Nosso Lar

Capítulo XXXIV

Com os recém-chegados do Umbral



Estacaram as matilhas de cães ao nosso lado, conduzidas por trabalhadores de pulso firme.

Daí a minutos, estávamos todos enfrentando os enormes corredores de ingresso às Câmaras de Retificação. Servidores movimentavam-se apressados. Alguns doentes eram levados ao interior, sob amparo forte. Não somente Narcisa, Salústio e outros companheiros se lançavam à lide, cheios de amor fraternal, mas também os Samaritanos mobilizavam todas as energias no afã de socorrer. Alguns enfermos portavam-se com humildade e resignação; outros, todavia, reclamavam em altas vozes.

Atacando igualmente o serviço, notei que uma velhota procurava descer do último carro, com muita dificuldade. Observando-me perto, exclamou, espantada:

— Tenha piedade, meu filho! Ajude-me por amor de Deus!…

Aproximei-me com interesse.

— Cruzes! Credo! — Continuou benzendo-se, — graças à Providência Divina, afastei-me do purgatório… Ah! Que malditos demônios lá me torturavam! Que inferno! Mas os Anjos do Senhor sempre chegaram.

Ajudei-a a descer, tomado de extrema curiosidade. Pela primeira vez, ouvia referências ao inferno e ao purgatório, partidas de uma boca que me parecia calma e ajuizada. Talvez obedecendo mais à malícia que me era peculiar, interroguei:

— Vem, assim, de tão longe?

Falando desse modo, afetei ares de profundo interesse fraternal, como costumava fazer na Terra, olvidando por completo, naquele instante, as sábias recomendações da mãe de Lísias. A pobre criatura, percebendo o meu interesse, começou a explicar-se:

— De grande distância. Fui, na Terra, meu filho, mulher de muito bons costumes; fiz muita caridade, rezei incessantemente como sincera devota. Mas, quem pode com as artes de Satanás? Ao sair do mundo, vi-me cercada de seres monstruosos, que me arrebataram em verdadeiro torvelinho. A princípio implorei a proteção dos Arcanjos Celestes. Os Espíritos diabólicos, entretanto, conservaram-me enclausurada. Mas eu não perdia a esperança de ser libertada, de um momento para outro, porque deixei uns dinheiros para celebração de missas mensais por meu descanso.

Atendendo ao impulso vicioso de perseguir assuntos que nada tinham que ver comigo, insisti:

— Como são interessantes as suas observações! Mas não procurou saber as razões de sua demora naquelas paragens?

— Absolutamente não! — Respondeu, persignando-se. Como lhe disse, enquanto estive na Terra, fiz o possível por ser uma boa religiosa. Sabe o senhor que ninguém está livre de pecar. Meus escravos provocavam rixas e contendas, e embora a fortuna me proporcionasse vida calma, de quando em quando era necessário aplicar disciplinas. Os feitores eram excessivamente escrupulosos e eu não podia hesitar nas ordens de cada dia. Não raro algum negro morria no tronco para escarmento geral; outras vezes, era obrigada a vender as mães cativas, separando-as dos filhos, por questões de harmonia doméstica. Nessas ocasiões, sentia morder-me a consciência, mas confessava-me todos os meses, quando o padre Amâncio visitava a fazenda e, depois da comunhão, estava livre dessas faltas veniais, porque, recebendo a absolvição no confessionário e ingerindo a sagrada partícula, estava novamente em dia com todos os meus deveres para com o mundo e com Deus.

A essa altura, escandalizado com a exposição, comecei a doutrinar:

— Minha irmã, essa razão de paz espiritual era falsa. Os escravos eram igualmente nossos irmãos. Perante o Pai Eterno, os filhinhos dos servos são iguais aos dos senhores.

Ouvindo-me, ela bateu o pé autoritariamente e falou, irritada:

— Isso é que não! Escravo é escravo. Se assim não fora, a religião nos ensinaria o contrário. Pois se havia cativos em casa de bispos, quanto mais em nossas fazendas? Quem haveria de plantar a terra, senão eles? E creia que sempre lhes concedi minhas senzalas como verdadeira honra!… Em minha fazenda nunca vieram ao terreiro das visitas, senão para cumprir minhas ordens. Padre Amâncio, nosso virtuoso sacerdote, disse-me na confissão que os africanos são os piores entes do mundo, nascidos exclusivamente para servirem a Deus no cativeiro. Pensa, então, que me poderia encher de escrúpulos no trato com essa espécie de criaturas? Não tenha dúvida; os escravos são seres perversos, filhos de Satã! Chego a admirar-me da paciência com que tolerei essa gente na Terra. E devo declarar que saí quase inesperadamente do corpo, por me haver chocado a determinação da Princesa, libertando esses bandidos. Decorreram muitos anos, mas lembro-me perfeitamente. Achava-me adoentada, havia muitos dias, e quando padre Amâncio trouxe a nova da cidade, piorei de súbito. Como poderíamos ficar no mundo, vendo esses criminosos em liberdade? Certo, eles desejariam escravizar-nos por sua vez, e a servir a gente dessa laia, não seria melhor morrer? Recordo que me confessei com dificuldade, recebi as palavras de conforto do nosso sacerdote, mas parece que os demônios são também africanos e viviam à espreita, sendo eu obrigada a sofrer-lhes a presença até hoje…

— E quando veio? — Perguntei.

— Em maio de 1888.

Experimentei estranha sensação de espanto.

A interlocutora fixou o olhar embaciado no horizonte e falou:

— É possível que meus sobrinhos tenham esquecido de pagar as missas; entretanto, deixei a disposição em testamento.

Ia responder, convocando-lhe os raciocínios à zona superior, fornecendo-lhe ideias novas de fraternidade e fé, mas Narcisa aproximou-se e disse-me, bondosa:

— André, meu amigo, você esqueceu que estamos providenciando alívio a doentes e perturbados? Que proveito lhe advém de semelhantes informações? Os dementes falam de maneira incessante, e quem os ouve, gastando interesse espiritual, pode não estar menos louco.

Aquelas palavras foram ditas com tanta bondade que corei de vergonha, sem coragem de a elas responder.

— Não se impressione, — exclamou a enfermeira delicadamente, — atendamos aos irmãos perturbados.

— Mas, a senhora é de opinião que estou nesse número? — Perguntou a velhota, melindrada.

Narcisa, porém, demonstrando suas excelentes qualidades de psicóloga, tomou expressão de fraternidade carinhosa e exclamou:

— Não, minha amiga, não digo isso; creio, porém, que deve estar muito cansada; seu esforço purgatorial foi muito longo…

— Justamente, justamente, — esclareceu a recém-chegada do Umbral, — não imagina o que tenho sofrido, torturada pelos demônios…

A pobre criatura ia continuar repetindo a mesma história, mas Narcisa, ensinando-me como proceder em tais circunstâncias, atalhou:

— Não comente o mal. Já sei tudo que lhe ocorreu de amargo e doloroso. Descanse, pensando que vou atendê-la.

E, no mesmo instante, dirigiu-se a um dos auxiliares, sem afetação:

— Você, Zenóbio, vá ao departamento feminino e chame Nemésia, em meu nome, para que conduza mais uma irmã aos leitos de tratamento.