traga consigo a volúpia da atividade. É certo que essas construções chegam, no momento, a seu termo, mas, determinadas instalações requerem a contribuição de alguém com altos conhecimentos de nossas realidades práticas. Confiei a Cláudia a solução de numerosos problemas de arte, em que prima a sua sensibilidade feminina, mas preciso de cooperação como a sua, dedicada e perseverante, no concernente à parte administrativa. Ser-lhe-ia agradável colaborar com a nossa amiga, por algum tempo, em Tibur?

Helvídio compreendeu a situação difícil que lhe fora preparada.

Em consciência, não poderia aceitar com satisfação semelhante encargo, mas César não precisava expressar uma ordem, além da manifestação de seus desejos.

– Augusto – replicou o interpelado com reverência –, vossa gentileza honra os meus esforços. A deferência de tais responsabilidades constitui para mim um grato dever do coração.

Cláudia Sabina esboçou um sorriso bem-humorado, dirigindo-se, satisfeita, ao Imperador:

– Obrigada, César, pela escolha de colaborador tão precioso. Sinto que as obras de Tibur serão a maravilha inultrapassável do Império.

Adriano sorriu, lisonjeado, exclamando, carinhoso, como quem estivesse dispensando um favor raro:

– Está bem! Cuidaremos do assunto no momento oportuno.

E alongando o olhar enigmático pelas avenidas harmoniosas e floridas, onde pares numerosos se enfileiravam em alegrias francas, acrescentou:

– Mas, que fazeis aqui, tão jovens, presos à minha palavra cheia de rotina e de austeridade?... Diverti-vos! A vida romana deve ser um formoso jardim de prazeres!...

Helvídio Lucius, compelido pelas circunstâncias, deu o braço à sedutora favorita, retirando-se vagarosamente em sua companhia, sob as vistas generosas e complacentes de Augusto.

Cláudia Sabina não conseguiu dissimular a incoercível emoção que intimamente a afligia, em face da situação que a conduzira ao braço do homem que polarizava as suas aspirações de mulher, e, dados alguns passos, foi a primeira a romper o constrangido silêncio:

– Helvídio – disse em voz quase súplice –, reconheço, agora, a linha de responsabilidades sociais que nos separam, mas será possível que me houvesses esquecido?

– Senhora – respondeu o patrício, emocionado e respeitoso –, dentro do nosso foro íntimo, todo o passado deve estar morto. Se vos ofendi no passado, confesso-me agradecido pelo vosso esquecimento. De outro modo, qualquer aproximação entre nós representaria uma fórmula de existência odiosa e impossível.

A favorita de Adriano sentiu fundo a firmeza daquelas palavras, que lhe gelavam o coração inquieto e sôfrego, retorquindo, todavia, sem vacilar:

– A mulher conquistada jamais poderá considerar-se mulher ofendida. As mãos que amamos nunca nos chegam a ferir, e eu, em tempo algum, consegui olvidar tua afeição.

Imprimindo à voz uma inflexão de humildade, acrescentava:

– Helvídio, tenho sofrido muito, mas, tenho-te esperado em toda a vida. Vencida e humilhada na juventude, não sucumbi ao desespero para aguardar, confiante, o teu regresso ao meu amor. Quererias, porventura, aniquilar-me agora que te venho oferecer, humildemente, todos os tesouros da vida amontoados com zelo para te ofertar?

As últimas palavras foram sublinhadas de profundo desencanto, à face de si mesma, e Helvídio Lucius, compreendendo o seu desapontamento, prosseguiu sem hesitar:

– Precisais considerar que jurei fidelidade e dedicação a uma criatura generosa e leal, além de estardes, também vós, comprometida com um homem

nobre e digno. Acaso desejaríeis quebrar um voto contraído perante os nossos deuses?...

– Nossos deuses? – repetiu a interpelada com uma ponta de ironia. – E chegam eles a impedir os divórcios numerosos de tantas personalidades da Corte? E esses exemplos, porventura, não nos chegam de cima, dos altos postos onde domina a autoridade direta do Imperador? Não cogito de situações, para, antes de tudo, satisfazer minha sensibilidade feminina.

– Bem se vê – replicou Helvídio irônico – que desconheceis a tradição de um nome de família. Os que desejam continuar os valores dos séculos que passaram, não podem aventurar-se com as novidades da época, de maneira a permanecerem fiéis ao patrimônio recebido de seus ascendentes.

Cláudia Sabina mordeu os lábios, nervosamente, recebendo aquela alusão direta à sua antiga situação de plebéia, murmurando com altivez:

– Não concordo contigo, neste particular. Os triunfadores não podem ser os tradicionalistas, que recebem um nome feito para brilhar no mundo e, sim, os que, triunfando da própria condição e do meio ambiente, sabem elevar-se às culminâncias sociais, como águias da inteligência e do sentimento, obrigando o mundo a lhes reverenciar as conquistas e os méritos.

O orgulhoso romano sentiu a azedia da resposta, sem encontrar recursos imediatos para revidar com as mesmas armas, porém, a antiga plebéia acrescentou com sorriso enigmático:

– Apesar da tua impassibilidade, continuarei guardando as minhas esperanças. Acredito que não deixarás de aceitar a honrosa incumbência de Augusto para conclusão das obras de Tibur, que, atualmente, constituem a sua preocupação de todos os instantes.

– Sim – murmurou o patrício algo contristado –, terei de cumprir as determinações de César.

Preparava-se a favorita para retorquir, quando Publício Marcelo, companheiro de Lólio Úrbico em seus notáveis feitos de armas, se aproximou ruidosamente, roubando-lhes a possibilidade de prosseguir na confidência e atirando-lhes um convite amável:

– Amigos – exclamou esfusiante de alegria –, acerquemo-nos do lago! Vergílio Prisco vai cantar uma das suas mais belas composições em homenagem a César!

Helvídio e Cláudia, colhidos numa onda de chamamentos alegres, separaram-se involuntariamente, para atender aos convites afetuosos.

Com efeito, nas bordas da grande piscina rodeada de árvores frondosas, toda a massa de convidados se comprimia sôfrega. Mais alguns instantes e a voz

aveludada de Vergílio enchia o ambiente de sonoridades, entre as quais se destacavam as notas melodiosas das cítaras e dos alaúdes que o acompanhavam.

Do alto do trono improvisado, Adriano ouvia-o embevecido, recebendo a homenagem dos súditos fiéis às suas vaidades imperiais.

Em ligeiro retrospecto acompanhemos, contudo, Alba Lucínia e Lólio Úrbico através de pequeno giro pelas alamedas claras e floridas.

A nobre senhora guardava a severidade graciosa dos seus traços de madona, enquanto o companheiro se mostrava eminentemente emocionado.

Em palestra aparentemente despreocupada, o prefeito dos pretorianos parecia distanciar-se, intencionalmente, dos grupos numerosos, desejoso de manifestar os pensamentos secretos que lhe atormentavam o íntimo desolado.

Em dado instante, muito pálido, exclamou em atitude quase súplice:

– Senhora, eu vos vi pela primeira vez há mais de vinte anos... Celebravam- se os vossos esponsais com um homem digno e eu lamentei, sinceramente, não haver chegado mais cedo para disputar-vos!... Acredito que vosso coração se alarme com estas minhas revelações inoportunas, mas, que fazer, se o homem apaixonado é sempre a mesma criança de todos os tempos, que não mede situações nem circunstâncias para ser sincero?... Perdoai-me se vos ofendo a suscetibilidade superior e generosa, mas, tenho necessidade inelutável de vos afirmar de viva voz o meu amor...

Alba Lucínia escutava-o, penosamente impressionada com aquelas declarações sinceras e peremptórias. Desejou responder-lhe com a austeridade dos seus elevados princípios, como esposa e mãe, mas, amarga comoção parecia paralisar-lhe as cordas vocais, naquelas difíceis circunstâncias.

Retomando a palavra e tornando-se mais veemente, Lólio Úrbico prosseguia:

– Desperdicei a mocidade com os mais dolorosos pesares íntimos... Minha alma procurou, em vão, por toda parte, alguém que se parecesse convosco. Resvalei por aventuras escabrosas, nas minhas tristes empresas militares, ansioso de encontrar o coração que adivinho em vosso peito! Minha existência, posto que fortunosa, está saturada de amarguras infinitas... Será que me não concedereis o lenitivo de uma esperança? Terei de morrer, assim, estranho e incompreendido?... Displicentemente, dei meu nome e posição social a uma mulher que me não pode satisfazer as expressões elevadas do espírito. Dentro do lar, somos dois desconhecidos... entretanto, senhora, nunca pude esquecer o vosso perfil de madona, esse olhar divino e calmo, onde leio agora as páginas de luz da vossa virtude soberana!...

No meu ambiente social tenho tudo que a um homem é lícito desejar: fortuna, privilégios políticos, fama e nome, degraus que escalei facilmente entre

as classes mais nobres; o coração, porém, vive em desalento irremediável, aspirando a uma felicidade inatingível... Enquanto vos conserváveis na Província, possível me foi contemporizar com os próprios amargores; mas, depois que vos revi, experimento nalma um desencadeado Vesúvio de chamas!... Tenho as noites povoadas de inquietações e amarguras, quais as de um náufrago, vendo além a ilha da sua ventura, distante e inatingível.

Dizei que vosso coração há de acolher-me as súplicas; que me vereis com simpatia ao vosso lado. Se não puderdes retribuir esta paixão, enganai-me ao menos com a vossa amizade honrosa e enobrecedora, reconhecendo em mim algum de vossos servos!...

A nobre senhora tornara-se lívida, o coração lhe pulsava alarmado, em ritmo violento:

– Senhor Prefeito – conseguiu balbuciar, quase desfalecente –, lamento bastante haver inspirado sentimentos dessa natureza e não posso honrar-me com a vossa homenagem afetiva, porquanto vossas palavras evidenciam a violência de paixão insensata e desastrosa. Meus deveres sagrados, de esposa e mãe, impedem-me de considerar quanto acabais de dizer. Mantenho sincero propósito de vos considerar o cavalheiro ilustre e digno, o amigo dedicado e honesto de meu pai e de meu marido, a cujo destino, por afeição natural, estou ligada para sempre.

Lólio Úrbico, habituado às transigências femininas da Corte, em face da sua posição e predicados, empalideceu de súbito, ao ouvir a recusa nobre e digna. Avaliou num relance o quilate espiritual da criatura ardentemente cobiçada há tantos anos. No seu íntimo, de mistura com o amor próprio humilhado, havia igualmente um ressaibo de vergonha para consigo mesmo.

Baixando, todavia, o olhar despeitado, falou quase súplice:

– Não desejo passar a vossos olhos como um espírito grosseiro e incompreensivo! A verdade, porém, é que continuarei a vos amar da mesma forma. Vossa formal e delicada recusa agrava a minha ambição de possuir-vos. Por quanto tempo, ó deuses do Olimpo, prosseguirei assim, incompreendido e torturado?

Erguendo os olhos, notou que Alba Lucínia chorava, contristada. Aquela dor serena e justa penetrou-lhe o coração qual o gume de uma espada.

Lólio Úrbico sentiu, pela primeira vez, que a materialidade de sua paixão produzia sentimentos de angústia e piedade.

– Senhora – exclamou aflito –, perdoai se vos fiz chorar com as expressões mal-avisadas dos meus tristes padecimentos. Quero-vos muito, muito... Desposastes um homem honesto e digno e acabo de cometer a loucura de vos

propor a sua desonra e desventura... Perdoai-me! Fui vítima de um instante penoso de criminosa insânia... Apiedai-vos de mim, que tenho vivido até agora abatido e desolado.

Um mendigo do Esquilino é mais feliz do que eu, embora estenda as mãos à caridade pública! Sou um desgraçado... tende compaixão do meu padecer angustioso. Por muitos anos guardei no íntimo estas emoções rudes e penosas e vós sabeis que a alma do soldado tem de ser cruel e impassível, recalcando os pensamentos mais generosos!... Jamais encontrei um coração que compreendesse o meu, razão por que não hesitei em vos ofender a dignidade irrepreensível!...

Alba Lucínia escutava-lhe as súplicas sem compreender os contrastes daquela alma violenta e sensível. Houve um silêncio penoso para ambos, quando alguém, atravessando as filas de arvoredos, exclamava em voz cheia, rente de seus ouvidos:

– Vinde ouvir Vergílio Prisco! Associemo-nos às homenagens a César!...

Lólio Úrbico verificou a impossibilidade de prosseguir em suas confidências e, oferecendo o braço à nobre senhora, que o acompanhou com um sorriso triste, seguiram em direção ao lago, onde, momentos antes, víramos chegar Helvídio e Cláudia Sabina.

Em torno do cantor reuniam-se todos os convivas, numa assembléia compacta e distinta, atentos à homenagem que o Imperador recebia, sereno e envaidecido.

A canção encomendada pelos anfitriões era um longo poema no estilo da época, onde os feitos de Adriano excederam, glorificados, a todas as realizações precedentes, do Império. Nas expressões bajuladoras do artista, herói algum o havia excedido nos feitos brilhantes de Roma. Generais e poetas, cônsules e senadores célebres ficavam aquém do que tivera a ventura de ser filho adotivo de Trajano.

No alto do trono ali erguido a caráter, o Imperador dava largas à sua vaidade pessoal, com francos sorrisos.

Todos o rodeavam. Numerosas autoridades lá estavam, associando-se ao honroso preito de Fábio Cornélio e família.

Não podemos esquecer que Helvídia e Caio Fabricius lá se viam juntos e embevecidos na sua risonha primavera de amor, enquanto Cneio Lucius, obrigado pelas circunstâncias a comparecer, amparava-se ao braço de Célia, meio trêmulo na sua avançada velhice e desejoso de patentear aos filhos que o seu coração também participava do júbilo geral.

Emudecidos os alaúdes, uma legião de jovens despetalou centenas de róseas coroas trazidas por escravos em grandes bandejas prateadas, envolvendo o trono

em nuvem de pétalas odorantes.
Vibraram novas harmonias e o coro dos dançarinos exibiu novos bailados,

cheios de figurações interessantes e estranhas.
O vinho transbordou, enchendo quase todas as frontes de fantasia e, com a

caçada dos antílopes fabulosos, terminou a festa que ficou gravada, para sempre, na mente de todo o patriciado.

Helvídio Lucius e Alba Lucínia volveram ao lar, sob o peso de indefinível angústia.

Surpreendidos pelos acontecimentos inesperados, quanto às penosas emoções de que haviam sido vítimas, observava-se em ambos o recíproco efeito de uma confidência desagradável e dolorosa.

Voltando, todavia, à intimidade doméstica, a nobre senhora disse ao esposo em tom de amargura:

– Helvídio, muitas vezes desejei ardentemente retornar a Roma, saudosa das nossas amizades e do incomparável ambiente citadino; mas hoje compreendo melhor a calma do campo, onde vivíamos sem cuidados penosos. Os anos da Província me desacostumaram das intrigas da Corte e essas festividades, de agora, como que me cansam profundamente o coração.

Helvídio ouviu-a, sentindo que o seu estado dalma era bem aquele, tal o tédio que se apossara dele, depois dos espetáculos que lhe fora dado observar, considerando também as penosas emoções que aquela noite lhe proporcionara.

– Sim, querida – replicou algo confortado –, tuas palavras fazem-me grande bem ao coração. Regressando a Roma, reconheço que estou também farto dos ambientes de convenção e hipocrisia. Temo a cidade com os seus perigos numerosos para esta nossa ventura, que desejamos imperecível!

E, recordando mais detidamente as dolorosas comoções experimentadas horas antes, com as confidências de Sabina, atraiu a esposa ao coração, acrescentando com o olhar incendido de súbito clarão:

– Lucínia, uma idéia nova aflora-me ao espírito! Que me dirias da nossa volta ao campo acolhedor e tranqüilo? Lembremo-nos, querida, de que a revolução terminou e não será difícil readquirirmos as antigas propriedades da Palestina.

Reataríamos assim a nossa tranqüila existência na Província, sem as preocupações exaustivas e dolorosas que aqui nos assaltam. Cuidarias das tuas flores e eu continuaria zelando pelos interesses de nossa casa.

Prometo-te que farei tudo por te fazer a vida menos triste, longe de teus pais! Conservaria conosco somente os escravos da tua predileção e buscaria

aconselhar-me constantemente contigo, no desdobramento de todos os trabalhos!...

Levar-te-ia comigo, em todas as viagens... nunca mais te deixaria isolada em casa, preocupada e saudosa...

Helvídio Lucius imprimia à voz um tom singular e fundamente expressivo, como se estivesse desdobrando, ante o olhar lacrimoso da esposa, as perspectivas cariciosas de um quadro primaveril.

– Quem sabe – continuava de olhos brilhantes – poderíamos voltar à Judéia, para sermos ainda mais alegres e mais felizes?! Nossa Helvídia tem o futuro assegurado com o enlace próximo e ficaria Célia para enriquecer a felicidade doméstica!... De volta, percorreríamos toda a Grécia, a fim de visitar o mais antigo jardim dos deuses, e, quando em Samaria e na 1duméia, haverias de ver os milagres do meu coração no afã de fazer-te risonha e venturosa! Passearemos, então, juntos como outrora, pelas estradas enluaradas, no silêncio das noites calmosas, para melhor sentirmos a extensão do nosso amor venturoso.

Aqui, sinto a nossa paz doméstica ameaçada a cada passo... As intrigas da Corte me atormentam o coração!... Entretanto, somos ainda moços e temos diante de nós um futuro promissor.

Acredita, querida, que alimento o maior desejo de voltar ao nosso remanso de paz, no seio da Natureza calma e generosa!...

Alba Lucínia ouvia-o, aliviada das próprias angústias. Uma lágrima lhe brilhava à flor dos olhos, tinha o coração alvoroçado com a risonha expectativa de regressar à tranqüilidade da vida provinciana.

Não obstante o júbilo dessas esperanças, sua atitude mental se caracterizava pela mais funda reflexão.

– Helvídio – exclamou confortada –, essa perspectiva de voltarmos ao ambiente campestre, com a nossa ventura e o nosso amor, consola-me o espírito abatido. Mas, ouve-me: e os nossos deveres? Que dirá meu pai da nossa atitude, depois de haver lutado tanto para reajustar tua situação à política administrativa do Império? Enfim, desejo saber se não chegaste a assumir qualquer compromisso mais sério.

Em lhe ouvindo as serenas ponderações, o patrício recordou, subitamente, o compromisso com o Imperador, concernente às construções de Tibur, e sentiu-se gelado, depois da eclosão de suas entusiásticas esperanças.

Informou, então, à companheira, da solicitação do César, respondendo-lhe ela com um suspiro de pesar.

– Neste caso – exclamou Alba Lucínia com uma ponta de contrariedade nas expressões familiares –, é tarde para cogitarmos do nosso imediato regresso à

Província.
O marido reconheceu, com mágoa, a justeza da ponderação, mas,

acrescentou:
– Em última análise, falarei amanhã a Fábio Cornélio, expondo-lhe as

minhas apreensões a respeito e, mesmo que ele não aprove nosso regresso, mantenhamos esperanças, pois os deuses hão de permitir nossa volta mais tarde!...

Embora a profunda intimidade daquele desabafo, nem um nem outro se sentiu com a coragem precisa para revelar as penosas emoções daquela noite.

E, no dia seguinte, ambos ainda se ressentiam do primeiro embate das lutas sentimentais que os aguardavam no ambiente da grande metrópole.

Procurando o sogro, Helvídio Lucius expôs-lhe, sem reservas, seus planos e desejos. Além de manifestar o propósito de voltar à Palestina, falou igualmente da pretensão imperial de lhe utilizar os préstimos pessoais nas obras de Tibur.

Fábio Cornélio recebeu aquelas alegações tomado de surpresa, reprovando os projetos do genro e encarecendo-lhe que semelhante alvitre demonstrava muita infantilidade da sua parte, em tais circunstâncias. Não estava com a posição financeira consolidada? Não representava um fator de paz a sua permanência em Roma, ao lado de toda a família? Não conseguira as graças de Adriano, a ponto de se integrar no mecanismo político-administrativo com todas as honras de um tribuno militar?

Em face da recusa obstinada, em voz baixa e em tom discreto, Helvídio relatou ao sogro as suas aventuras da mocidade, dizendo-lhe das novas pretensões de Cláudia Sabina e da sua difícil situação doméstica, no sagrado aconchego da família.

O velho censor ouviu-lhe a confidência um tanto surpreso, mas obtemperou:

– Meu filho, compreendo os teus escrúpulos; entretanto, devo falar-te com a mesma franqueza com que te confessas, esclarecendo que, na minha atual situação, dependo inteiramente do apoio de Lólio Úrbico e de sua mulher, no mundo da política e dos negócios. Minha posição financeira, infelizmente, é agora assaz precária, em vista dos numerosos gastos impostos pelas circunstâncias. Se te for possível, auxilia-me nestas contingências. Não recuses a oportunidade que Adriano te oferece em Tibur, e faze o possível por não desgostares o espírito vingativo de Cláudia, principalmente nas atuais circunstâncias de nossa vida.

Helvídio compreendeu a impossibilidade de abandonar o velho sogro e sincero amigo, em tais conjunturas, e buscou prover-se de energias íntimas, de modo a não deixar transparecer qualquer constrangimento.

– Ao demais – exclamou o censor tentando fazer humorismo para dissipar as sombras do ambiente sentimental criado entre ambos –, espero não te percas em receios pueris nas situações mais difíceis... Não tenhas medo, filho, dessa ou daquela circunstância!...

E esboçando um sorriso benévolo, acrescentava:

– Sabes o que dizia Lucrécio há mais de cem anos? – “que a mulher é o animalzinho santo dos deuses!”

Entre ambos esboçou-se, então, um riso franco e otimista, embora no íntimo continuasse Helvídio Lucius a guardar as suas apreensões.

Por sua vez, Alba Lucínia, na manhã daquele mesmo dia, procurou aconselhar-se com sua mãe acerca de suas amarguradas reflexões; mas Júlia Spinter, após ouvir-lhe a exposição dos episódios da véspera, com o coração tocado de pressentimentos angustiosos pela situação da filha, replicou com os olhos úmidos, sem perder, todavia, a sua fortaleza moral:

– Filhinha – disse, beijando-a –, atravessamos uma fase de lutas amargas, em que somos obrigados a demonstrar toda a nossa capacidade de resistência. Sei avaliar tua angústia íntima, porque, na mocidade, também experimentei essas emoções penosas, no torvelinho das atividades sociais. Se me fosse possível, romperia com a situação e com todos, em benefício da tua tranqüilidade, mas...

Aquelas reticências significavam tal desalento que Alba Lucínia se comoveu, interpelando-a.

– Que dizes, mamãe? Esse “mas” tem tanta amargura que chega a surpreender-me, como que adivinho em teu espírito preocupações porventura mais graves que as minhas.

– Ora, filha, como mãe, sou levada a interessar-me pela tua como pela minha própria felicidade... Entretanto, inteirada dos negócios de teu pai e dos laços que o prendem à política do prefeito dos pretorianos, colijo que Fábio não poderia desligar-se, no momento, de Lólio Úrbico, sem graves prejuízos financeiros. Ambos se encontram profundamente vinculados na situação atual, de modo que, apesar da franqueza com que sempre assinalei minhas palavras e atos, sou levada a aconselhar-te a máxima prudência a prol da tranqüilidade de teu pai, que deve merecer os nossos sacrifícios.

As palavras da nobre matrona eram ditas em tom de amargurada tristeza.

Quanto a Alba Lucínia, muito pálida, após receber-lhe as penosas confidências, perguntou:

– Mas a situação financeira de meu pai é assim tão precária? A festividade de ontem dava-me a entender o contrário...

– Sim – esclareceu Júlia Spinter resignada –, infelizmente os fatos vêm justificar os meus íntimos desgostos. Conheces o temperamento de teu pai e sabes da minha necessidade em lhe acompanhar os caprichos. Não consideraria necessária uma festa como a de ontem, para dar a entender que te estimo. Julgo que essas comemorações devem ser feitas na intimidade do coração e da família; mas teu pai pensa de modo contrário e devo acompanhá-lo. Só as despesas dessa noite elevaram-se a muitos milhares de sestércios. E não é só. Teus irmãos têm dissipado quase todo o patrimônio da família, assumindo compromissos de toda espécie, que teu pai é compelido a resgatar com os mais sérios prejuízos para a nossa casa. Como já sabes, os escândalos de Lucília Veinto obrigaram Asínio a ausentar-se para a África, onde prossegue, ao que sabemos, na mesma rota dos prazeres fáceis. Quanto a Rúbrio, foi preciso que teu pai lhe conseguisse uma comissão na Campânia, a fim de tentar a restauração do nosso equilíbrio financeiro. No entanto, filha, não ignoras como a sociedade nos exige a máscara da ventura... Em princípio, não aprovo a atitude de Fábio, realizando festas como a de ontem, mas, ao mesmo tempo, sou forçada a lhe dar razão, porquanto, um censor tem de andar em dia com as convenções sociais.

Alba Lucínia, ouvindo aquelas confidências, encheu-se de compaixão pela genitora, exclamando:

– Basta, mamãe! Eu sei compreender-te. Este assunto deve ficar entre nós e eu saberei conduzir-me através de todas as dificuldades. Ainda ontem, eu e Helvídio cogitávamos de regressar à Província, mas vejo que o papai requer agora o nosso concurso e reconheço que teu coração necessita do meu para enfrentar as circunstâncias da vida!...

Júlia Spinter, comovida, abraçou a filha, reparando-lhe o olhar brilhante, como se pressentisse algo perigoso para a sua felicidade.

– Que os deuses te abençoem, filhinha! – exclamou quase radiante – ficarás comigo, sim, pois aqui tenho vivido muito incompreendida e muito só!... Apenas a nossa querida Túlia se conserva fiel à minha antiga afeição, vendo em mim a mãe adotiva que a Providência lhe concedeu!... Os filhos, desde cedo, afastaram- se do lar para enveredar por maus caminhos e teu pai está sempre ocupado em conferências e negócios do Estado...

Por algum tempo, ainda, mãe e filha se entretiveram em palestra confidencial e carinhosa.

A situação geral continuou inalterável. Alba Lucínia e o esposo, abandonando os propósitos de voltar ao ambiente provinciano, tudo fizeram por atender às necessidades domésticas, permanecendo na Capital do Império.

Daí a pouco tempo, deixando Nestório como auxiliar do sogro, Helvídio Lucius retirava-se para Tibur, de modo a cumprir as determinações imperiais, ali encontrando Cláudia Sabina instalada em posição de destaque. Fosse pelo desejo de salientar-se aos olhos do patrício, graduando-se no seu conceito, ou fosse anuindo à expansão de suas vocações inatas, a esposa do prefeito fazia-se notável por suas providências na administração das obras artísticas confiadas à sua sensibilidade feminina.

Helvídio Lucius foi compelido pelas circunstâncias a aproximar-se dela, conhecendo-lhe de perto a surpreendente aptidão e admirando-lhe os feitos com sinceridade, embora conservasse o espírito precavido contra qualquer tentativa de retorno ao passado. Cláudia Sabina, entretanto, apesar da modificação tática das suas operações sentimentais, guardava no íntimo as mesmas pretensões de sempre.

Enquanto isso, Alba Lucínia começava a experimentar, em Roma, uma longa série de padecimentos morais. Lólio Úrbico não cedeu em seus propósitos, não obstante estar cônscio das suas elevadas virtudes conjugais, tendo, porém, moderado os impulsos. A sociedade romana, de então, amava os desportos e fazia questão de conservar as tradições de liberdade no mecanismo das relações familiares, circunstância que lhe facultava visitar a casa do patrício ausente, sob as vistas benévolas de Fábio Cornélio, que via no seu carinhoso interesse um motivo de honrosa distinção para a família. Contudo, a nobre senhora, que conhecia as necessidades paternais, não se sentia com a precisa coragem para confiar ao velho censor os seus justos receios, sujeitando-se, desse modo, a tolerar a amizade que o prefeito lhe oferecia, aceitando-a com a intangibilidade do seu caráter.

Helvídio Lucius vinha ao lar quinzenalmente. Todavia, essas surtidas a Roma eram excessivamente rápidas para poder combinar devidamente, com a esposa, a solução de todos os assuntos que os preocupavam.

E o tempo corria, carregando sempre as suas reservas preciosas.

Alguém havia que se interessava a fundo pela situação do prefeito, espionando-lhe facilmente os menores passos. Esse alguém era Hatéria, que, na própria casa dos amos, podia observar-lhe o interesse, ouvir-lhe as impressões e as palestras, acompanhando as suas atitudes sentimentais.

Dois longos meses haviam transcorrido nessa situação, quando, um dia, vamos encontrar Lucínia e Túlia na maior intimidade, em palestra amena e confortadora.

Após as pequeninas bagatelas sociais, a esposa de Helvídio falou confidencialmente das suas amarguradas impressões íntimas, expondo à amiga da

infância os seus receios em face da prolongada separação do esposo, que, obedecendo a caprichosas determinações do destino, parecia continuar indefinidamente na cidade da predileção imperial.

Túlia Cevina olhou-a fixamente, murmurando em tom discreto:

– Sei justificar as tuas apreensões, ainda mais continuando Helvídio junto de Cláudia!...

– Porque ligas tanta importância a essa circunstância? – interrogou Alba Lucínia admirada.

– Nunca soubeste, então?
– Quê? – disse a outra duplamente curiosa.
Túlia compreendeu que a amiga, longe dos ruídos da Corte, por muitos anos,

não chegara a conhecer o passado em suas minudências.
– Há muito ouvi dizer que Cláudia Sabina e Helvídio Lucius tiveram o seu

romance de amor na mocidade. Creio que não ignoras ter sido essa criatura portadora de beleza singular, em outros tempos, muito antes que o destino a arrancasse da pobreza de sua condição social...

– Nunca cheguei a sabê-lo – murmurou Alba Lucínia visivelmente sobressaltada –, mas, conta-me tudo que sabes a respeito.

– Nunca ouviste, também, a história de Silano? – perguntou ainda Túlia Cevina, aumentando o interesse provocado por suas palavras.

– Sim, sei que Silano é um rapaz que meu sogro adotou como seu próprio filho, sabendo, igualmente, que, quando ele nasceu, muita gente acreditou fosse filho de Helvídio com uma criatura do povo, nas suas aventuras da mocidade.

– Mas, conheces toda a história nos seus pormenores mais íntimos?

– Sei apenas que o pequenino foi enjeitado à porta de Cneio Lucius, que o acolheu com a sua habitual generosidade.

– Muito bem, minha amiga, mas não faltou quem visse Cláudia Sabina, ainda jovem e plebéia, abandonar a criança, alta madrugada, no local a que te referiste, endereçando a Cneio Lucius um bilhete expressivo.

– Em qualquer hipótese – esclareceu Alba Lucínia, apesar de impressionada com aquela revelação –, eu acredito que Helvídio foi vítima de uma calúnia infame.

– Não digo o contrário – volveu a amiga –, mesmo porque Sabina, ao que se diz, era dessas criaturas que vivem cercadas por ansiedades diferentes...

A esposa de Helvídio experimentava uma dor imensa no íntimo. Desejou chorar, desabafando as mágoas que lhe azorragavam o peito, mas, sua fortaleza moral superava, em seu espírito, todos os sentimentos. Não lhe foi possível,

contudo, dissimular o sofrimento, diante da carinhosa irmã espiritual dos primeiros anos, deixando transparecer, de olhos úmidos, suas amarguras e receios.

Túlia Cevina beijou-a longamente, dizendo-lhe à meia voz:

– Querida Lucínia, também eu já sofri essas angústias que vens experimentando, mas encontrei um remédio eficaz. Queres experimentá-lo?

– Sem dúvida. Onde encontrar esse recurso?

– Ouve-me – exclamou a amiga com as características da sua bondade confiante e quase infantil –, certamente já ouviste falar de Lucília Veinto e de seus escândalos na Corte. Certa feita, Máximo deu mostras de sua inclinação por essa mulher, chegando a abalar profundamente a nossa felicidade doméstica; mas Sálvia Súbria ensinou-me a procurar uma reunião cristã, onde pedi as preces de um venerando ancião que ali pontifica como um sacerdote. Desde que me vali desse recurso, meu marido voltou ao remanso do lar, aumentando o quinhão da nossa ventura conjugal.

– Mas, foste obrigada a qualquer compromisso? – interrogou Alba Lucínia eminentemente interessada no assunto.

– Nenhum.
– Mas os cristãos praticaram algum sortilégio em teu benefício?
– Também não. Informaram-me de que a virtude da prece está na

circunstância de ser dirigida a um novo deus, a quem os crentes denominam Jesus de Nazaré.

– Ah! – disse Alba Lucínia lembrando-se da Judéia e das convicções da filha – a doutrina cristã não me é estranha, mas meu marido não lhe tolera as expressões contrárias aos nossos deuses. Julgo, pois, que antes de tomar uma resolução dessa natureza, será conveniente ouvir minha mãe, a fim de lhe seguir os conselhos.

– Isso não.
– Por quê?
– Porque, ao receber o conselho de Sálvia, também procurei tua mãe para

falar-lhe do assunto, mas, dentro do seu espírito formalista e da sua franqueza intransigente, mostrou-se hostil aos meus desejos, alegando que a mulher romana dispensa novos deuses para ser a matrona incorruptível perante a sociedade e a família. Apesar de tudo, resolvi tentar o recurso e obtive os melhores resultados.

– Minha mãe deve estar com a razão – falou Alba Lucínia convicta. – Além disso, não posso conformar-me com a promiscuidade desses ajuntamentos plebeus.

Túlia ouvia-lhe as ponderações, sinceramente desejosa de colaborar na reedificação de sua ventura doméstica, objetando delicadamente:

– Ouve Lucínia: sei que o teu temperamento não se compadece com as reuniões dessa natureza, mas, se quiseres, irei por ti, como fui por mim... A essas assembléias, preside um homem santo, chamado Policarpo. Sua palavra nos fala do novo deus com uma fé tão pura e uma sinceridade tão grande, que não há coração que se não renda à beleza espiritual das suas afirmativas... Suas expressões arrebatam nossa alma para um reino de felicidade eterna, onde Jesus Nazareno deve estar à frente de todos os nossos deuses, aguardando-nos, além desta vida, com as bênçãos de uma bem-aventurança eterna...

Não sou cristã, como sabes, mas fui beneficiada pelas suas orações e, ao contrário do que afirmam, posso testificar que os adeptos de Jesus são pacíficos e bons!...

A esposa de Helvídio recebia-lhe as carinhosas sugestões com o coração imensamente sensibilizado.

– E irás sozinha, sem a proteção de uma guarda? – perguntou com admiração.

– Por que mo perguntas? Os cristãos são vítimas de medidas vexatórias por parte das autoridades governamentais; porém, irei ter com eles confiadamente, uma vez que se trata da tua felicidade pessoal.

– Tens uma fé assim tão grande nessa providência?!... – interrogou Lucínia com interesse e reconhecimento.

– Confiança total.

E, fazendo um gesto expressivo, como se houvera recordado um recurso novo, acrescentou:

– Ouve, querida: já que me falaste das predileções de Célia por essa doutrina, apesar do nosso segredo familiar sobre o assunto, porque não me permites o prazer da sua companhia? Essas reuniões se verificam nas velhas catacumbas da Via Nomentana e o local é muito distante. Tenho plena confiança no êxito dessas orações e bastará uma só vez para que a paz volte a felicitar tua casa e teu coração.

Alba Lucínia sentia-se confortada com as promessas da amiga, considerando-lhe a fé profunda e contagiosa, na grata perspectiva da felicidade doméstica, e acrescentou:

– Vou pensar e depois combinaremos. Mas, se necessitares de uma companhia, é a mim que compete acompanhar-te.

Separaram-se, então, com um beijo afetuoso, enquanto o vulto esguio de Hatéria se afastava lesto de uma ampla cortina oriental, depois de ouvir a singular entrevista.

Dentro de uma sociedade como aquela, onde todas as classes, desde os primórdios, em virtude das influências etruscas, recorriam ao invisível e ao sobrenatural, nas mais diversas contingências da vida, Alba Lucínia passou a meditar na preciosa oportunidade sugerida pela amiga de infância. Embora encontrasse conforto na expectativa do empreendimento, passou o resto do dia entre a indecisão e o sofrimento moral.

Teve ímpetos de ir a Tibur para arrancar o esposo de todas as perigosas situações em que se encontrava, mas o raciocínio preponderou em todas as suas inquietações angustiosas.

À noite, enquanto todos dormiam, dirigiu-se ao santuário doméstico e, prosternando-se junto ao altar de Juno, suplicou à deusa, entre lágrimas, que lhe amparasse o espírito nos caminhos ásperos do dever e da virtude.